A sabedoria cristã diante da política em tempos de raiva e ressentimento

Francisco Borba Ribeiro Neto

Vivemos um momento de tensão, confronto, ressentimento e raiva na sociedade brasileira. É um tempo que exige sabedoria e um discernimento justo, que supere polarizações e instrumentalizações de qualquer tipo.

A política brasileira é marcada por anos de escândalos de corrupção, sinais de irresponsabilidade, desinteresse pelo bem comum, desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Esse contexto alimenta e é alimentado por partidarismos extremados, numa espécie de grande bola de neve.

Os valores em que acreditamos, nossas famílias, a felicidade de nossos filhos, nosso direito de dizer o que pensamos, nossa liberdade individual e nossa própria vida… Tudo parece estar em risco. Não só por causa do coronavírus, mas também pelas maquinações dos poderosos, sejam eles grandes capitalistas ou políticos populistas, globalistas ou nacionalistas, grandes jornais ou disseminadores de fake news. Ironicamente, aqueles que um lado considera os defensores do povo, o outro acusa de manipulações e desrespeitos à dignidade da pessoa e ao bem comum.

A esquerda acusa a direita, a direita acusa a esquerda, Com certeza, os dois lados têm acertos e erros, pessoas bem e mal-intencionadas – pois assim somos nós, seres humanos, sempre falíveis e contraditórios, por mais que procuremos o bem. O salmista, em seus versos, não cansa de advertir os que confiam na força dos seres humanos de que sua esperança é vã, que as forças humanas não podem salvar. Numa das mais grandiosas poesias católicas do século XX, os Coros de “A rocha”, T.S. Eliot denuncia a ilusão de querermos construir sistemas tão perfeitos que tornassem desnecessário sermos bons. É sábio não confiar nas forças e nos sistemas humanos, reconhecer sempre a frágil condição na qual estamos, nós que – de uma forma ou de outra – sempre seremos sujeitos à fragilidade de nossa coerência moral.

Contudo, a galopante repetição de escândalos de corrupção, impunidade, corporativismo e nepotismo envolvendo nossos legisladores, magistrados e governantes nos lança um outro desafio: será possível ter alguma esperança na política brasileira? Essa desilusão e esse derrotismo, obviamente, não são justos, mesmo que compreensíveis em muitos momentos. A questão adequada é conhecer a justa esperança que podemos e devemos ter na vida política nacional.

A falta de fé e a pretensão neopelagiana

Para o cristianismo, um momento como esse, seja ou não mais difícil que tantos outros da história, carrega dois perigos. O primeiro, mais evidente, é a falta de fé e de esperança, sobre a qual já refletimos em outro artigo. O segundo, mais sutil, mas não menos perigoso, é – com o desespero e a desilusão – confiarmos apenas na força e na coerência (nossa ou de algum líder poderosos) para nos salvar – uma velha heresia à qual o Papa Francisco se refere ao falar do neopelagianismo, na Evangelii Gaudium (EG 93ss).

Deus quer nossa colaboração para salvar tanto o gênero humano quanto cada um de nós pessoalmente. Contudo, quer que trabalhemos sempre à luz da Sua graça. Como dizia Santo Inácio de Loyola, lembrado por Bento XVI: “Age como se tudo dependesse de ti, mas consciente de que na realidade tudo depende de Deus”. Mesmo na hora mais escura, mais cheia de incertezas, Ele pode nos salvar. Mesmo quando temos o poder e o mundo parece seguir nossos valores e desígnios, acabamos por servir ao Mal, se não é Ele quem edifica (cf.  Sl 127).

A assiduidade a uma vida espiritual humilde, que busca sempre a comunhão com Cristo e sua Igreja, é sempre a melhor resposta ao neopelagianismo. Mas o lobo muitas vezes se veste de cordeiro e nós também nos enganamos mesmo que com boas intenções. No Evangelho, Jesus nos exorta a sermos “”prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas” (Mt 10, 16), mas – quando somos consumidos por essa pretensão de salvar, com nossas próprias forças, a nós mesmos, a Igreja e o mundo – agimos como serpentes, tendo a inteligência de pombas…

Três sinais a evitar

O sinal mais inequívoco da tentação neopelagiana é acreditar que ter o poder é a condição para salvarmos o mundo. Se as coisas vão mal, é porque os nossos adversários têm o poder, se nós ou nossos amigos estão no poder, tudo automaticamente nos parece bom. Como diz o Papa Francisco, na Laudato si’: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder […] A verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder […] A liberdade [do ser humano] adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (LS 105).

Um segundo sinal é a raiva e a violência. O poder, por si só, faz muitas coisas, mas não consegue nos conduzir ao caminho do bem e da verdadeira realização pessoal. Assim, ficamos cada vez mais frustrados e tendemos a culpar cada vez mais os outros pelos nossos infortúnios. Gente que não tem nada a ver com nossa vida passa a ser culpada pelos nosso problemas e frustrações. Em tudo vemos ideologias nefastas (que podem até estar presentes, mas não podem ser a única coisa para as quais olhamos) e só em nós mesmos e em nossos amigos vemos a bondade e a beleza (que cada vez são mais uma falsa bondade e uma falsa beleza, construída a nossa imagem, e menos aquelas nascidas do coração de Deus).

