O que é democracia?

Manifestações, democracia e doutrina social         

 

As recentes manifestações ocorridas no Brasil têm sido frequentemente rotuladas de antidemocráticas. Escandalizados, os que participaram, dizem “o povo ocupar as ruas não pode ser considerado antidemocrático”. Igualmente escandalizados, seus opositores dizem que as razões que os levaram às ruas não são democráticas. Instaura-se uma confusão e uma dificuldade de diálogo que nasce tanto de questões conceituais quanto de más intenções infiltradas em ambas as posições (porque o mal não escolhe lados, encontra um lugar em todas as partes).

Para superar divisões desnecessárias e mal-intencionadas, o primeiro passo é entender o que realmente é democracia. Uma definição clássica é “o governo do povo, para o povo, pelo povo”. Mas a sociologia não costuma reconhecer o termo “povo” como objetivo. De fato, ele frequentemente é usado para indicar apenas aqueles que têm o poder ou o nosso grupo social em particular. Na lógica escravocrata, negros não eram nem gente, nem povo. Nas sociedades patriarcais, mulheres não podiam votar – muitas vezes nem eram contadas como pessoas! Entre as elites iluministas, os analfabetos não deveriam votar – portanto não eram o povo reconhecido pela democracia.

 

O povo no magistério cristão: a Fratelli tutti

Provavelmente, nenhum pontífice se debruçou sobre essa questão como o Papa Francisco. Na Fratelli tutti (FT), ele faz questão de explicar esse conceito. O “povo”, para Francisco e para a tradição cristã, é uma unidade construída a partir de valores compartilhados, que dão sentido e sabor à vida (cf. FT 156-161).  Diferentemente das etnias, os povos – particularmente em sociedades plurais, como as nossas – não são dados da realidade, eles precisam ser construídos, ao longo de uma história na qual os valores vão sendo forjados e purificados.

Nas palavras de Francisco, “ignorar a cultura dum povo faz com que muitos líderes políticos não sejam capazes de promover um projeto eficaz que possa ser livremente assumido e sustentado ao longo do tempo” (FT 52). Esse é um problema histórico nas sociedades latino-americanas.

No Brasil, no século XIX e boa parte do século XX, as elites iluministas e positivistas frequentemente negaram os valores do povo. Criou-se o mito do brasileiro preguiçoso e indolente, religiosamente conformado e fundamentalista. No fundo, era um modo de desqualificar o povo simples e legitimar o poder das elites. Os movimentos de esquerda, ainda que tendo uma ótica aparentemente oposta, herdaram boa parte dos preconceitos e das estratégias de cancelamento cultural das elites de direita que desejavam combater. A partir da década de 1950, romantizavam parte da cultura popular, que lhes interessava, e cancelavam aquilo com que não concordavam. Num período mais recente, as lutas pelo reconhecimento dos direitos das minorias e as críticas ao autoritarismo estruturante da sociedade brasileira, embora justas, dificultaram mais ainda a compreensão e a valorização de muitos valores populares.

Hoje em dia, pesquisas de opinião mostram que as maiores diferenças entre as posições de eleitores de direita e esquerda no Brasil referem-se a pautas morais e comportamentais, e não à condução da economia e do Estado. Nesse sentido, se torna necessário a reconstrução de uma unidade mínima em torno a valores comuns, reconhecidos por todos. Mas essa unidade cultural antecede o poder político, não pode ser construída com uma ação autoritária do poder.

Nos enganamos quando pensamos que, nas democracias modernas, o poder impõe pautas culturais. Ele apenas consolida pautas que já haviam conquistado proeminência sobre as demais.

 

O povo e a massa

O povo, na visão de Francisco, é uma unidade “aberta” (FT 160) está disponível para acolher o outro, encanta-se com o diferente, é solidário com aqueles que sofrem. Alguns dirão que essa é uma idealização – e realmente é; mas trata-se do ideal para o qual todos temos que caminhas se queremos sociedades realmente comprometidas com o bem comum (cf. FT 142-153).

Esse povo não é “massa”, um conjunto indiferenciado que se move pela força da demagogia que explora raivas e ressentimentos. A democracia é a consolidação da vontade e dos direitos do povo, não da “massa”. No século XX, tristes episódios de genocídios de minorias mostram bem porque a democracia não pode ser identificada com a simples “vontade da maioria”. As democracias são – ou devem ser, ao menos em teoria – justas. Ora, se nove pessoas resolvem matar uma décima, esse assassinato seria justo só porque a maioria assim decidiu? Para uma decisão ser democrática, não basta ser majoritária.

A democracia é, na verdade, o governo do povo orientado para a realização do bem de cada pessoa. A estrutura jurídico-institucional de uma democracia tem justamente a função de evitar que decisões de momento, tomadas por uma maioria que não vê os direitos dos demais, se tornem despóticas ou injustas. Por isso os chamados três Poderes têm limites e mecanismos de acompanhamento mútuos.

Quando um grupo não reconhece que deve haver limites à própria vontade, mesmo que seja majoritário não está mais compondo aquele “povo” do qual fala Francisco. Não aceitar os valores do povo é antidemocrático. Um grupo, mesmo que majoritário, tentar impor seus valores aos demais também é antidemocrático.

 

A tarefa permanente de construir um povo e uma democracia

O povo não é uma unidade estática. Justamente por viver uma permanente abertura, está sempre em mudança. Seus valores devem ser continuamente purificados e consolidados. As democracias também não estão garantidas para sempre. Devem ser sempre aperfeiçoadas para controlar os corruptos, defendidas contra os autoritários.

Nas palavras do Papa Francisco: “Verifica-se uma triste hipocrisia, quando a impunidade do delito, o uso das instituições para interesses pessoais ou corporativos e outros males que não conseguimos banir, se associam a uma desqualificação permanente de tudo, à constante sementeira de suspeitas que gera desconfiança e perplexidade. Ao engano de que ‘tudo está mal’ corresponde o dito ‘ninguém o pode consertar. Sendo assim, que posso fazer eu?’ Deste modo, alimenta-se o desencanto e a falta de esperança; e isto não estimula um espírito de solidariedade e generosidade […] É preciso apenas o desejo gratuito, puro e simples de ser povo, de ser constantes e incansáveis no compromisso de incluir, integrar, levantar quem está caído; embora muitas vezes nos vejamos imersos e condenados a repetir a lógica dos violentos, de quantos nutrem ambições só para si mesmos, espalhando confusão e mentira. Deixemos que outros continuem a pensar na política ou na economia para os seus jogos de poder. Alimentemos o que é bom, e coloquemo-nos ao serviço do bem” (FT 75-77).

 

Francisco Borba Ribeiro Neto