Papa Francisco e a nova evangelização na Amazônia e no mundo

A contribuição da experiência eclesial latino-americana para a nova evangelização.
Esse artigo foi originalmente publicado na edição francesa da revista católica internacional Communio, num fascículo dedicado a apresentar ao público europeu a “teologia do povo”, versão argentina da teologia da libertação latino-americana.

 

São João Paulo II, na encíclica Redentoris missio (RM, 1990) escreveu que era “hora de comprometer todas as forças eclesiais para a nova evangelização e missão ad gentes.  Nenhum crente em Cristo, nenhuma instituição da Igreja pode escapar deste dever supremo: proclamar Cristo a todos os povos” (RM 3). Este é o grande significado do pontificado do Papa Francisco.

A Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” (QA, 2020) é um documento particularmente oportuno para entender como a tradição eclesial da qual Bergoglio vem molda sua maneira de se engajar nessa nova evangelização. Surpreendentemente, a Amazônia é uma realidade particularmente adequada para entender os desafios da Igreja no mundo globalizado, onde a homogeneização cultural convive com a fragmentação multicultural, as riquezas do capitalismo convivem com a exclusão social e a pobreza dos subúrbios, o fascínio eterno pela beleza convive com o vazio da falta de sentido da vida.[1]

Dois papas que vieram “de longe”

Os tempos passam e nossa memória muitas vezes esquece. Há pouco mais de 40 anos, São João Paulo II se apresentou ao mundo dizendo: “Os Eminentes Cardeais chamaram um novo bispo de Roma. Eles o chamavam de um país distante, muito longe”.[2] Palavras semelhantes às do Papa Francisco, ao apresentar-se: “o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que meus irmãos Cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo.[3]

Os dois papas mais carismáticos do pós-concílio vieram de fora do chamado “Primeiro Mundo”, rico e desenvolvido. Vieram de países que historicamente enfrentaram submissão às potências mundiais, pobreza e opressão. Ambos viveram sob regimes ditatoriais, em nações muito católicas e patrióticas. No entanto, um veio do norte, o outro do sul; um enfrentou o autoritarismo de esquerda, o outro, o autoritarismo de direita. Por um lado, a identidade católica teve que resistir aos governos ateus; por outro lado, essa mesma identidade teve que resistir à hipocrisia dos governos que se autodenominavam católicos, mas agiam contra o amor cristão.

Com suas semelhanças e contrastes, são particularmente complementares, revelando para nós, nestes tempos contemporâneos, a integralidade da doutrina católica. Não ser consciente dessa complementaridade entre os dois papas torna muito mais difícil compreender a riqueza dos dons do Espírito que se manifesta na diversidade de temperamentos que caracterizam a humanidade (cf. 1Co 12: 4-31). Ao mesmo tempo, reduz a integralidade da mensagem da Igreja, particularmente nestes tempos pós-modernos, a uma disputa entre interpretações particulares. Em uma mistura de informação e desinformação, os próprios cristãos tendem a considerar que o papa pensa “como eles” ou “contra eles” e estão mais interessados em confirmar esse preconceito do que em se perguntar como o sucessor de Pedro pode ajudá-los em seu caminho de conversão.

O Papa que veio da terra da missão

Jorge Mario Bergoglio é membro da Companhia de Jesus, sempre missionária, e nascido em uma terra de missão. Na América Latina, a Igreja nunca deixou de ser uma experiência missionária. Padres sempre foram relativamente poucos. Os governos sempre olharam para a Igreja com desconfiança ou más intenções.[4] Pessoas simples não tiveram uma boa educação católica, mas sempre tiveram o apoio da Igreja Católica e foram fiéis a ela, embora em um período recente as igrejas cristãs neopentecostais tenham crescido muito.

A origem em solo missionário implica numa série de características humanas e espirituais que são evidentes na mensagem do Papa Francisco. Para quem conhece essa realidade, é evidente que – com esse papado – o Espírito queria que a Igreja universal aprendesse novamente as duras lições de viver como um estrangeiro, que ama o mundo imensamente, mesmo quando é perseguido pelo mundo, como lembrado na Carta a Diogneto.

A primeira lição, amplamente proclamada por Francisco desde o início, é que Deus está “lá fora”, naqueles que encontramos, nas periferias da existência, que Ele se entrega a nós quando nos entregamos aos outros. Dar-se ao outro, ir para as periferias da existência não é filantropia altruísta. É um ato de amor ao próximo, mas também é – ainda antes – uma jornada em direção a Cristo. Assim Francisco, logo no início do texto mais programático de seu pontificado, Evangelii Gaudium (EG, 2013), ao propor uma “Igreja em saída”, declara: “A alegria do Evangelho que preenche a vida da comunidade de discípulos é uma alegria missionária … A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão ‘constitui-se essencialmente em comunhão missionária’(Christifideles laici,32)” (EG 21-23).

O missionário, um estranho na terra em que se encontra, é sempre pobre e fraco, desprovido das honras e consideração que o cristianismo recebe onde é a fé predominante. Ao mesmo tempo, seu coração naturalmente se dirige aos mais fracos e aos mais excluídos – e é reconhecido por eles. Não importa para quais periferias ele foi enviado: outro país, onde tudo parece estranho e os valores cristãos estão sempre em dúvida; os bairros pobres da cidade, onde falta pão e dignidade; a universidade ateia, onde se sofre do vazio da razão sem sentido. Em todos esses lugares o missionário, em sua própria pobreza e fragilidade, encontra Cristo. Em todos esses lugares ele descobre que os pobres e o sofredores são os primeiros a aderir à Boa Nova, mesmo que a primeira vista até pareçam hostis.

Por isso, o missionário percebe, com particular sensibilidade, a importância da opção pelos pobres. Antes de um discurso teológico aprendido nos bancos escolares, é uma experiência humana diária. É por isso que Francisco quer uma Igreja “pobre para os pobres” (EG 198).

Todo ser humano se reconhece como pobre em um certo sentido: material, afetivo, moral, espiritual. Todos tentam esconder sua pobreza e fragilidade dos outros. Mas só os mais arrogantes escondem a própria pobreza de si mesmos. E só a misericórdia pode aceitar plenamente a miséria. É por isso que Francisco, com sua devoção pessoal à misericórdia e seu amor pelos pobres, fascina o mundo.[5]

O missionário também se caracteriza pela sua atenção para com o outro e a realidade. Em uma terra estrangeira e até hostil, ele deve estar atento, procurando “pontes” que lhe permitam comunicar a experiência cristã em um contexto diferente. A primeira preocupação nunca pode ser corrigir. Em vez disso, precisa entender e acolher para anunciar. A alma missionária está acostumada a não parar em frente do diferente, tentar entendê-lo e valorizá-lo, descobrir nele as maravilhas que Deus espalha no mundo e as pontes que permitem o diálogo e o encontro evangelizador. O missionário está acostumado a encontrar no outro os maravilhosos sinais da ação de Deus, que até precedem o anúncio cristão; descobrir a necessidade de um compromisso concreto para superar problemas materiais.

Bergoglio encontra o problema socioambiental

Nesse espírito, o Papa Francisco reconhece que começou a ter contato mais próximo com a questão ambiental durante a Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Aparecida (2007). Em suas próprias palavras, ele pensou na época: “Mas esses brasileiros, como aborrecem com essa Amazônia! O que a Amazônia tem a ver com evangelização”.[6] No entanto, a estranheza inicial tornou-se atenção, fascínio e comprometimento. [7]

A questão ambiental há muito recebeu a atenção da Igreja. Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI escreveram sobre o tema. No entanto, em sua abordagem, Francisco fez da questão socioambiental um traço de seu pontificado, com a Encíclica Laudato si’ (LS, 2015). [8]

Um Sínodo para a Amazônia

Diante do Laudato Si’ e dos desafios enfrentados na região, o Papa Francisco, em 2017, convocou o Sínodo para a Amazônia, realizado em 2019. Entre a convocação e a realização do Sínodo, uma série de conflitos envolvendo o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o aumento da devastação do meio ambiente e das queimadas na região durante seu mandato (que começou em 2019), fizeram com que o evento ganhasse repercussão política mundial.[9]

Antes, outras dez Assembleias Sinodais de Bispos já haviam ocorrido dedicadas a regiões específicas do mundo, como Europa, África ou Oriente Médio. No entanto, dois aspectos foram particularmente significativos nesta edição focada na Amazônia: (1) a importância que o Papa Francisco sempre deu à sinodalidade e à colegialidade na Igreja; [10] e (2) uma ampla consulta com as pessoas da região, que seria a base para a redação do Instrumentum Laboris. [11]

Este Instrumetum tornou-se o centro das divergências em torno do Sínodo para a Amazônia. De acordo com seus críticos, muitas de suas formulações estão teologicamente equivocadas, sugerindo um certo panteísmo ecológico e esvaziando a centralidade de Cristo. Além disso, gerou muita indignação defendendo a ordenação de homens casados como solução para a falta de padres na região. Seus defensores, por outro lado, argumentaram que se tratava de ouvir as demandas feitas durante o processo consultivo, manter a abertura ao diálogo intercultural e responder aos problemas socioambientais na região.[12],[13]

Uma curiosidade deste debate sobre o Instrumentum laboris é que seus defensores sentiram que a crítica veio de uma visão eurocêntrica que não queria reconhecer a especificidade da reflexão latino-americana. Muitos de seus críticos, por outro lado, consideravam seu problema como sendo uma contaminação ideológica por parte dos teólogos europeus que participaram da elaboração do documento e, mesmo vivendo na América Latina, “exportaram” as questões da Igreja europeia para o contexto amazônico.

O Documento Final do Sínodo dos Bispos, “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral“, procurou afastar-se das querelas teológicas e manter as linhas socioambientais já presentes no Instrumentum laboris.[14] No entanto, manteve suas propostas relativas à ordenação de homens casados (nº 111).

Amazônia: o valor e a fragilidade da floresta e seu povo

Duas características marcam a região amazônica e determinam a vida humana em seu território. Por um lado, sua riqueza natural e cultural, por outro, sua fragilidade, igualmente natural e social.

