Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP
Duas cartas, uma assinada por 152 bispos, outra por 1058 padres, denunciando o caráter antiético do governo Bolsonaro tendem a aumentar ainda mais a polarização e a divisão interna na Igreja Católica, no momento em que nos preparamos para a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021, cujo tema é “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor” e o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”.
Ainda que a missão da Igreja não possa se confundir com a política partidária, os católicos, tanto como cidadãos quanto como seguidores de Cristo, têm a obrigação de denunciar as injustiças e lutar pelo bem comum (cf. Gaudium et spes 75-76, Compêndio da doutrina social da Igreja, CDSI 81-82). Como os governos, sendo quais forem, são criações humanas que jamais estarão totalmente certos ou totalmente errados – ainda que sempre possam estar “mais certos” ou “mais errados” – torna-se difícil encontrar o justo equilíbrio no qual a “denúncia profética” não se torna “propaganda partidária”.
Para os leigos católicos, o problema diante dessas cartas não deveria ser o de julgar se os bispos e padres estão certos ou errados em se posicionar. Esse é, indubitavelmente, seu direito como cidadãos e a maioria das críticas feitas a eles acabaria por aumentar a polarização e a ideologização entre os cristãos. A questão justa deve ser como utilizar essas cartas como instrumentos para um melhor discernimento e para a construção de um caminho unitário em prol do bem comum.
Reconhecer a pluralidade para buscar a verdade
A pluralidade é uma marca do catolicismo. As pesquisas políticas antes das eleições, mostram que os votos da comunidade católica tendem a distribuir-se entre vários candidatos, aproximando-se do perfil da população em geral, enquanto as demais confissões religiosas tendem a concentrar mais seus votos em um ou outro candidato.
Em função dessa pluralidade, a grande contribuição dos católicos, na construção de uma sociedade democrática, não reside na radicalização do discurso, mas no diálogo que permite que cada um aprimore sua visão da realidade. O importante não é convencer os eleitores da esquerda de que a esquerda está certa, ou os de direita de que é a direita que está certa.
A grande contribuição acontece quando um eleitor, seja ele de esquerda ou de direita, reconhece (mesmo que seja só em parte) os acertos do lado oposto e os erros de seu lado. Esse reconhecimento, fruto do diálogo e do amor fraterno, permite a superação das ideologias e a correção de rota, num caminho que leva ao bem comum.
A lógica do poder versus a lógica do amor
A política partidária tem uma lógica totalmente oposta à do cristianismo. Na luta política, procura-se justificar tudo que é feito pelos correligionários e desmerecer tudo que é feito pelos adversários. O interesse partidário nos leva a negar o bem feito por nossos adversários, ao mesmo tempo que minimizamos as consequências ou até negamos os erros de nossos aliados.
Jesus, por outro lado, ensina: “Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam… Se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo” (Lc 6, 27-33). Essa lógica, aplicada ao embate político, poderia ser expressa assim: “Se reconheceis apenas o bem feito por seus aliados e só condenais o mal feito por seus adversários, que contribuição dais para a construção da justiça? Também os políticos corruptos, sejam de esquerda, direita ou centro, agem assim”.
Se quisermos construir o bem comum, temos que reconhecer erros e acertos, venham de onde vierem, desde que devidamente fundamentados. Nesse tempo de desinformação generalizada, é difícil acreditar naquilo que se ouve. Mas a busca da verdade em relação aos fatos pode estar exigindo mais esforço, mas permanece possível.
A busca da verdade
Nem tudo que nossos amigos dizem é verdade, nem tudo que nossos adversários dizem é mentira. Temos que desconfiar sempre de uma afirmação que não traz dados que a corroborem, bem como daqueles que negam uma ideia, mas não trazem dados para mostrar que ela está errada.
Não é realista acreditar que o mundo todo conspira contra nós; que a comunidade científica, que há séculos promove o desenvolvimento material da humanidade, agora se tornou totalmente mentirosa; que os mesmos jornais que ontem acusavam a esquerda no poder, hoje querem maldosamente atacar a direita.
Temos que ter claro que um mundo de ideologias não será superado por novas ideologias, mas por realidades objetivas onde se constrói o bem comum. Grande parte das mazelas da política brasileira atual nascem da tentativa de contrapor discursos de esquerda com discursos de direita, deixando de lado os problemas reais e as melhores formas de solucioná-los.
