Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
A pandemia da Covid-19 está gerando não apenas uma crise epidêmica, mas também uma grave recessão financeira. Juntos, os dois fenômenos estão levando a um colapso social como nunca visto em nosso mundo globalizado. A grande resposta da doutrina social da Igreja para contextos como esse é a solidariedade. Contudo, só a solidariedade não basta para criar a postura humana adequada para enfrentar a situação. Também necessitamos da subsidiariedade, provavelmente o conceito menos conhecido e compreendido da doutrina social da Igreja:
“O princípio de subsidiariedade deve ser mantido estritamente ligado com o princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (Bento XVI, Caritas in veritate, CV 58).
A palavra subsidiariedade significa “ajuda, auxílio”. Na doutrina social da Igreja, indica que o Estado deve apoiar as iniciativas das pessoas e da sociedade, sem tentar controlá-las, que aqueles que têm mais poder devem apoiar aqueles que têm menos. Se olharmos com atenção, veremos que é o inverso da lógica que rege, hoje em dia, a relação entre os governos e o chamado Terceiro Setor. Imaginamos que o Estado deve fazer tudo e o Terceiro Setor deve fazer aquilo que o governo não consegue, mas sempre sobre a supervisão desse último. Pelo princípio da subsidiariedade, o Terceiro Setor deve ter o protagonismo, buscar as soluções que considera mais adequadas para os problemas, e o Estado deve apoiar, complementar e coordenar essas iniciativas, para que sirvam realmente ao bem comum.
Como o termo é estranho aos latino-americanos, utilizamos algumas expressões que procuram “traduzir o conceito” à nossa realidade, Assim, subsidiariedade pode ser entendida como protagonismo da pessoa e da sociedade, descentralização do governo ou “poder-serviço” (pois o poder passa a funcionar como um serviço e não como um controle à vida social).
Subsidiariedade, liberdade e responsabilidade
É fundamental perceber que o protagonismo da pessoa não se confunde com uma autonomia irresponsável dos indivíduos ou com a omissão do Estado diante da garantia do bem comum. Numa proposta subsidiária, os governos devem coordenar (o que é diferente de dirigir ou impor) tanto as atividades sociais quanto a economia. Além disso, funções necessárias ao bem comum e que não podem ser desempenhadas pelos membros da sociedade continuam cabendo ao Estado. Vejamos três exemplos tirados da situação atual.
1) As regras de isolamento social, sejam elas quais forem, não podem ser estabelecidas por cada família individualmente. Sejam mais restritivas ou menos, essas regras precisam valer para todos, para serem efetivas. Assim, criar normas e zelar para que sejam seguidas por todos não é uma objeção à liberdade individual, mas uma condição para que todos exerçam sua liberdade com responsabilidade.
2) Na maior parte dos países, o setor privado não consegue se adaptar às necessidades urgentes de aumento de leitos em UTIs e de readequação do sistema de saúde para atender aos infectados. Cabe ao Estado arcar com essa responsabilidade e esses custos, para o bem de toda a população.
3) Já se iniciou, entre empresários, uma campanha para evitar demissões – o que é muito bom e necessário para que a população seja menos sacrificada e a economia possa ser retomada com mais vigor depois da pandemia. Contudo, se quase todos os empresários de um determinado setor não demitirem, os poucos que demitirem para ajustar seus custos poderão estar numa situação mais favorável que os demais. Se o Estado cria linhas de crédito subsidiado condicionadas à não demissão de funcionários (como fez o governo dos Estados Unidos), apoia os empresários mais solidários, sem usar medidas coercitivas.
A impotência do Estado sem cooperação da sociedade
A comparação entre a experiência de vários países mostrou que os governos, apenas por medidas impositivas, não conseguem garantir um adequado isolamento social para reduzir a propagação do vírus (não importa, num primeiro momento, se “horizontal” ou “vertical”). É necessário contar com a cooperação da população. Quando não há essa colaboração, o Estado deve lançar mão de medidas cada vez mais autoritárias para forçar os cidadãos a ficarem em casa e respeitarem as normas de segurança.
O chamado “isolamento vertical”, que segrega grupos de risco e portadores do vírus, é – sem dúvida – o ideal, pois impacta menos a atividades econômica e as condições de vida da população. Contudo, para ser viável, depende não apenas da fase de propagação da doença e da existência de recursos técnicos disponíveis, mas também da colaboração da população. Sem essas três condições (fase da propagação, recursos técnicos e colaboração dos cidadãos), o “isolamento horizontal”, muito mais difícil para todos, se torna a única opção possível para evitar a disseminação do vírus e a ocorrência de ainda mais mortes.
Atenção para com o específico e o local
Uma decorrência desse protagonismo da pessoa e da sociedade é o apoio a uma infinidade de respostas locais, nascidas da criatividade das pessoas que vivem os problemas. Nessa pandemia, estamos vendo, por exemplo, como favelas que já tem associações de moradores e obras sociais robustas estão se auto-organizando para minimizar os efeitos tanto da Covid-19 quanto da recessão econômica. São iniciativas como a contratação de carros de som para explicar o que está acontecendo à população, com linguagem acessível, ou a distribuição de marmitas feitas pela própria comunidade, que está com dificuldade para trabalhar, em condições sanitárias adequadas ao enfrentamento do vírus.
Sem o apoio do Estado e a solidariedade do restante da sociedade, iniciativas desse tipo se perdem como propostas emergenciais bem intencionadas, mas que muitas vezes nem sequer têm força para se manter pelo período necessário. Mas, se convenientemente incentivadas e apoiadas, não apenas podem ser muito adequadas como também representarem o embrião de novas políticas públicas e formas de organização da população.
Num país com dimensões continentais como o Brasil, grandes diferenças regionais entre modo de vida e atividades econômicas, setores da população muito ricos e outros muito pobres, o enfrentamento a Covid-19 terá que se adaptar às peculiaridades regionais e sociais. Isso só será possível se forem realizadas ações descentralizadas, mas coordenadas. Tanto a centralização excessiva quanto a falta de coordenação serão catastróficas num momento como o atual.
Diálogo
Solidariedade e subsidiariedade sempre devem caminhar juntas se quisermos construir o bem comum. Mais ainda num momento de crise como o atual. Uma terceira palavra, fundamental para as duas primeiras, é diálogo. Será ele que permitirá que a sociedade trilhe um caminho solidário, com um apoio subsidiário do Estado. Nessa perspectiva, a leitura do capítulo V da Laudato si’, que propõe cinco diálogos necessários para o bem comum e o cuidado com a natureza, é particularmente enriquecedora.
Imagem: Robson Leandro da Silva, Flickr