As condições climáticas e a história geológica da região criaram ecossistemas com alta biomassa e grande diversidade biológica, com recursos tropicais de grande valor (peixes, frutos, ingredientes ativos para farmacologia, paisagens para ecoturismo), minerais e algumas (nem todas) áreas adequadas para agricultura e pecuária. No entanto, a própria floresta é o principal fator de controle do clima, protegendo o solo e o fertilizando. Sua destruição resultaria na perda da maioria desses recursos, além de impactar o equilíbrio climático em escala global, dada a extensão da região.[15]

Do ponto de vista demográfico, a região amazônica repete essa dinâmica de riqueza e fragilidade. O estado do Amazonas, no Brasil, um dos locais mais afetados no mundo pelo Covid-19, é um exemplo característico das contradições da região. Em um território cerca de 3 vezes maior que a França, há uma população de 4,2 milhões de habitantes (apenas 2,7 habitantes/km²). No entanto, a capital Manaus, é uma cidade com 2,2 milhões de habitantes e uma economia baseada na indústria, um centro de produtos petroquímicos e eletroeletrônicos. O índice de desenvolvimento humano (IDH = 0,73) é considerado alto, mas cerca de 47% da população vive abaixo da linha de pobreza.

A região amazônica é um mosaico onde culturas indígenas (hoje populações minoritárias) se fundem com culturas ocidentais e africanas, trazidas por escravos.  A religião predominante é um cristianismo popular, sincrético e muitas vezes amadurecido longe do acompanhamento pastoral de qualquer Igreja cristã. O catolicismo era visto como a principal religião, mas está rapidamente perdendo terreno para novas igrejas neopentecostais.

“Querida Amazônia”

A partir desse contexto desafiador, tanto para os problemas concretos existentes quanto para as polarizações teológicas, Francisco cria um texto reconhecido como referência obrigatória por leitores bem-intencionados, seja qual for sua tendência.[16]

“Querida Amazônia” é uma exortação pós-sinodal. Deve, portanto, dialogar com o Documento Final produzido pelos bispos. Nesse sentido, o Papa tomará uma decisão metodológica explícita: ele não menciona este Documento, mas convida todos a lê-lo (QA 2-3). Ao mesmo tempo, com seu texto, dialoga com as preocupações e propostas do Sínodo.

É importante notar que a Exortação não se liga a aspectos normativos ou organizacionais. As respostas do Papa não eliminam esses aspectos, mas são muito mais espirituais e místicas por natureza. À questão da falta de padres para a região, por exemplo, ela não responde com uma discussão normativa sobre o celibato, mas escreve: “Não se trata apenas de favorecer uma maior presença de ministros ordenados que possam celebrar a eucaristia. Este seria um objetivo muito limitado se não tentássemos criar uma nova vida nas comunidades. Precisamos promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade através de vários serviços leigos” (QA 93).

A abordagem dos problemas segue o método de diálogo estabelecido na Laudato si’.  Na encíclica, Francisco afirma: “Se levarmos em conta a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, devemos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única forma de interpretar e transformar a realidade. Também é necessário recorrer às diferentes riquezas culturais dos povos, da arte e da poesia, da vida interior e da espiritualidade […] nenhum ramo da ciência e nenhuma forma de sabedoria pode ser negligenciada, nem mesmo a sabedoria religiosa com sua própria língua” (LS 63). Além disso, todo o Capítulo Cinco desta encíclica, “Algumas diretrizes e ações”, se dedica a propor diálogos entre diferentes organismos sociais e políticos como forma de resolver problemas socioambientais.[17]

Sonhos e contemplação

O texto de Francisco está estruturado em torno de quatro “sonhos”: social, cultural, ecológico e eclesial. O “sonho” é, na linguagem coloquial, o espaço do desejo, da mais profunda e mais livre aspiração, onde o coração do homem é revelado. Pode ser um sonho utópico, referindo-se a um projeto futuro que nunca se realiza, mas também pode ser a representação estética de um ideal que ilumina o presente.

Os “sonhos” de Francisco para a Amazônia são claramente desse segundo tipo. Eles revelam, de forma afetiva e bela, um ideal que deve guiar o momento presente. Mais do que um projeto para o futuro, são uma experiência espiritual: a contemplação do que o amor de Deus deseja para os seres humanos e para toda a criação.[18]

O primeiro sonho é social. A sequência reflete a inquietação do coração. Para o pai aflige o sofrimento de seus filhos; para o missionário, as necessidades das pessoas para quem ele foi enviado. A conversão, é bom lembrar, é um fruto da graça no diálogo com a liberdade; já a solicitude em face do sofrimento material é um dever de caridade.

O Papa quer que os povos amazônicos “consolidem uma boa vida” (QA 8).  A expressão “boa vida” faz uma referência explícita à espiritualidade indígena latino-americana. No entanto, também harmoniza com uma visão clássica de harmonia entre os seres humanos e a realidade.[19],[20]

Usando essa expressão, Francisco mostra que o bem-estar de um povo não pode ser determinado por regras externas, deve ser entendido em diálogo com suas tradições e seu modo de vida. Ao mesmo tempo, refere-se a uma intuição universal de que uma vida digna depende de condições materiais, mas também de uma posição humana adequada diante do mundo. Para aqueles de boa vontade, católicos ou não, a expressão é uma ponte de diálogo.

Diante dos problemas sociais da Amazônia, o Papa nos convida a ficar indignados e pedir perdão, especialmente pelas instituições corruptas, que muitas vezes contavam com a omissão e até com o apoio dos católicos (QA 15-19: 23-25). Alternativamente, aponta para o sentido comunitário dos povos amazônicos (QA 20-22) e o crescimento de um diálogo sociopolítico, que “não deve apenas dar prioridade à escolha preferencial para a defesa dos pobres, dos marginalizados e dos excluídos, mas considerá-los como protagonistas” (QA 27).

A necessidade de diálogo traz à reflexão o “sonho cultural” de Francisco (QA 28-40). Não seria possível compreender o pensamento do Papa sem reconhecer o papel fundamental que ele atribui à cultura e, em particular, à cultura popular. De fato, o diálogo intercultural, no qual o encontro de culturas ocorre com respeito à tradição e especificidade de cada povo, mais do que um tema, é o próprio espírito que guia toda a Exortação.[21]

A valorização dos povos e culturas que vivem na região leva diretamente à conservação dos ecossistemas, ao “sonho ecológico” (QA 41-60). “O Senhor, que primeiro cuida de nós, nos ensina a cuidar de nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá todos os dias” (QA 41). Francisco entende a natureza, particularmente na Amazônia, como “um lugar teológico, um espaço onde o próprio Deus se manifesta e chama seus filhos” (QA 57). Esta não é uma afirmação panteísta, como alguns imaginaram. É uma consequência do encontro com Cristo: “Para nós cristãos, é o próprio Jesus que nos implora através delas [as criaturas], porque o Ressuscitado misteriosamente as envolve e as direciona para um destino de plenitude. As mesmas flores e os pássaros que Ele contemplava admirado com seus olhos humanos, agora estão cheias de sua presença luminosa (Laudato si’,100)” (QA 57).

O anúncio: necessário e inculturado

Em um documento com 111 pontos numerados, 49 são dedicados ao “sonho eclesial” (QA 61-110). Muitos esperavam uma adesão radical neste capítulo à linha tomada pelo Instrumentum Laboris e ficaram decepcionados com o que consideravam uma concessão aos conservadores. A posição e as declarações de Francisco não apoiam essa hipótese. O Papa sempre disse o que acha necessário dizer, sem temores políticos. Portanto, o mais justo é considerar que seu “sonho eclesial” representa a mensagem que ele quer transmitir à Igreja na Amazônia (e, quando aplicável, ao mundo). Pode ser resumido em quatro pontos:[22]

– A presença e a missão da Igreja são inseparáveis da promoção humana em geral e, quando necessário, da proteção do meio ambiente – razão para a apresentação dos três sonhos anteriores.

– No entanto, há uma proclamação indispensável, que é a razão do ser da Igreja: “A opção preferencial para os mais pobres e mais esquecidos, ao mesmo tempo em que nos empurra para libertá-los da miséria material e defender seus direitos, implica que proponhamos a eles a amizade com o Senhor que os promove e lhes dá dignidade. Seria triste se eles recebessem de nós um código de doutrina ou um imperativo moral, mas não a grande proclamação salvadora, aquele grito missionário que aponta para o coração e dá sentido a tudo o resto […] Eles têm direito à proclamação do Evangelho” (QA 63-64).

– Essa proclamação deve ser inculturada, ou seja, capaz de recuperar e integrar todos os valores que encontra nas tradições e culturas. Trata-se de reconhecer a sabedoria dos povos, aprender com eles, acolher sua espiritualidade (cf. QA 70-73). A inculturação deve atingir a santidade (QA 77-80), liturgia (QA 81-84) e ministérios (QA 85-90) com rostos amazônicos, que não são considerados como invenções exóticas, mas como explicitação dos valores universais da Igreja em um contexto específico.

– Por fim, comunidades cheias de vida, com forte espiritualidade, ampla presença de leigos, contribuição reconhecida das mulheres, capacidade de superar conflitos e ir ao encontro de outras religiões.

Entendendo a história: do Pacto das Catacumbas à “Querida Amazônia”

Em um distante 1965, quarenta bispos que participaram do Concílio Vaticano II – a maioria composta por latino-americanos – reuniram-se na Catacumba Domitila, em Roma, e assinaram um documento propondo viver a pobreza evangélica, praticar a colegialidade, dar mais espaço aos leigos em suas dioceses e lutar por justiça social. O documento tornou-se conhecido como Pacto das Catacumbas e muitos veem, com razão, neste texto um presságio do que são hoje as propostas eclesiais do Papa Francisco.[23]

Mas como podemos explicar esse aparente hiato de 50 anos entre esse Pacto e o magistério do atual Papa? Muitos, nostálgicos para aqueles tempos, leem essa lacuna em perspectiva secularizada, explicando-a como resultado das oscilações características da dialética da história. Entre alguns há também uma certa alegria vingativa: “finalmente ganhamos”.

Isso seria só um “cochilo” do Espírito? Deus teria abandonado os justos de sua Igreja por tanto tempo? Ou teria sido um tempo de purificação, necessário para uma compreensão justa dessa perspectiva eclesial?

Para entender – com o discernimento cristão – o que aconteceu, devemos voltar aos anos sessenta, recuperar um pouco da mentalidade desse período, na Igreja e no mundo. Naquela época, havia uma crença generalizada de que a utopia estava próxima. Muitos movimentos sociais, muitas vezes em desacordo uns com os outros, acreditavam em uma grande revolução nos costumes e nas estruturas sociais.

