Lutar pela justiça, com realismo e esperança

A sabedoria judaico-cristã sempre nos exortou a confiar na justiça de Deus, mas se manteve reticente quanto à justiça humana. Além das limitações inerentes à condição humana, alguns povos têm sistemas jurídicos e legislações mais eficientes, que conferem mais segurança aos cidadãos, enquanto outros têm sistemas menos eficientes, que levam à insegurança social. Infelizmente, o Brasil, na percepção da maioria de seus cidadãos, se aproxima muito mais do segundo caso que do primeiro.

Em 2019, segundo o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (SINESP), a taxa média de resolução de roubos (casos em que houve identificação e punição dos culpados) foi cerca de 8%; para os casos de assassinato, 22%. Ainda para 2019, o tempo médio de uma cobrança judicial, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), era de 8 anos. É forçoso reconhecer que números como esses não transmitem segurança à população.

A situação tende a ficar mais escandalosa quando se trata da aplicação da justiça contra as ilegalidades cometidas pelos poderosos. Os que anteontem se pronunciavam contra a corrupção, ontem foram condenados por corrupção e hoje estão sendo inocentados. Empresários ricos e políticos cumprem pena em prisão domiciliar, cercados de mordomias, enquanto jovens pobres se espremem em cadeias que são mais escolas de criminalidade do que espaços de ressocialização. A truculência se volta seletivamente contra quem está numa situação fragilizada, enquanto quem está no poder se vale de supostos direitos para não ser condenado. Enquanto o governo procura reduzir isenções fiscais e sonegação, partidos políticos negociam no Congresso uma anistia milionária das próprias multas.

Não faltam motivos para indignação – mas ela, por si só, não é uma postura plenamente cristã. Sem compromisso, engajamento e esperança, a indignação nos deixa deprimidos, ansiosos e/ou raivosos – posturas essas que não condizem com um modo de ser cristãos. Ah! E não podemos esquecer da inteligência e do discernimento. O Evangelho nos recomenda sermos cautelosos, astutos, como as serpentes e simples, mansos, como as pombas (Mt 10, 16), mas frequentemente nos tornamos – por conta da indignação raivosa – agressivos como serpentes e ingênuos como pombas.

Paciência e esperança

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (EG) lembra que o tempo no qual se desenvolvem os processos é superior ao espaço limitado pelos condicionamentos da conjuntura (cf. EG 222-225). Mesmo que as coisas não aconteçam como gostaríamos hoje, elas irão mudar em função dos processos virtuosos que começamos ou mantivemos hoje. Na Fratelli tutti (FT), por sua vez, lembrará que nem sempre é possível obter grandes resultados, mas o amor e a fecundidade que acompanham as sementes de bem plantadas hoje já são por si só uma primeira recompensa que recebemos pelo nosso esforço (FT 193-197).

Lutar por um mundo melhor e mais justo exige paciência, pois os frutos desejados nem sempre são colhidos. Mas ver a árvore do bem crescer já traz satisfação e nos aproxima mais do coração de Deus. A esperança cristã não é um pensamento positivo ilusório, mas a confiança que brota da contemplação dessas pequenas plantas de bem que vão nascendo e crescendo entre nós. Ainda nas palavras de Francisco, “Que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a oferecer-Lhe tudo, também nos dá as forças e a luz de que necessitamos para prosseguir” (Laudato si’, LS 244-245).

Olhar para as sementes da esperança

Há alguns anos, os brasileiros depositaram grande esperança na judicialização da política – e a Lava Jato foi o símbolo mais clamoroso dessa esperança. Uma avaliação de seus resultados, pelo menos na atualidade, depende da posição do avaliador no espectro político. Contudo, por mais negativa que seja a avaliação, não é possível negar que trouxe à luz casos concretos de corrupção estatal; assim como, por mais positiva que seja tal avaliação, não é possível negar a partidarização que sofreu e os retrocessos que aconteceram em suas decisões e em sua forma de atuar.

O cristianismo não crê numa justiça sustentada pelo punitivismo e pelo legalismo. A investigação criteriosa e a aplicação de penas cabíveis são instrumentos indispensáveis à justiça. Mas não bastam. Numa visão integral, precisam ser acompanhados de ações restaurativas, que procuram eliminar ou minimizar as consequências do mal cometido, bem como por processos que levem à construção de uma nova ordem social, mais justa e fraterna.

Nesse sentido, cada um de nós é chamado a lutar e a depositar suas esperanças no fortalecimento das organizações sociais e de sua capacidade de acompanhar e monitorar as ações do governo; na formação de novos quadros partidários, com políticos cada vez mais comprometidos com o bem comum e menos envolvidos em negociatas e acordos questionáveis; nos processos de aperfeiçoamentos das estruturas do Estado, que caminham muito mais lentamente do que gostaríamos, mas não deixam de mudar ao longo do tempo.

Não à impunidade e à conivência

Não deve haver complacência com a impunidade. O perdão, ainda que necessário para a boa aplicação da justiça, pressupõe o arrependimento e o esforço para reparar os males cometidos. Sem esse arrependimento e esse esforço pelo bem, o perdão corre o risco de tornar-se ocasião de impunidade e injustiça (cf. FT 250-254).

Não podemos deixar de nos indignarmos com o mal, sob o risco de nos tornarmos acomodados e coniventes. “Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da justiça!”, diz o Papa Francisco (EG 179).

Contudo, são os olhos habituados pelo discernimento cristão, que veem os sinais de Seu amor mesmo em meio às mazelas do mundo, que podem nos permitir ver a injustiça e lutar pelo bem comum sem perder a alegria e a esperança.

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