As críticas amplamente aceitas
Com essas questões de fundo postas, vejamos os pontos abordados nas cartas. Uma análise detalhada de cada tópico foge ao alcance de um único artigo e deve ser feita por cada um, mas algumas observações gerais são possíveis e razoáveis.
Na questão da COVID-19, o presidente apostou na minimização da doença e se mantém ambíguo mesmo depois que até maioria dos governos céticos sobre a pandemia (como Estados Unidos, Inglaterra e Suécia) se renderam à necessidade de isolamento social. A insistência no uso de medicamentos com efeito discutível confunde a opinião pública, mas quanto mais o governo insiste no uso da cloroquina, mais a comunidade científica produz trabalhos corroborando sua ineficiência. Supor que a comunidade científica, todas as agências internacionais e os governos com mais recursos científicos estão iludidos, mentem ou não se importam com o colapso das economias nacionais é tão pouco realista como acreditar ainda hoje que a Terra é plana… Perdoe-me o leitor terraplanista.
Os dados sobre o aumento do desmatamento da Amazônia até agora não foram contestados efetivamente. Alguns autores argumentam, até com bases científicas, que as projeções do INPE podem estar aumentando o problema – mas nenhum mostrou dados e projeções alternativas mostrando que o desmatamento não aumentou na gestão bolsonarista. Pior: até mesmo os empresários que atuam na região sentem-se prejudicados e desconfortáveis com a insistência do governo em negar o aumento do desmatamento naquela região. Prefeririam uma política mais centrada em controlar o desmatamento e valorizar as ações ambientais dos produtores sérios da região.
A gestão do Ministério da Educação também é amplamente reconhecida como desastrosa. O combate à ideologização do ensino deveria acontecer por meio de uma melhoria da qualidade. O que se viu, contudo, foi uma troca de ideologias, com afirmações polêmicas e falta de direcionamento para a resolução dos problemas reais. O peso da ideologia sufoca as iniciativas boas – tanto as do governo atual quanto as dos precedentes.
O ponto polêmico
O grande problema, que incomoda a muitos, é que essas cartas condenam “a economia que mata”, nos termos de Francisco (Evangelii gaudium, EG 53). O Papa seria ingênuo, não percebendo que essas palavras abririam a porta para o comunismo, o fim das liberdades individuais e a destruição dos valores cristãos. Será verdade? Vejamos essa passagem de São João Paulo II, em sua viagem ao Brasil de 1991:
“A doutrina social católica repudiou sempre a organização da sociedade baseada num determinado modelo de capitalismo liberal, justamente qualificado de ‘capitalismo selvagem’, que tem como notas dominantes a procura desenfreada do lucro, unida ao desrespeito pelo valor primordial do trabalho e pela dignidade do trabalhador. Esta procura não raro é ‘acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis, fundados em atividades ilegais’ […] Repudiou, igualmente, a Igreja as soluções perversas do coletivismo marxista, que asfixia a liberdade, sufoca a iniciativa, reduz a pessoa humana à condição de simples peça de uma engrenagem, fomenta o ódio e acaba no empobrecimento, que pretendia superar […] É na fidelidade a Cristo, seu Fundador, que a Igreja, sem propor modelos concretos de organização político-social, oferece, ‘como orientação ideal indispensável, a sua doutrina social’ (Centesimus Annus, CA 43)”.
Se entendemos como “economia que mata” a esse “capitalismo selvagem” aludido por São João Paulo II, temos que reconhecer que ele sempre foi condenado pela doutrina social da Igreja. Denunciá-lo é um dever cristão. Mas, e o perigo da instrumentalização por grupos políticos? As denúncias não serão manipuladas ideologicamente na medida em que vierem acompanhadas de propostas claras para a construção do bem comum.
Denúncias justas devem ser acompanhadas por propostas realistas e um compromisso efetivo. Esse é o grande desafio que as duas cartas, dos bispos e dos padres, lançam particularmente aos leigos, principais responsáveis pelo empenho político cristão: denunciar os erros que existem, propondo alternativas que os superem, sem cair nos erros do passado.