Neste contexto não houve falta de santos engajados com a justiça social e com os pobres, seguindo uma tradição cristã presente em todas as épocas e continentes. No entanto, houve também interpretações secularizadas da mensagem evangélica, que atualizaram os movimentos milenaristas – também estes espalhados pelo tempo e espaço. Era a ideia de que seria a coerência moral dos cristãos (agora lida em termos sociopolíticos e emancipatórios) que legitimaria a presença da Igreja no mundo racionalizado e desencantado da Modernidade Avançada.

Essa tendência milenarista, nunca assumida, mas sempre próxima, foi o grande problema da Igreja no quadro teórico da teologia da libertação. Infelizmente, no período imediatamente seguinte ao Concílio, problemas semelhantes estavam generalizados na comunidade católica em todo o mundo. A renovação muitas vezes parecia não ser uma recuperação da novidade sempre presente do encontro com Cristo, mas uma ruptura que negava a relevância desse encontro, reduzida a uma doutrina ou ideologia, respeitável e inspirada, mas relegada ao passado.[24]

É compreensível, portanto, que a jornada da Igreja passasse por um período de realinhamento no qual os princípios fundamentais fossem bem evidenciados. Como tudo na Igreja, era um caminho que passava pela graça de Deus, mas também através dos pecados humanos. No entanto, foi um passo necessário. Ciente desse fato, Bento XVI proclamou, no final de seu pontificado: “devemos aprender a lição mais simples e fundamental do Concílio, ou seja, que o cristianismo em sua essência consiste na fé em Deus, que é o Amor Trinitário, e no encontro, pessoal e comunitário, com Cristo dirigindo e guiando a vida: todo o resto é consequência”.[25]

A tradição que se abre para o futuro

Uma estrutura corporal sólida é uma condição para que um atleta ultrapasse seus limites. Ele não seria capaz de avançar sem esta estrutura, mas ela seria inútil se ele não tentasse ir mais longe. Este é o grande vínculo que articula o pontificado de Francisco com o de seus antecessores. A segurança teológica e o progresso missionário não se opõem, são a raiz e o fruto da mesma árvore.

Em seu discurso final na Assembleia do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, o Papa explica como entender essa ligação com uma citação de Gustav Mahler: “Tradição é a preservação do futuro e não a guarda das cinzas”.[26] E seu magistério pode ser visto não só como uma grande missão ad gentes, mas como uma missão à cultura e à mentalidade da “pós-modernidade”.

Publicação original : RIBEIRO NETO, Francisco Borba. Le pape François et la nouvelle évangélisation. Communio, Revue Catholique Internationale. Théologie du peuple et pastorale populaire, novembro-dezembro 2021, n°278: 119-130.

Notas

[1] Para uma apresentação Sistemática do documento, Ver SPADARO, A.  Commento alla Esortazione Apostolica di Papa Francesco “Querida Amazonia”. La civiltà cattolica, 171 (4073): 462-476, 2020.

[2] Primeira saudação e primeira bênção aos fiéis, 16 de outubro de 1978.

[3] Bênção Apostólica Urbi et Orbi, 13 de março de 2013.

[4] Na América Latina colonial, os governos supostamente protegiam a Igreja Católica, em um sistema conhecido como padroado régio. Na verdade, era mais um sistema de cooptação e submissão da Igreja ao poder temporal. Exemplos óbvios são a destruição, com a aprovação dos governos espanhol e português, das reduções jesuíticas, a maior experiência de inculturação do cristianismo no continente, destruídas entre 1753-1756 e a expulsão dos jesuítas do Brasil (1759) e da América Espanhola (1767).

[5] Para uma visão geral da experiência pessoal do Papa Francisco com a misericórdia e como essa experiência se torna ensino, ver Mensagem aos Missionários da Misericórdia (10 de abril de 2018).

[6] Encontro com um grupo de especialistas que trabalham com a Conferência dos Bispos da França sobre o tema Laudato Si’, 3 de setembro de 2020.

[7] Na “Querida Amazônia”, Francisco assim enuncia essa inevitável ligação entre fascínio e compromisso: “A amada Amazônia se mostra diante do mundo com todo o seu esplendor, seu drama, seu mistério […] endereço esta Exortação para o mundo inteiro. Eu faço isso, por um lado, para ajudar a despertar afeto e preocupação para esta terra que também é ‘nossa’ e convidá-los a admirá-la e reconhecê-la como um mistério sagrado; por outro lado, porque a atenção da Igreja para os problemas deste lugar nos obriga a assumir alguns temas” (QA 1-5).

[8] Ver o resumo histórico apresentado na Laudato Si (LS 3-5).

[9] A história do Sínodo para a Amazônia é contada em SELL, C.E. “Nada será como antes”. A controvérsia eclesiástica sobre o Sínodo dos Bispos da Amazônia (2017-2019). Revista Eclesiástica Brasileira, 80 (316): 282-306, 2020

[10] Ver FRANCISCO. Constituição Apostólica Episcopalis Communio sobre o Sínodo dos Bispos. Roma 15 de setembro de 2018

[11] SÍNODO DOS BISPOS. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Instrumentum Laboris. Vaticano 17 de junho de 2019.

[12] Entre as vozes críticas, destaca-se:

MULLER, G. Dokumentiert: “Zum Offenbarungsverständnis des Arbeitspapiers” der Amazonas-Synode. CNA Deustsch, 16 de julho de 2019. Um teólogo europeu critica aspectos conceituais do documento.

AZCONA, J.L. A Amazônia brasileira não é mais católica, prelado crítica o Instrumentum Laboris do Sínodo. ACI Digital, 20 de agosto de 2019. Um bispo que trabalhou na Amazônia critica os aspectos pastorais e a visão social do documento.

[13] Ver a defesa do documento em SELL, E.C. Op. cit. O artigo assume as principais defesas do Instrumentum e refere-se a outros textos semelhantes.

[14] SÍNODO DOS BISPOS. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Documento Final. Vaticano 26 de outubro de 2019.

[15] RIBEIRO NETO, F.B. Amazônia: a floresta como valor. Ciberteologia, 61: 9-23 (2019).

[16] Ver comentários a “Querida Amazônia” em:

SUESS, P. O sínodo para a Amazônia: entre conveniência pastoral e audácia socioecológica. Caminhos de diálogo, 8 (12): 35-45. Comentário de um teólogo diretamente envolvido na elaboração do Instrumentum laboris.

MULLER, G. “Querida Amazonia” Is a Document of Reconciliation. National Catholic Register, 12 de fevereiro de 2020. Comentários de outro teólogo, já mencionado por sua forte crítica do mesmo Instrumentum.

[17] Uma compreensão correta do pensamento de Francisco implica reconhecer sua ênfase no diálogo (“Quando os líderes dos diferentes setores me pedem conselhos, minha resposta é sempre a mesma: diálogo, diálogo, diálogo”, disse ele na  Reunião com a classe dirigente do Brasil, 7 de julho de 2013), mas sem perder sua valorização do protagonismo dos movimentos populares e sua resistência aos poderes dominantes (cf. Mensagem aos participantes do 3º Encontro Mundial de Movimentos Populares, 5 de novembro de 2016).

[18] A beleza remete à poesia e à literatura, coerentemente Francisco frequentemente menciona poetas que viveram ou são da Amazônia.

[19] Veja WOLFART, G. O Bem Viver é uma teologia indígena. IHU Online, outubro de 2012.

[20] Assim podemos entender, por exemplo, o diálogo entre o Cardeal Angelo SCOLA e Aldo CAZZULLO, La vita buona. Un dialogo sulla Chiesa, la fede, l’amore, la vita e il suo senso (Milão: Mondadori, 2014).

[21] Para uma apresentação mais sistemática do tema da cultura em relação com o diálogo sociopolítico, ver Fratelli tutti (FT 133-155, 215-224).

[22] Sobre uma das questões mais controversas do Instrumentum Laboris, a permissão para ordenar homens casados, Francisco já tinha falado que aprecia o celibato (cf. Conferência de imprensa durante o voo de volta do Panamá, 27 de janeiro de 2019) e nada sugere que ele tinha uma posição diferente para defender.

[23] Ver BOFF, L. El pacto de las catacumbas vivido por el Papa Francis. Servicios Koinonia, 8 de julho de 2014. Durante o Sínodo para a Amazônia, outro grupo, formado por quarenta bispos e outros participantes do evento, fizeram uma reedição atualizada deste Pacto (cf. MODINO, M. Pacto das Catacumbas pela Casa Comum. Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética and Samaritana. IHU Online, 21 Outubro 2019).

[24] A este respeito, para uma crítica, inserida em uma perspectiva construtiva e proveniente da mesma teologia da libertação, ver BOFF, C. Teologia da Libertação e volta ao fundamento. Revista Eclesiástica Brasileira, 67(268): 1001-1022, 2007

[25] Audiência Geral, 10 de outubro de 2012.

[26] Discurso do Santo Padre Francisco no final da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para o Panamazzonica sobre o tema “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, 26 de outubro de 2019.

Caminhos para um Brasil melhor

Francisco Borba Ribeiro Neto

 

Um fenômeno paradoxal acontece com as nações, quando começam a melhorar: o povo, frequentemente, tem a impressão de que as coisas estão piorando! É fácil de entender o que acontece. Em situações muito corruptas e iníquas, as pessoas nem se dão conta das injustiças que estão ocorrendo. Saber que as coisas estão erradas já é um sinal de que elas estão melhorando. Nunca melhoram com a velocidade que gostaríamos, é verdade. Mas, estão melhorando – e isso já é muito importante. Mais assustadora é a crença acomodada que tudo vai bem, sinal de que o esforço pela construção do bem comum está adormecido em nós ou foi entregue a algum demagogo que diz resolver tudo sozinho – quando a verdade é que os problemas nunca são resolvidos sem o esforço e a luta de muitos.

 

Atalhos perigosos

O bem comum nunca é o resultado de um caminho curto. As sociedades humanas se esforçam para consegui-lo desde sempre – muitas vezes avançando, em outras retrocedendo. É natural que desejemos trilhar caminhos mais curtos e rápidos, mas os atalhos frequentemente são enganosos.

