Finanças

Diálogo com Bernard Appy, economista com pós-graduação pela UNICAMP, é diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Foi secretário nacional de Política Econômica e secretário executivo do Ministério da Fazenda.

Doutrina social da Igreja, políticas públicas e finanças do Estado

O Estado brasileiro, tanto em nível federal quanto estadual e municipal, enfrenta uma séria crise financeira. Endividamento crescente, falta de recursos até para pagar salários, descumprimento da legislação referente à responsabilidade fiscal são os sinais mais evidentes e alarmantes do problema.

A culpa é da corrupção? Da irresponsabilidade dos políticos? Da crise econômica globalizada, que afetou as exportações brasileiras? Da Constituição, que criou obrigações sociais com as quais o Estado não podia arcar? Dos ricos e privilegiados que não pagam tributos proporcionais a seus ganhos, não contribuindo adequadamente para o sustento da Nação?

Dependendo da posição ideológica e partidária, cada um irá dar mais peso a um fator ou outro na explicação do problema. Um certo bom senso nos leva a dizer que “onde há fumaça, há fogo”. Se fosse totalmente despropositada, nenhuma dessas causas teria sido aventada. Todas devem ter algo de verdadeiro.

A trajetória da dívida

O Estado brasileiro, como muitos outros Estados nacionais, frequentemente gasta mais do que arrecada. A trajetória da dívida pública brasileira pode ser acompanhada por toda a nossa história. Contudo, com as medidas anti-inflacionárias da década de 1990, iniciou-se um processo de endividamento crescente do Estado.

Com o aquecimento da economia internacional e o aumento das exportações de commodities (matérias-primas), o governo brasileiro passou a contar com um superávit primário (arrecadação maior que as despesas de manutenção do Estado). Com isso, podia haver uma redução gradativa da dívida. Contudo, a partir de 2013, em decorrência da crise econômica internacional, a arrecadação caiu e o governo passou a ter que trabalhar com déficit primário (despesas maiores que a arrecadação).

É importante compreender que, ao longo desse processo, a dívida pública não foi sendo paga e diminuindo, mas refinanciada. Se fazem novos empréstimos para pagar os empréstimos anteriores que estão vencendo hoje. Num arredondamento grosseiro, podemos dizer que os juros e amortização da dívida respondem por 40% a 50% do orçamento da União. Mas esse pagamento é feito com a contração de novos empréstimos. Dinheiro arrecadado com tributos só é usado nos anos em que existe superávit primário.

Um estudo amplo, que permite uma visão adequada do problema, encontra-se no livro Dívida pública: a experiência brasileira (Brasília: Secretaria do tesouro nacional / Banco Mundial, 2009).

Despesas obrigatórias e tamanho do Estado

A Constituição de 1988 estabeleceu que parte do Orçamento da União deve ser destinado a atividades específicas (como educação e saúde). Além disso, por lei, o valor de salários e aposentadorias não pode ser reduzido – e os funcionários públicos gozam de estabilidade no emprego (ainda que, hoje em dia, muitos sejam contratados nas mesmas condições dos funcionários do setor privado). Com esses condicionamentos, a margem de manobra dos governos, na hora de manejar os recursos do orçamento, é muito pequena.

Existe a ideia de um total descontrole dos gastos públicos, particularmente com salários e contratação de funcionários. É fato que, em alguns segmentos do funcionalismo público, os salários e benefícios estão muito acima dos recebidos por trabalhadores com funções equivalentes que trabalham na iniciativa privada.

Contudo, o quadro geral é bem mais complexo. De 1995 a 2016, por exemplo, o número de funcionários públicos no País, comparado ao número total de trabalhadores, não aumentou. Em 1995, cerca de 18,8% dos trabalhadores brasileiros eram servidores públicos. Em 2016, cerca 17,2%. Na esfera federal, a proporção caiu de 3,4% para 2,1%. Esses dados podem ser vistos no Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea.

Esses números mostram um aparente paradoxo das discussões sobre o tamanho do Estado no Brasil. Ele é grande se pensamos no tamanho da crise financeira e no seu custo para a economia do País como um todo. É pequeno se pensamos no tamanho das necessidades sociais e de infraestrutura que o País apresenta.

Doutrina social da Igreja, políticas públicas e finanças do Estado: realismo

Para superar a crise financeira, é fundamental compreender quais são suas causas principais e o que pode ser apenas fruto de um equívoco na formulação do problema. Mas a crise está aí e, ao se formular políticas públicas, temos que trabalhar com a perspectiva de recursos limitados.

Como a doutrina social da Igreja nos ilumina nesta situação? Em primeiro lugar, nos convida a uma postura de “realismo sadio”, que reconhece os fatos, sem com isso entregar-se a um pragmatismo que procura ignorar os problemas sociais e “banir o direito e a moral da arena política” (cf. JOÃO PAULO II, Centesimus annus, 1991, CA 25; FRANCISCO, Laudato si, 2015, LS 217).

Trata-se de um realismo que ensina, como lembra o Papa Francisco, a viver “a santidade pequenina da negociação […] rejeitar a lógica do ‘isto ou nada’ e empreender o caminho do possível” (Meditação sobre a santidade da negociação, 9 de junho de 2016).

Doutrina social da Igreja, políticas públicas e finanças do Estado: equidade e solidariedade

Esse realismo nos leva a procurar uma posição responsável em relação aos gastos e finanças públicas. Contudo, devemos ter claro que essa responsabilidade deve estar orientada para o bem comum, o desenvolvimento social e a solidariedade. Por isso, toda ação pública deve se orientar pelos critérios da equidade, racionalidade e eficiência (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2004, CDSI 354-355).

O princípio da equidade nos mostra que a distribuição dos recursos públicos não pode ser igual para todos: aqueles que estão numa situação mais fragilizada, seja por questões particulares, seja por situação social, precisam de uma atenção especial – que implica em investimentos próprios – da parte dos sistemas públicos. Não se trata de um favorecimento especial, mas de um imperativo da justiça, com vistas à construção do bem comum.

O papel da solidariedade na vida social sempre foi salientado pela doutrina social da Igreja. É oportuno, contudo, lembrar que Bento XVI, diante da crise financeira internacional de 2008, escreve uma encíclica onde justamente apresenta a solidariedade como condição para superar as dificuldades e a crise daquele momento (Caritas in veritate, 2009).

Se cada qual procura apenas defender seus interesses particulares, numa lógica do “cada um por si”, num momento como o atual, todos acabarão perdendo. “Quando a procura de interesses particulares prevalece injustamente sobre o bem comum, então inevitavelmente está-se a semear os germes da instabilidade, da revolta e da violência” (JOÃO PAULO II, Mensagem para a Celebração do XXXII Dia Mundial da Paz, 1° DE janeiro de 1999).

 

Pergunta

Qual o posicionamento que devemos ter, diante das atuais polêmicas envolvendo as finanças públicas?

Veja também: Modelos de Estado  *  SaúdeEducação  Segurança públicaMeio ambiente  *  Previdência Social  *  (Breve) Transportes  *  Migrantes e refugiadosFamília  Voluntariado e Terceiro Setor *  Finanças públicas  *  DemocraciaIdeologia  *  (Breve) Gestão de políticas públicas.

 

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