E, por último, perdemos a capacidade de construir, pois não agimos mais segundo a lógica da caridade. Não paramos de denunciar o mal, mas não conseguimos edificar o bem. É a tragédia de tantos que denunciam, com toda a justiça, os males do mundo, mas não apontam um caminho novo de construção do bem.

Nesses tempos de medo e raiva, que nossa vida seja definida pelo Amor que constrói um mundo melhor e não pela violência que só denuncia o mal, impotente para construir o bem.

Uma questão de paciência histórica

O Papa Francisco, com uma sabedoria que a Igreja adquiriu observando a história e o fracasso de muitas revoluções, nos lembra sempre da necessidade de termos paciência e tenacidade. Em suas palavras, “o tempo é superior ao espaço” (Evangelii gaudium, EG 222-225). É claro que todos nós gostaríamos de mudanças rápidas e eficazes. Mas as coisas não acontecem assim. Frequentemente “trocamos seis por meia dúzia”. Pior, algumas vezes trocamos “seis por cinco”. Contudo, se hoje trocarmos “seis por seis e meio” e amanhã “seis e meio por sete”, e assim por diante, estaremos construindo um futuro melhor.

A pretensão de querer mudar rapidamente a realidade é uma das maiores razões para nossas desilusões. Achamos que um governante, um partido ou um juiz irão fazer a diferença e resolver nossos problemas. Mas apesar de ser fundamental existir pessoas que façam a diferença, elas sozinhas não mudarão a realidade. Sozinhas ou com todos nós, também não conseguirão mudar radicalmente a realidade num único golpe. A mudança eficaz é um processo continuado que conta com o apoio e a colaboração da maioria.

Francisco, no texto citado, diz que o importante é investir em processos que constroem um povo. Na Fratelli tutti, o Papa diz que “para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, necessita-se do termo ‘povo’. A verdade é que há fenômenos sociais que estruturam as maiorias, existem megatendências e aspirações comunitárias; além disso, pode-se pensar em objetivos comuns, independentemente das diferenças, para implementar juntos um projeto compartilhado; enfim, é muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho coletivo” (FT 157). Toda sociedade está atravessada por contradições e conflitos. Pensar um povo não significa negar os problemas, mas sim reconhecer alguns elementos que podem transcender os conflitos e orientar a construção da sociedade como um todo.

Democracias são mais estáveis, combatem a corrupção e cumprem melhor sua função de garantir o bem comum na medida que são o reflexo da existência desse “povo”, que tem consciência de sua responsabilidade para com a organização da sociedade. Um povo politicamente maduro se reconhece responsável pelo bem comum. Sabe que os governos são o reflexo do compromisso compartilhado e praticado por todos os cidadãos.

No Brasil, tendemos a pensar que é só o governo que tem que zelar pela qualidade de vida dos cidadãos. Ainda somos, nesse aspecto, uma sociedade pouco participativa e pouco responsável pelos destinos da nação. E a contrapartida a essa sociedade pouco participante é um Estado centralizador, sempre com tendências autoritárias. Notem que o autoritarismo não se reflete apenas nos atos ditatoriais ou no desrespeito ao desejo da maioria. Ele está presente, por exemplo, quando escutamos aquela famosa frase “você sabe com quem você está falando?”, ou quando os homens públicos desrespeitam as leis e aos demais cidadãos em função de seu poder institucional.

As pessoas e as instituições

No seu discurso inaugural da Conferência dos Bispos da América Latina e do Caribe, em Aparecida (2007), Bento XVI disse: “As estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Porém, como nascem? Como funcionam? As estruturas justas […] não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal […] As estruturas justas jamais serão completas de modo definitivo; pela constante evolução da história, hão de ser sempre renovadas e atualizadas; hão de estar animadas sempre por um ethos político e humano, por cuja presença e eficiência se trabalhará cada vez mais”.

As estruturas justas não caem do céu. Ao contrário, precisam ser construídas por pessoas comprometidas com o bem comum, animadas por esse “ethos político e humano”, que – nos dizeres de Francisco – é a alma de um povo. Existe sempre uma retroalimentação em política. Bons líderes criam boas estruturas e essas boas estruturas nos ajudam a escolher bons líderes. Maus líderes criam más estruturas, que não nos permitem escolher bons líderes.

A esperança justa, na política, é aquela que nasce dessa construção cotidiana, que acontece em pequenos passos, no acompanhamento aos trabalhos voltados ao bem comum. Pouco a pouco, novos políticos – mais conscientes e comprometidos – vão ganhando seus espaços. Pouco a pouco, acontecem mudanças institucionais que coíbem os corruptos e dão mais oportunidades aos honestos. Num mandato, nosso candidato está no poder, em outro, está na oposição. Avançamos dois passos, talvez retrocedamos um… O que importa é que caminhamos para uma sociedade melhor.

Quando desanimamos, não é porque não existam coisas boas acontecendo. Desanimamos porque olhamos só para os erros dos poderosos e não vemos as coisas boas que continuam acontecendo, frequentemente pequenas, mas com potencial para crescer. E, frequentemente, não vemos essas coisas boas acontecerem porque não estamos suficientemente envolvidos ou atentos para com os processos – talvez pequenos, mas carregados com um sabor de esperança – que constroem um povo (cf. EG 224).

 

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