Ao longo da história, a Igreja tendeu a olhar com desconfiança a revoluções e golpes justamente por isso. Independentemente da índole e das convicções ideológicas das lideranças – que podiam ser mais honestas ou mais corruptas, mais idealistas ou mais interessadas no próprio poder – as rupturas históricas frequentemente geraram, no curto e médio prazo, violência e opressão. Os vencedores se autoproclamam justos e condenam os vencidos, vitimando multidões de inocentes e retardando, ao invés de acelerar, a construção coletiva do bem comum.

Pode haver rupturas necessárias ou desejáveis? Sim, mas as condições para que sejam úteis são muito exigentes. Têm que ser o resultado de processos construídos ao longo dos anos, que garantam ganhos reais à população e não apenas promessas demagógicas ou falas prepotentes. Não podem ser baseadas em lideranças discutíveis, que denunciam a corrupção quando praticada pelos adversários e a escondem quando praticada por aliados e familiares… E aqui a história recente do Brasil não perdoa a nenhum dos lados – em ambos temos exemplos de supostos defensores da integridade pública que obstruem o combate à corrupção quando eles e seus companheiros são denunciados. Por fim, as rupturas não podem se basear em discursos de ódio e violência, pois esse tipo de postura gera espirais de conflito intermináveis.

Por todos esses aspectos, parece difícil esperar um Brasil melhor a partir de rupturas institucionais…

 

A ruptura na continuidade propiciada pela democracia

A genialidade da democracia é permitir que rupturas aconteçam mantendo-se a continuidade da ordem. Cada vez que a oposição ganha as eleições, acontece uma ruptura, sem que a ordem institucional e a harmonia da vida social sejam quebradas. Nessas condições, a ruptura permite um verdadeiro aperfeiçoamento, e não o caos ou a supremacia do arbítrio, como costuma acontecer em golpes e revoluções.

Nesse caminho, a chave do sucesso é o aperfeiçoamento das instituições. A alternância de pessoas e partidos no poder é salutar, mas não significa que os vencedores são melhores que os perdedores. Contudo, cada grupo tende a mostrar e tentar corrigir os erros do adversário. Com isso, pouco a pouco as instituições vão se aprimorando.

Um dos maiores obstáculos nesse caminho, é justamente a permanência de políticos fisiológicos e corporativistas que não seguem nenhum programa político, apenas se deixam cooptar pelos vitoriosos, na condição de não perderem seus privilégios. Boa parte dos políticos brasileiros estão nesse grupo. É espantoso como líderes que apoiavam a esquerda se tornam a base política da direita quando mudam os ventos políticos – e vice-versa! O triste é que nossos governantes, estejam de um lado ou do outro no espectro ideológico, acabam se apoiando nesses políticos fisiológicos e repetindo os erros do passado.

A única forma de superar essa situação é com o voto, com uma crescente consciência política e participação do povo. O eleitor tem que ter tanto a informação necessária para escolher seu candidato, quanto as condições sociais e políticas para exercer seu direito de escolha. O mecanismo da urna, eletrônica, manual ou impressa, pode ajudar, mas o diferencial real está na participação cotidiana, na construção de espaços de mudança social e política, onde todos podem exercer sua dignidade. Um trabalho que só é dificultado pelo ressentimento e pela violência.

 

Aperfeiçoar as instituições

Aos olhos da doutrina social da Igreja, em todos os tempos, o compromisso ético das personalidades públicas e de todos nós é uma das bases para uma política melhor. Contudo, a sabedoria cristã nunca deixou de denunciar as limitações e os pecados de todos os seres humanos. Por isso, sabe que pessoas justas não se propõem a construir o bem comum só com base em seu poder individual. O bom político está sempre procurando construir instituições mais justas, que representam uma limitação ao despotismo de qualquer um – inclusive das tendencias autoritárias que ele mesmo pode ter.

A “fulanização”, supondo que o bem comum será construído com a destituição desse ou daquele “Fulano”, e não com o aperfeiçoamento das instituições, não constrói um país melhor. As polêmicas em torno dos atuais ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são um bom exemplo dos limites e dos retrocessos que podem acontecer com essa “fulanização”.

Todos temos vistos os muitos problemas que cercam a atuação do STF no Brasil. Em certos momentos, os ministros parecem conviventes com os poderosos, em outros momentos parecem perseguir os políticos com os quais não simpatizam. São acusados de ativismo judiciário (interpretarem a Constituição com critérios ideológicos e particulares) ou de garantismo (invocarem direitos reconhecidos constitucionalmente mas que acabam impedindo a condenação dos culpados). Os mecanismos de decisão são frequentemente autocráticos, de modo que a decisão de um ministro pode ser totalmente oposta à de seu colega para uma situação equivalente. Esse conjunto de problemas têm levado a uma desconfiança crescente da população e uma insegurança jurídica trágica para o País.

Existem muitas propostas circulando nos meios jurídicos e políticos para superar ou minimizar esses problemas. Sem entrar no mérito de quais propostas seriam melhores, quais seriam piores, podemos listar algumas. Por exemplo, democratizar a escolha dos ministros, que hoje depende apenas do presidente e do Senado, incluindo a participação de associações de magistrados, Ordem dos Advogados do Brasil e outras instâncias. Hoje, os ministros são praticamente vitalícios, poderiam ter mandatos, mesmo que longos, como os dos senadores. Reduzir as situações em que os políticos têm fórum privilegiado, de modo que o STF não seja a única instância de julgamento dos eleitos. Obrigar os magistrados a tomarem decisões compartilhadas em situações que envolvem a política e o bem comum, reduzindo o risco de decisões autocráticas…

O importante aqui não é dizer o que fazer em relação ao STF, mas sim mostrar que, quando pensamos em rupturas ou decisões personalistas, apoiando ou condenando essa ou aquela personalidade pública, nos afastamos de um caminho de real melhoria da vida institucional e da política brasileira.

 

Veja também: A sabedoria cristã diante da política em tempos de raiva e ressentimento

A sabedoria cristã diante da política em tempos de raiva e ressentimento

Francisco Borba Ribeiro Neto

Vivemos um momento de tensão, confronto, ressentimento e raiva na sociedade brasileira. É um tempo que exige sabedoria e um discernimento justo, que supere polarizações e instrumentalizações de qualquer tipo.

A política brasileira é marcada por anos de escândalos de corrupção, sinais de irresponsabilidade, desinteresse pelo bem comum, desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Esse contexto alimenta e é alimentado por partidarismos extremados, numa espécie de grande bola de neve.

Os valores em que acreditamos, nossas famílias, a felicidade de nossos filhos, nosso direito de dizer o que pensamos, nossa liberdade individual e nossa própria vida… Tudo parece estar em risco. Não só por causa do coronavírus, mas também pelas maquinações dos poderosos, sejam eles grandes capitalistas ou políticos populistas, globalistas ou nacionalistas, grandes jornais ou disseminadores de fake news. Ironicamente, aqueles que um lado considera os defensores do povo, o outro acusa de manipulações e desrespeitos à dignidade da pessoa e ao bem comum.

A esquerda acusa a direita, a direita acusa a esquerda, Com certeza, os dois lados têm acertos e erros, pessoas bem e mal-intencionadas – pois assim somos nós, seres humanos, sempre falíveis e contraditórios, por mais que procuremos o bem. O salmista, em seus versos, não cansa de advertir os que confiam na força dos seres humanos de que sua esperança é vã, que as forças humanas não podem salvar. Numa das mais grandiosas poesias católicas do século XX, os Coros de “A rocha”, T.S. Eliot denuncia a ilusão de querermos construir sistemas tão perfeitos que tornassem desnecessário sermos bons. É sábio não confiar nas forças e nos sistemas humanos, reconhecer sempre a frágil condição na qual estamos, nós que – de uma forma ou de outra – sempre seremos sujeitos à fragilidade de nossa coerência moral.

Contudo, a galopante repetição de escândalos de corrupção, impunidade, corporativismo e nepotismo envolvendo nossos legisladores, magistrados e governantes nos lança um outro desafio: será possível ter alguma esperança na política brasileira? Essa desilusão e esse derrotismo, obviamente, não são justos, mesmo que compreensíveis em muitos momentos. A questão adequada é conhecer a justa esperança que podemos e devemos ter na vida política nacional.

A falta de fé e a pretensão neopelagiana

Para o cristianismo, um momento como esse, seja ou não mais difícil que tantos outros da história, carrega dois perigos. O primeiro, mais evidente, é a falta de fé e de esperança, sobre a qual já refletimos em outro artigo. O segundo, mais sutil, mas não menos perigoso, é – com o desespero e a desilusão – confiarmos apenas na força e na coerência (nossa ou de algum líder poderosos) para nos salvar – uma velha heresia à qual o Papa Francisco se refere ao falar do neopelagianismo, na Evangelii Gaudium (EG 93ss).

Deus quer nossa colaboração para salvar tanto o gênero humano quanto cada um de nós pessoalmente. Contudo, quer que trabalhemos sempre à luz da Sua graça. Como dizia Santo Inácio de Loyola, lembrado por Bento XVI: “Age como se tudo dependesse de ti, mas consciente de que na realidade tudo depende de Deus”. Mesmo na hora mais escura, mais cheia de incertezas, Ele pode nos salvar. Mesmo quando temos o poder e o mundo parece seguir nossos valores e desígnios, acabamos por servir ao Mal, se não é Ele quem edifica (cf.  Sl 127).

A assiduidade a uma vida espiritual humilde, que busca sempre a comunhão com Cristo e sua Igreja, é sempre a melhor resposta ao neopelagianismo. Mas o lobo muitas vezes se veste de cordeiro e nós também nos enganamos mesmo que com boas intenções. No Evangelho, Jesus nos exorta a sermos “”prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas” (Mt 10, 16), mas – quando somos consumidos por essa pretensão de salvar, com nossas próprias forças, a nós mesmos, a Igreja e o mundo – agimos como serpentes, tendo a inteligência de pombas…

Três sinais a evitar

O sinal mais inequívoco da tentação neopelagiana é acreditar que ter o poder é a condição para salvarmos o mundo. Se as coisas vão mal, é porque os nossos adversários têm o poder, se nós ou nossos amigos estão no poder, tudo automaticamente nos parece bom. Como diz o Papa Francisco, na Laudato si’: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder […] A verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder […] A liberdade [do ser humano] adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal” (LS 105).

Um segundo sinal é a raiva e a violência. O poder, por si só, faz muitas coisas, mas não consegue nos conduzir ao caminho do bem e da verdadeira realização pessoal. Assim, ficamos cada vez mais frustrados e tendemos a culpar cada vez mais os outros pelos nossos infortúnios. Gente que não tem nada a ver com nossa vida passa a ser culpada pelos nosso problemas e frustrações. Em tudo vemos ideologias nefastas (que podem até estar presentes, mas não podem ser a única coisa para as quais olhamos) e só em nós mesmos e em nossos amigos vemos a bondade e a beleza (que cada vez são mais uma falsa bondade e uma falsa beleza, construída a nossa imagem, e menos aquelas nascidas do coração de Deus).

E, por último, perdemos a capacidade de construir, pois não agimos mais segundo a lógica da caridade. Não paramos de denunciar o mal, mas não conseguimos edificar o bem. É a tragédia de tantos que denunciam, com toda a justiça, os males do mundo, mas não apontam um caminho novo de construção do bem.

Nesses tempos de medo e raiva, que nossa vida seja definida pelo Amor que constrói um mundo melhor e não pela violência que só denuncia o mal, impotente para construir o bem.

Uma questão de paciência histórica

O Papa Francisco, com uma sabedoria que a Igreja adquiriu observando a história e o fracasso de muitas revoluções, nos lembra sempre da necessidade de termos paciência e tenacidade. Em suas palavras, “o tempo é superior ao espaço” (Evangelii gaudium, EG 222-225). É claro que todos nós gostaríamos de mudanças rápidas e eficazes. Mas as coisas não acontecem assim. Frequentemente “trocamos seis por meia dúzia”. Pior, algumas vezes trocamos “seis por cinco”. Contudo, se hoje trocarmos “seis por seis e meio” e amanhã “seis e meio por sete”, e assim por diante, estaremos construindo um futuro melhor.

A pretensão de querer mudar rapidamente a realidade é uma das maiores razões para nossas desilusões. Achamos que um governante, um partido ou um juiz irão fazer a diferença e resolver nossos problemas. Mas apesar de ser fundamental existir pessoas que façam a diferença, elas sozinhas não mudarão a realidade. Sozinhas ou com todos nós, também não conseguirão mudar radicalmente a realidade num único golpe. A mudança eficaz é um processo continuado que conta com o apoio e a colaboração da maioria.

Francisco, no texto citado, diz que o importante é investir em processos que constroem um povo. Na Fratelli tutti, o Papa diz que “para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, necessita-se do termo ‘povo’. A verdade é que há fenômenos sociais que estruturam as maiorias, existem megatendências e aspirações comunitárias; além disso, pode-se pensar em objetivos comuns, independentemente das diferenças, para implementar juntos um projeto compartilhado; enfim, é muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho coletivo” (FT 157). Toda sociedade está atravessada por contradições e conflitos. Pensar um povo não significa negar os problemas, mas sim reconhecer alguns elementos que podem transcender os conflitos e orientar a construção da sociedade como um todo.

Democracias são mais estáveis, combatem a corrupção e cumprem melhor sua função de garantir o bem comum na medida que são o reflexo da existência desse “povo”, que tem consciência de sua responsabilidade para com a organização da sociedade. Um povo politicamente maduro se reconhece responsável pelo bem comum. Sabe que os governos são o reflexo do compromisso compartilhado e praticado por todos os cidadãos.

No Brasil, tendemos a pensar que é só o governo que tem que zelar pela qualidade de vida dos cidadãos. Ainda somos, nesse aspecto, uma sociedade pouco participativa e pouco responsável pelos destinos da nação. E a contrapartida a essa sociedade pouco participante é um Estado centralizador, sempre com tendências autoritárias. Notem que o autoritarismo não se reflete apenas nos atos ditatoriais ou no desrespeito ao desejo da maioria. Ele está presente, por exemplo, quando escutamos aquela famosa frase “você sabe com quem você está falando?”, ou quando os homens públicos desrespeitam as leis e aos demais cidadãos em função de seu poder institucional.

As pessoas e as instituições

No seu discurso inaugural da Conferência dos Bispos da América Latina e do Caribe, em Aparecida (2007), Bento XVI disse: “As estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Porém, como nascem? Como funcionam? As estruturas justas […] não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal […] As estruturas justas jamais serão completas de modo definitivo; pela constante evolução da história, hão de ser sempre renovadas e atualizadas; hão de estar animadas sempre por um ethos político e humano, por cuja presença e eficiência se trabalhará cada vez mais”.

As estruturas justas não caem do céu. Ao contrário, precisam ser construídas por pessoas comprometidas com o bem comum, animadas por esse “ethos político e humano”, que – nos dizeres de Francisco – é a alma de um povo. Existe sempre uma retroalimentação em política. Bons líderes criam boas estruturas e essas boas estruturas nos ajudam a escolher bons líderes. Maus líderes criam más estruturas, que não nos permitem escolher bons líderes.

A esperança justa, na política, é aquela que nasce dessa construção cotidiana, que acontece em pequenos passos, no acompanhamento aos trabalhos voltados ao bem comum. Pouco a pouco, novos políticos – mais conscientes e comprometidos – vão ganhando seus espaços. Pouco a pouco, acontecem mudanças institucionais que coíbem os corruptos e dão mais oportunidades aos honestos. Num mandato, nosso candidato está no poder, em outro, está na oposição. Avançamos dois passos, talvez retrocedamos um… O que importa é que caminhamos para uma sociedade melhor.

Quando desanimamos, não é porque não existam coisas boas acontecendo. Desanimamos porque olhamos só para os erros dos poderosos e não vemos as coisas boas que continuam acontecendo, frequentemente pequenas, mas com potencial para crescer. E, frequentemente, não vemos essas coisas boas acontecerem porque não estamos suficientemente envolvidos ou atentos para com os processos – talvez pequenos, mas carregados com um sabor de esperança – que constroem um povo (cf. EG 224).

 

As cartas polêmicas, de bispos e padres, denunciando o governo Bolsonaro

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Duas cartas, uma assinada por 152 bispos, outra por 1058 padres, denunciando o caráter antiético do governo Bolsonaro tendem a aumentar ainda mais a polarização e a divisão interna na Igreja Católica, no momento em que nos preparamos para a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021, cujo tema é “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”.

Ainda que a missão da Igreja não possa se confundir com a política partidária, os católicos, tanto como cidadãos quanto como seguidores de Cristo, têm a obrigação de denunciar as injustiças e lutar pelo bem comum (cf. Gaudium et spes 75-76, Compêndio da doutrina social da Igreja, CDSI 81-82). Como os governos, sendo quais forem, são criações humanas que jamais estarão totalmente certos ou totalmente errados – ainda que sempre possam estar “mais certos” ou “mais errados” – torna-se difícil encontrar o justo equilíbrio no qual a “denúncia profética” não se torna “propaganda partidária”.

Para os leigos católicos, o problema diante dessas cartas não deveria ser o de julgar se os bispos e padres estão certos ou errados em se posicionar. Esse é, indubitavelmente, seu direito como cidadãos e a maioria das críticas feitas a eles acabaria por aumentar a polarização e a ideologização entre os cristãos. A questão justa deve ser como utilizar essas cartas como instrumentos para um melhor discernimento e para a construção de um caminho unitário em prol do bem comum.

 

Reconhecer a pluralidade para buscar a verdade

A pluralidade é uma marca do catolicismo. As pesquisas políticas antes das eleições, mostram que os votos da comunidade católica tendem a distribuir-se entre vários candidatos, aproximando-se do perfil da população em geral, enquanto as demais confissões religiosas tendem a concentrar mais seus votos em um ou outro candidato.

Em função dessa pluralidade, a grande contribuição dos católicos, na construção de uma sociedade democrática, não reside na radicalização do discurso, mas no diálogo que permite que cada um aprimore sua visão da realidade. O importante não é convencer os eleitores da esquerda de que a esquerda está certa, ou os de direita de que é a direita que está certa.

A grande contribuição acontece quando um eleitor, seja ele de esquerda ou de direita, reconhece (mesmo que seja só em parte) os acertos do lado oposto e os erros de seu lado. Esse reconhecimento, fruto do diálogo e do amor fraterno, permite a superação das ideologias e a correção de rota, num caminho que leva ao bem comum.

 

A lógica do poder versus a lógica do amor

A política partidária tem uma lógica totalmente oposta à do cristianismo. Na luta política, procura-se justificar tudo que é feito pelos correligionários e desmerecer tudo que é feito pelos adversários. O interesse partidário nos leva a negar o bem feito por nossos adversários, ao mesmo tempo que minimizamos as consequências ou até negamos os erros de nossos aliados.

Jesus, por outro lado, ensina: “Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam… Se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo” (Lc 6, 27-33). Essa lógica, aplicada ao embate político, poderia ser expressa assim: “Se reconheceis apenas o bem feito por seus aliados e só condenais o mal feito por seus adversários, que contribuição dais para a construção da justiça? Também os políticos corruptos, sejam de esquerda, direita ou centro, agem assim”.

Se quisermos construir o bem comum, temos que reconhecer erros e acertos, venham de onde vierem, desde que devidamente fundamentados. Nesse tempo de desinformação generalizada, é difícil acreditar naquilo que se ouve. Mas a busca da verdade em relação aos fatos pode estar exigindo mais esforço, mas permanece possível.

 

A busca da verdade

Nem tudo que nossos amigos dizem é verdade, nem tudo que nossos adversários dizem é mentira. Temos que desconfiar sempre de uma afirmação que não traz dados que a corroborem, bem como daqueles que negam uma ideia, mas não trazem dados para mostrar que ela está errada.

Não é realista acreditar que o mundo todo conspira contra nós; que a comunidade científica, que há séculos promove o desenvolvimento material da humanidade, agora se tornou totalmente mentirosa; que os mesmos jornais que ontem acusavam a esquerda no poder, hoje querem maldosamente atacar a direita.

Temos que ter claro que um mundo de ideologias não será superado por novas ideologias, mas por realidades objetivas onde se constrói o bem comum. Grande parte das mazelas da política brasileira atual nascem da tentativa de contrapor discursos de esquerda com discursos de direita, deixando de lado os problemas reais e as melhores formas de solucioná-los.

 

As críticas amplamente aceitas

Com essas questões de fundo postas, vejamos os pontos abordados nas cartas. Uma análise detalhada de cada tópico foge ao alcance de um único artigo e deve ser feita por cada um, mas algumas observações gerais são possíveis e razoáveis.

Na questão da COVID-19, o presidente apostou na minimização da doença e se mantém ambíguo mesmo depois que até maioria dos governos céticos sobre a pandemia (como Estados Unidos, Inglaterra e Suécia) se renderam à necessidade de isolamento social. A insistência no uso de medicamentos com efeito discutível confunde a opinião pública, mas quanto mais o governo insiste no uso da cloroquina, mais a comunidade científica produz trabalhos corroborando sua ineficiência. Supor que a comunidade científica, todas as agências internacionais e os governos com mais recursos científicos estão iludidos, mentem ou não se importam com o colapso das economias nacionais é tão pouco realista como acreditar ainda hoje que a Terra é plana… Perdoe-me o leitor terraplanista.

Os dados sobre o aumento do desmatamento da Amazônia até agora não foram contestados efetivamente. Alguns autores argumentam, até com bases científicas, que as projeções do INPE podem estar aumentando o problema – mas nenhum mostrou dados e projeções alternativas mostrando que o desmatamento não aumentou na gestão bolsonarista. Pior: até mesmo os empresários que atuam na região sentem-se prejudicados e desconfortáveis com a insistência do governo em negar o aumento do desmatamento naquela região. Prefeririam uma política mais centrada em controlar o desmatamento e valorizar as ações ambientais dos produtores sérios da região.

A gestão do Ministério da Educação também é amplamente reconhecida como desastrosa. O combate à ideologização do ensino deveria acontecer por meio de uma melhoria da qualidade. O que se viu, contudo, foi uma troca de ideologias, com afirmações polêmicas e falta de direcionamento para a resolução dos problemas reais. O peso da ideologia sufoca as iniciativas boas – tanto as do governo atual quanto as dos precedentes.

 

O ponto polêmico

O grande problema, que incomoda a muitos, é que essas cartas condenam “a economia que mata”, nos termos de Francisco (Evangelii gaudium, EG 53). O Papa seria ingênuo, não percebendo que essas palavras abririam a porta para o comunismo, o fim das liberdades individuais e a destruição dos valores cristãos. Será verdade? Vejamos essa passagem de São João Paulo II, em sua viagem ao Brasil de 1991:

“A doutrina social católica repudiou sempre a organização da sociedade baseada num determinado modelo de capitalismo liberal, justamente qualificado de ‘capitalismo selvagem’, que tem como notas dominantes a procura desenfreada do lucro, unida ao desrespeito pelo valor primordial do trabalho e pela dignidade do trabalhador. Esta procura não raro é ‘acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis, fundados em atividades ilegais’ […] Repudiou, igualmente, a Igreja as soluções perversas do coletivismo marxista, que asfixia a liberdade, sufoca a iniciativa, reduz a pessoa humana à condição de simples peça de uma engrenagem, fomenta o ódio e acaba no empobrecimento, que pretendia superar […] É na fidelidade a Cristo, seu Fundador, que a Igreja, sem propor modelos concretos de organização político-social, oferece, ‘como orientação ideal indispensável, a sua doutrina social’ (Centesimus Annus, CA 43)”.

Se entendemos como “economia que mata” a esse “capitalismo selvagem” aludido por São João Paulo II, temos que reconhecer que ele sempre foi condenado pela doutrina social da Igreja. Denunciá-lo é um dever cristão. Mas, e o perigo da instrumentalização por grupos políticos? As denúncias não serão manipuladas ideologicamente na medida em que vierem acompanhadas de propostas claras para a construção do bem comum.

Denúncias justas devem ser acompanhadas por propostas realistas e um compromisso efetivo. Esse é o grande desafio que as duas cartas, dos bispos e dos padres, lançam particularmente aos leigos, principais responsáveis pelo empenho político cristão: denunciar os erros que existem, propondo alternativas que os superem, sem cair nos erros do passado.

O protagonismo da pessoa e da sociedade frente ao coronavírus: um tema para a doutrina social da Igreja

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

 

A pandemia da Covid-19 está gerando não apenas uma crise epidêmica, mas também uma grave recessão financeira. Juntos, os dois fenômenos estão levando a um colapso social como nunca visto em nosso mundo globalizado. A grande resposta da doutrina social da Igreja para contextos como esse é a solidariedade. Contudo, só a solidariedade não basta para criar a postura humana adequada para enfrentar a situação. Também necessitamos da subsidiariedade, provavelmente o conceito menos conhecido e compreendido da doutrina social da Igreja:

“O princípio de subsidiariedade deve ser mantido estritamente ligado com o princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (Bento XVI, Caritas in veritate, CV 58).

A palavra subsidiariedade significa “ajuda, auxílio”. Na doutrina social da Igreja, indica que o Estado deve apoiar as iniciativas das pessoas e da sociedade, sem tentar controlá-las, que aqueles que têm mais poder devem apoiar aqueles que têm menos. Se olharmos com atenção, veremos que é o inverso da lógica que rege, hoje em dia, a relação entre os governos e o chamado Terceiro Setor. Imaginamos que o Estado deve fazer tudo e o Terceiro Setor deve fazer aquilo que o governo não consegue, mas sempre sobre a supervisão desse último. Pelo princípio da subsidiariedade, o Terceiro Setor deve ter o protagonismo, buscar as soluções que considera mais adequadas para os problemas, e o Estado deve apoiar, complementar e coordenar essas iniciativas, para que sirvam realmente ao bem comum.

Como o termo é estranho aos latino-americanos, utilizamos algumas expressões que procuram “traduzir o conceito” à nossa realidade, Assim, subsidiariedade pode ser entendida como protagonismo da pessoa e da sociedade, descentralização do governo ou “poder-serviço” (pois o poder passa a funcionar como um serviço e não como um controle à vida social).

 

Subsidiariedade, liberdade e responsabilidade

É fundamental perceber que o protagonismo da pessoa não se confunde com uma autonomia irresponsável dos indivíduos ou com a omissão do Estado diante da garantia do bem comum. Numa proposta subsidiária, os governos devem coordenar (o que é diferente de dirigir ou impor) tanto as atividades sociais quanto a economia. Além disso, funções necessárias ao bem comum e que não podem ser desempenhadas pelos membros da sociedade continuam cabendo ao Estado. Vejamos três exemplos tirados da situação atual.

1) As regras de isolamento social, sejam elas quais forem, não podem ser estabelecidas por cada família individualmente. Sejam mais restritivas ou menos, essas regras precisam valer para todos, para serem efetivas. Assim, criar normas e zelar para que sejam seguidas por todos não é uma objeção à liberdade individual, mas uma condição para que todos exerçam sua liberdade com responsabilidade.

2) Na maior parte dos países, o setor privado não consegue se adaptar às necessidades urgentes de aumento de leitos em UTIs e de readequação do sistema de saúde para atender aos infectados. Cabe ao Estado arcar com essa responsabilidade e esses custos, para o bem de toda a população.

3) Já se iniciou, entre empresários, uma campanha para evitar demissões – o que é muito bom e necessário para que a população seja menos sacrificada e a economia possa ser retomada com mais vigor depois da pandemia. Contudo, se quase todos os empresários de um determinado setor não demitirem, os poucos que demitirem para ajustar seus custos poderão estar numa situação mais favorável que os demais. Se o Estado cria linhas de crédito subsidiado condicionadas à não demissão de funcionários (como fez o governo dos Estados Unidos), apoia os empresários mais solidários, sem usar medidas coercitivas.

 

A impotência do Estado sem cooperação da sociedade

A comparação entre a experiência de vários países mostrou que os governos, apenas por medidas impositivas, não conseguem garantir um adequado isolamento social para reduzir a propagação do vírus (não importa, num primeiro momento, se “horizontal” ou “vertical”). É necessário contar com a cooperação da população. Quando não há essa colaboração, o Estado deve lançar mão de medidas cada vez mais autoritárias para forçar os cidadãos a ficarem em casa e respeitarem as normas de segurança.

O chamado “isolamento vertical”, que segrega grupos de risco e portadores do vírus, é – sem dúvida – o ideal, pois impacta menos a atividades econômica e as condições de vida da população. Contudo, para ser viável, depende não apenas da fase de propagação da doença e da existência de recursos técnicos disponíveis, mas também da colaboração da população. Sem essas três condições (fase da propagação, recursos técnicos e colaboração dos cidadãos), o “isolamento horizontal”, muito mais difícil para todos, se torna a única opção possível para evitar a disseminação do vírus e a ocorrência de ainda mais mortes.

 

Atenção para com o específico e o local

Uma decorrência desse protagonismo da pessoa e da sociedade é o apoio a uma infinidade de respostas locais, nascidas da criatividade das pessoas que vivem os problemas. Nessa pandemia, estamos vendo, por exemplo, como favelas que já tem associações de moradores e obras sociais robustas estão se auto-organizando para minimizar os efeitos tanto da Covid-19 quanto da recessão econômica. São iniciativas como a contratação de carros de som para explicar o que está acontecendo à população, com linguagem acessível, ou a distribuição de marmitas feitas pela própria comunidade, que está com dificuldade para trabalhar, em condições sanitárias adequadas ao enfrentamento do vírus.

Sem o apoio do Estado e a solidariedade do restante da sociedade, iniciativas desse tipo se perdem como propostas emergenciais bem intencionadas, mas que muitas vezes nem sequer têm força para se manter pelo período necessário. Mas, se convenientemente incentivadas e apoiadas, não apenas podem ser muito adequadas como também representarem o embrião de novas políticas públicas e formas de organização da população.

Num país com dimensões continentais como o Brasil, grandes diferenças regionais entre modo de vida e atividades econômicas, setores da população muito ricos e outros muito pobres, o enfrentamento a Covid-19 terá que se adaptar às peculiaridades regionais e sociais. Isso só será possível se forem realizadas ações descentralizadas, mas coordenadas. Tanto a centralização excessiva quanto a falta de coordenação serão catastróficas num momento como o atual.

 

Diálogo

Solidariedade e subsidiariedade sempre devem caminhar juntas se quisermos construir o bem comum. Mais ainda num momento de crise como o atual. Uma terceira palavra, fundamental para as duas primeiras, é diálogo. Será ele que permitirá que a sociedade trilhe um caminho solidário, com um apoio subsidiário do Estado. Nessa perspectiva, a leitura do capítulo V da Laudato si’, que propõe cinco diálogos necessários para o bem comum e o cuidado com a natureza, é particularmente enriquecedora.

 

Imagem: Robson Leandro da Silva, Flickr

A Mangueira, os justos de Sodoma e Bento XVI

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Num Brasil onde a questão religiosa se reveste de uma cada vez maior relevância no debate político-cultural, começamos esse ano com o episódio envolvendo um grupo de comediantes que ridicularizavam passagens do Evangelho e agora temos o desfile da Mangueira, que buscava retratar a vida de Cristo associando-O a diferentes grupos vítimas de violência e discriminação no Brasil. Mas, apesar das situações parecerem semelhantes, podem ser um pouco diferentes.

 

Escracho ou busca sincera?

Sem querer julgar um caso ou outro, comecemos por uma análise genérica de episódios desse tipo.

Em alguns casos, temos o escracho proposital, a intenção explícita de ridicularizar talvez não a Cristo, mas sim os valores da comunidade cristã e provocar as pessoas mais afeitas a esses valores.

Em outros, existe um desejo de identificar-se com Cristo. Antes de ser um ataque aos cristãos, é uma tentativa – frequentemente mal orientada – de encontrar a Cristo.

Nos dois casos, contudo, se acaba por ferir a sensibilidade religiosa de muitas pessoas. Para a mentalidade hegemônica em nossa sociedade (que não é obrigatoriamente a da maioria da população) o desrespeito motivado por questões étnicas ou sexuais é imperdoável, mas os religiosos teriam a obrigação de não se sentirem ofendidos com nada. Assim, o sentimento de desrespeito é rotulado como intolerância.

Com isso, tanto o escracho proposital como a tentativa de uma aproximação bem-intencionada a Cristo se igualam e, em função do confronto entre intolerância ou desrespeito, nada de bom acaba nascendo. Os que desejavam identificar-se com o Cristo sofredor perdem a simpatia dos cristãos mais devotos e esses cristãos passam a ter mais dificuldade de apoiar o sofredor, se afastando do lema da Campanha da Fraternidade 2020: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.

 

Como diferenciar as duas situações?

Existe um critério simples e objetivo para entender em qual das duas situações nos encontramos: nada de bom nasce do escracho, enquanto a busca sincera sempre leva ao encontro de um valor, mesmo que não seja aquele esperado por nós em teoria.

Vale ressaltar que não se trata de uma questão apenas objetiva. Toda interação com o Senhor passa pela liberdade humana. Sendo assim, um gesto bom pode ser desvirtuado por alguém que não procura o bem e a verdade. Por outro lado, um gesto mal não se torna bom pela vontade humana, mas Deus pode se valer até mesmo dele para tocar um coração que busca sinceramente.

 

O desfile da Mangueira

Se acompanharmos as repercussões do desfile da Mangueira de 2020, encontraremos muitas pessoas que se sentiram mais próximas do cristianismo em função dele. Alguns reconheceram essa proximidade, mas aproveitaram para criticar nossas comunidades e a Igreja, que não estariam à altura da mensagem de Cristo.

Um problema do desfile, típico de nosso tempo, foi a polarização partidária em torno do tema. Cristo veio, de fato, para os pecadores e para os que sofrem (cf. Lc 5, 29-32, Mt 11, 28-30), mas não pode ser encontrado pelos que se dizem seguidores de Paulo ou Apolo (cf. 1Cor 1, 10-13),

Todo passo que aproxima a pessoa de Cristo é positivo. Nossa responsabilidade é ajudarmo-nos mutuamente a sempre dar mais passos nesse caminho.

 

O diálogo

A busca pelo diálogo sempre é a melhor estratégia nessas situações, pois não pode ser rotulada como “intolerante” e nos ajuda a viver mais a verdadeira caridade cristã. Diante de pessoas que, buscando uma identificação com Cristo e não o escracho, acabam ofendendo a muitos cristãos e seus valores, o diálogo é ainda mais necessário.

Contudo, esse diálogo terá pouca chance de sucesso se começar no momento que o evento polêmico está para acontecer. Nessas horas, as propostas já estão definidas e as pessoas têm mais dificuldade para compreender a posição do outro e se adaptar.

O encontro e o cuidado cotidiano com o nosso próximo que sofre são os instrumentos que nos capacitam a fazer esse diálogo nos momentos críticos – sem cair em relativismos ou aceitar o desrespeito, mas sim orientando-nos pelo mandamento do amor.

 

Os justos de Sodoma

Num primeiro momento, talvez não encontremos muitos interlocutores para esse diálogo. Nesse caso, a interpelação de Abraão a Deus, no episódio de Sodoma, pode nos dar o ânimo necessário (Gn 18, 16-33).

Deus quer destruir a cidade, mas Abraão pergunta-lhe se destruiria a cidade se houvesse nela uns poucos justos. No final, Deus concorda que pouparia a cidade mesmo que os justos fossem apenas dez.

Os sodomitas justos não estavam em outra cidade. Pelo contrário, habitavam a mesma Sodoma daqueles condenados pelo Senhor. Os bem-intencionados que buscam a Deus em contextos que chocam a muitos cristãos se encontram justamente em ambientes aparentemente inesperados.

Deus, que tudo sabe, contava com a intercessão de Abraão para salvar os sodomitas justos. Hoje, conta conosco para ser encontrado por todos os justos do mundo.

 

Bento XVI e os que buscam a Deus

Ocasiões como a do desfile da Mangueira nos convidam a procurar entender e apoiar ainda mais a nossos irmãos. Diferenças ideológicas ou até mesmo uma certa oposição ao cristianismo não podem impedir-nos nessa caminhada.

Nesse sentido, a declaração mais dura da qual me recordo não vem do “progressista” Francisco, mas do “conservador” Bento XVI. Comentando a passagem em que Jesus diz que os publicanos e as prostitutas entrariam no Reino dos Céus antes dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas (Mt 21, 31-32), o Papa diz: “agnósticos que, por causa da questão de Deus, não encontram paz e pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e sentem desejo dum coração puro estão mais perto do Reino de Deus de quanto o estejam os fiéis rotineiros, que na Igreja já só conseguem ver o aparato sem que o seu coração seja tocado por isto: pela fé”.

O aborto no Globo de Ouro

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Na premiação do Globo de Ouro deste ano, uma atriz fez furor ao se declarar grata por viver numa época em que as mulheres têm “direito de escolha”, pois se não tivesse optado por um aborto não teria ganho aquele prêmio.

A declaração não choca apenas militantes pró-vida. Pais e mães geralmente consideram os filhos como seu maior tesouro. Prêmios, bens e dinheiro vêm e vão, mas cada filho é insubstituível. Outros poderão vir, mas o lugar daquele que se foi permanece para todo o sempre.

O que torna possível a posição humana dessa atriz? O relativismo atual dirá que cada um tem a sua experiência e que aquilo que é vivido por uns não precisa ser vivido por todos. De certa forma é verdade, mas quem viveu as alegrias de um filho sabe que a alternativa do aborto, mesmo que possível, não é tão gratificante, não realiza tanto a nossa humanidade quanto aquela criança poderia ter realizado.

Mas nenhuma experiência realmente humana, por mais natural que seja, pode ser confiada à instintividade. Existe sempre um caminho educativo mostrando que aquilo é o que mais nos realiza. Se esse caminho não é trilhado, podemos chegar – mesmo com boa intenção – a conclusões desumanas, para conosco mesmo e para com os demais.

Bento XVI, numa entrevista em sua viagem ao Brasil, declarou: “A vida é um dom de Deus e não uma ameaça. Parece-me que [… na defesa do aborto] haja um certo egoísmo e uma dúvida sobre o futuro. E a Igreja responde […] a vida é bela, não é algo duvidoso, mas é um dom e, também em condições difíceis, permanece sempre um dom. Portanto voltar a criar esta consciência da beleza do dom da vida. E [… sobre] a dúvida do futuro: naturalmente há tantas ameaças no mundo, mas a fé dá-nos a certeza de que Deus é sempre mais forte e permanece presente na história e, portanto, podemos, com confiança, também dar a vida a novos seres humanos. Com a consciência de que a fé nos dá sobre a beleza da vida e sobre a presença providente de Deus no nosso futuro podemos resistir a estes medos”.

O Papa não se detém na explicação do egoísmo. Com o tempo, o erro se demonstra a si mesmo. Bento XVI quer mostrar como os cristãos podem e devem “virar o jogo”. Não se prende à denúncia do erro, necessária, mas pouco efetiva para quem está desesperado ou já perdeu a razão de ser de certos valores. O caminho passa por mostrar novamente uma beleza da vida que acabou ficando oculta, ajudar a recuperar a confiança e a esperança no futuro daquela criança e de sua mãe, que muitas vezes imagina que cuidar do filho implica em negar a si mesma.

Muitos questionam “com que moral” os cristãos condenam o aborto. Em primeiro lugar, é importante notar que condenar o aborto não quer dizer condenar pessoas, mas sim atos. Não podemos aceitar uma legislação que consente com um assassinato, mas o maior esforço não é para condenar quem quer abortar ou quem aborta, e sim ajudar essas pessoas a optar pela vida.

Para os cristãos, “a moral” para condenar o aborto nasce dos muitos movimentos, associações e pessoas que se solidarizam com as grávidas em situação difícil, que as apoiam no plano material, psicoafetivo e espiritual, para que possam redescobrir e optar pela beleza e pela esperança. Felizmente, esses movimentos são muitos. Em São Paulo, eu particularmente conheço Filhos da Luz (https://filhosdaluzassociacao.com.br/, e-mail filhosdaluzassoc@gmail.com).

Afinal, se ficássemos só na denúncia, nossa postura – mesmo que justa – seria realmente pobre.

 

Artigo originalmente publicado no jornal “O São Paulo”, em 22 de janeiro de 2020.

Listinha de Natal

Marcelo Cavallari, escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila”, para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella. 

Recebi um desses videozinhos que circulam no WhatsApp e, sendo as redes sociais o que são, pouca gente a essa altura deve ter conseguido se manter imune a ele. É sobre o Natal e, curiosamente, parece-me ser uma das coisas mais anticristãs que já vi. E das mais explicitamente anticristãs.

Disfarçado de algo “do bem” é também, parece-me, muito mais pernicioso do que piadas grosseiras, com as quais humoristas e mídias procuram ganhar mais dinheiro neste fim de ano.

Para quem escapou do videozinho, descrevo-o. Uma mão cujo dono não aparece traça uma lista de tarefas para o Natal: comprar presentes, comprar comida, comprar roupa nova etc. A mesma mão, em seguida, “corrige” a lista que se torna: estar presente, doar comida etc. Não há dúvida de que se gasta muito mais tempo, dinheiro, energia com presente, roupa e comida no Natal do que com o nascimento de Jesus, que é o que se deveria estar celebrando. Mas, como o diabo mora nos detalhes, a “correção” acaba se mostrando mais anticristã do que o erro.

Depois de “corrigir” todos os itens da lista, esfregando na cara de todos os que assistem o vídeo a superioridade moral de seu proprietário oculto, a mãozinha escreve a frase “Eu creio em um mundo melhor”. Depois risca a lera “e,” corrigindo agora a si mesma: “Eu crio um mundo melhor.”

No Evangelho de Marcos, ao ver a mulher perfumar os pés de Jesus com 300 libras de unguento de nardo pouco antes da Paixão, Judas – logo quem – diz que a homenagem ao Filho de Deus na terra não valia o preço do perfume, que deveria ser convertido em dinheiro e dado aos pobres. “Vós sempre tendes convosco os pobres e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem; mas a mim não me tendes sempre”, respondeu Jesus.

Não se trata, pois, de diminuir a importância de fazer o bem aos pobres. Jesus sabe que, nas esferas do mundo regidas por regras humanas, como são a economia e a política, “sempre tendes pobres convosco,” porque os sistemas humanos nunca darão conta de resolver todos os problemas e, portanto, sempre haverá oportunidade de exercer a caridade.

Há, porém, momentos, em que algo mais alto está em jogo. Na passagem em questão é a morte de Jesus. Prestar-lhe homenagem preparando-o para a sepultura, como fez a mulher que o perfumou, era a mais importante tarefa diante da iminência da morte do Filho de Deus, o mais importante de todos eventos. Fazer bem aos pobres, por mais meritório que seja – e é, mesmo – é uma tarefa cotidianamente possível e, portanto, secundária naquele momento.

A celebração do Natal é outro desses momentos. O que se celebra não é um suposto espírito do Natal que, idealmente, abarcasse a paz entre os homens, a justiça social etc. O que se celebra é a presença de Deus no mundo. Estar presente, dar comida e todos os outros itens da listinha do WhatsApp podem ser feitos todos os dias. Celebrar o nascimento de Jesus no Natal, porém, significa reconhecer nossa dependência daquele que nasce como o mais destituído dos seres humanos, sem nem mesmo um lugar humano em que se deitar em suas primeiras horas de vida. Reconhecer nossa dependência de um Salvador mais que humano, que aceita esvaziar-se a ponto de se tornar um de nós. Que deixa, para nossa salvação, sua condição de igual ao Pai que cria o mundo.

Afirmar, como a mãozinha do WhatsApp, que cria um mundo, e um mundo melhor ainda por cima, é a expressão perfeita do orgulho de que o Anticristo é capaz. Claro que o diabo está na raiz das maldades mais brutais e extremas, mas o maior perigo do Pai da Mentira é quando se disfarça sob um aparente bem. Só Deus cria o mundo. A mãozinha é uma clara manifestação do orgulho humano que crê dispensável a presença de Deus. E o orgulho, dizem os Evangelhos, é a fonte de todos os pecados.

Natal: esquecer o amor é desfazer-se do homem

Ricardo Gaiotti Silva, advogado, com mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e em Direito Canônico pela Universidad Pontifícia de Salamanca (Espanha). .
 
A sociedade internacional novamente se depara com inúmeros problemas que nos levam, inclusive, a desacreditar na possibilidade da construção de um mundo verdadeiramente humano, no qual as pessoas possam respeitar e lutar pelos direitos dos homens. Surge então o questionamento: o mundo tem solução? Qual é o remédio para o egoísmo e individualismo presente? A paz é possível?
Foram justamente essas inquietações que levaram o Papa Bento XVI a apresentar, no Natal de 2005, sua primeira encíclica Deus Caritas Est – Deus é amor. O pontífice, naquele momento, apontava que a palavra “amor” estava cada vez mais sendo utilizada de forma descontextualizada. Além disso, o próprio nome de Deus – “amor” estava sendo associado a vingança, ódio e violência. Portanto urgia no mundo, para o Papa, uma mensagem muito concreta sobre o significado e alcance do amor.
De fato, o Papa Bento XVI traz consigo e nos comunica a esperança própria do amor, ou seja, uma esperança que parte do acolhimento do dom gratuito de Deus para como os homens. Uma vez que “Deus tanto amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16), todos podem responder a esse dom, colaborando uns com os outros na construção de um mundo melhor.
A resposta a este amor torna-se uma proposta concreta para a sociedade, gera concretamente a solidificação de valores almejados por todos como a fraternidade, a tolerância, a paz, a justiça, a honestidade, etc. Assim, fundado na esperança própria do amor, o Papa Bento XVI nos apresentou um caminho de colaboração humana, tendo como ponto de partida a caridade. Por meio dela, toda a sociedade possui um caminho seguro na busca da paz, da justiça, da verdade.
O Papa Bento XVI nos ensinou ainda que o amor – caritas – é sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Pois, não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem.
De fato o amor não é uma utopia, mas sim uma resposta a um dom gratuito que recebemos. Isso nos impele a leva-lo para a vida pública, é em meio à comunidade que somos destinados a viver o amor. Falar de uma atitude positiva das sociedades fundadas no amor se torna uma realidade concreta, um convite sábio e exequível na busca de um mundo melhor.
Enfim, se queremos uma sociedade mais justa, devemos primeiramente acreditar no dom do amor. Acolhendo esse mistério somos levados a corresponder ao amor, com um autêntico espírito de fraternidade, pois ela é o remédio que vence o egoísmo. Há uma proposta concreta à qual a sociedade pode se dirigir: a experiência do amor! A esperança é o amor!
Como bem nos ensinou o pontífice, só haverá paz na sociedade humana se o amor estiver presente em cada um dos membros, se em cada um se instaurar a ordem querida por Deus. A paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda na ordem fundada na verdade, se não é construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada na liberdade, ou seja, enraizada no amor.
Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem!
Publicação original: Jornal “O São Paulo”, edição 3080, 2 a 8 de dezembro de 2015.
Imagem: Sandro Boticelli, Natividade (detalhe), Wikimedia

É Natal se acontece em você

Ana Lydia Sawaya, professora da UNIFESP, conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

 

Toda festa litúrgica é um “memorial”, um evento a ser vivido e não apenas celebrado. Na tradição da Igreja, viver a memória do Natal significa muito mais do que se lembrar de um evento que aconteceu no passado e que nós recordamos porque é importante não esquecer. Quer dizer reviver um “evento divino” em nosso presente. Um acontecimento feito por Deus que entra na história da humanidade e, portanto, é um fato divino e eterno, que não se restringe a um tempo (dois mil anos atrás) ou um lugar (Belém). Um prefácio da liturgia de Natal diz: “por ele, realiza-se hoje o maravilhoso encontro que nos dá a vida nova em plenitude. No momento em que vosso filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade – ao tornar-se ele um de nós, nós nos tornamos eternos”. Ou como diz São Leão Magno: “despojemo-nos, portanto, do velho homem com seus atos; e tendo sido admitidos a participar do nascimento de Cristo, renunciemos às obras da carne”. Nos lembra ainda uma antífona da oitava de Natal: “admirável intercambio! O criador da humanidade, assumindo corpo e alma, quis nascer de uma virgem. Feito homem, nos doou sua divindade”!

Assim, nós todos, cada um de nós, é chamado a nascer de novo neste tempo. E numa espiral ascendente aprofundar a consciência da nossa dignidade divina. Precisamos voltar a ser crianças com o menino Jesus.  O Natal, não é de fato, antes de tudo a festa das crianças? Quem é tão velho que não pode voltar a ser criança? Jesus diz, olha, convém-lhe voltar a ser criança, pois é assim que você entrará no céu.

A sociedade de consumo se aproveitou disso e foi aos poucos transformando o Natal em uma festa de presentes a serem comprados, primeiro para as crianças e depois para todos os adultos. O consumismo e a obrigatoriedade de comprar presentes tornou a festa de Natal, uma festa para poucos escolhidos… Mas convém-nos não ser passivos diante dessa cultura que definiu o ser humano como aquele que “é objeto de consumo”; pois ela nos reduz tremendamente e nos faz perder a consciência da nossa dignidade. O que podemos fazer então para viver o Natal de modo cristão? Que tal fazermos os presentes para os outros em vez de comprar? Uma torta, brigadeiros ou bolo? Um crochê, tricô ou pintura? Um vaso? E para quem não tem tempo: gravar umas músicas, pegar uma bela apresentação na internet e presentear? Quando era pequena nós construíamos a arvore de Natal com galhos e pintávamos as bolas que fazíamos com pedaços de jornal e cola. Por que também não perguntar no trabalho ou no prédio se tem alguém que vai passar o Natal sozinho, sem família, ou que o marido ou a esposa o deixaram, ou quem perdeu alguém este ano e fazer uma festa alargada e comunitária? Para muitas pessoas o Natal é o período mais triste do ano, e quando o número de suicídios mais aumenta.

Uma linda mensagem de Natal, que teve ampla divulgação nas redes sociais, nos lembra que essa festa deve acontecer em nós: “Natal é você quando se dispõe, todos os dias, a renascer e deixar que Deus penetre em sua alma. O pinheiro de Natal é você, quando com sua força, resiste aos ventos e dificuldades da vida. (…) Você é o sino de Natal, quando chama, congrega, reúne. A luz de Natal é você quando com uma vida de bondade, paciência, alegria, generosidade consegue ser luz a iluminar o caminho dos outros. Você é o anjo de Natal quando consegue entoar e cantar sua mensagem de paz, justiça e de amor. (…) O presente de Natal é você, quando consegue comportar-se como verdadeiro amigo e irmão de qualquer ser humano. (…) Você será os votos de Feliz Natal quando perdoar, restabelecendo de novo, a paz, mesmo a custo de seu próprio sacrifício. (…) Você é a noite de Natal quando consciente, humilde, longe dos ruídos e de grandes celebrações, em silêncio recebe o Salvador do mundo”.

 

Publicação original: Jornal “O São Paulo”, edição 3132, 20 de dezembro de 2016 a 10 de janeiro de 2017.

 

Imagem: Detalhe de uma Natividade, de Dmitry Shkolnik em Flickr.com