Marcelo Cavallari, escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila”, para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella.
Disfarçado de algo “do bem” é também, parece-me, muito mais pernicioso do que piadas grosseiras, com as quais humoristas e mídias procuram ganhar mais dinheiro neste fim de ano.
Para quem escapou do videozinho, descrevo-o. Uma mão cujo dono não aparece traça uma lista de tarefas para o Natal: comprar presentes, comprar comida, comprar roupa nova etc. A mesma mão, em seguida, “corrige” a lista que se torna: estar presente, doar comida etc. Não há dúvida de que se gasta muito mais tempo, dinheiro, energia com presente, roupa e comida no Natal do que com o nascimento de Jesus, que é o que se deveria estar celebrando. Mas, como o diabo mora nos detalhes, a “correção” acaba se mostrando mais anticristã do que o erro.
Depois de “corrigir” todos os itens da lista, esfregando na cara de todos os que assistem o vídeo a superioridade moral de seu proprietário oculto, a mãozinha escreve a frase “Eu creio em um mundo melhor”. Depois risca a lera “e,” corrigindo agora a si mesma: “Eu crio um mundo melhor.”
No Evangelho de Marcos, ao ver a mulher perfumar os pés de Jesus com 300 libras de unguento de nardo pouco antes da Paixão, Judas – logo quem – diz que a homenagem ao Filho de Deus na terra não valia o preço do perfume, que deveria ser convertido em dinheiro e dado aos pobres. “Vós sempre tendes convosco os pobres e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem; mas a mim não me tendes sempre”, respondeu Jesus.
Não se trata, pois, de diminuir a importância de fazer o bem aos pobres. Jesus sabe que, nas esferas do mundo regidas por regras humanas, como são a economia e a política, “sempre tendes pobres convosco,” porque os sistemas humanos nunca darão conta de resolver todos os problemas e, portanto, sempre haverá oportunidade de exercer a caridade.
Há, porém, momentos, em que algo mais alto está em jogo. Na passagem em questão é a morte de Jesus. Prestar-lhe homenagem preparando-o para a sepultura, como fez a mulher que o perfumou, era a mais importante tarefa diante da iminência da morte do Filho de Deus, o mais importante de todos eventos. Fazer bem aos pobres, por mais meritório que seja – e é, mesmo – é uma tarefa cotidianamente possível e, portanto, secundária naquele momento.
A celebração do Natal é outro desses momentos. O que se celebra não é um suposto espírito do Natal que, idealmente, abarcasse a paz entre os homens, a justiça social etc. O que se celebra é a presença de Deus no mundo. Estar presente, dar comida e todos os outros itens da listinha do WhatsApp podem ser feitos todos os dias. Celebrar o nascimento de Jesus no Natal, porém, significa reconhecer nossa dependência daquele que nasce como o mais destituído dos seres humanos, sem nem mesmo um lugar humano em que se deitar em suas primeiras horas de vida. Reconhecer nossa dependência de um Salvador mais que humano, que aceita esvaziar-se a ponto de se tornar um de nós. Que deixa, para nossa salvação, sua condição de igual ao Pai que cria o mundo.
Afirmar, como a mãozinha do WhatsApp, que cria um mundo, e um mundo melhor ainda por cima, é a expressão perfeita do orgulho de que o Anticristo é capaz. Claro que o diabo está na raiz das maldades mais brutais e extremas, mas o maior perigo do Pai da Mentira é quando se disfarça sob um aparente bem. Só Deus cria o mundo. A mãozinha é uma clara manifestação do orgulho humano que crê dispensável a presença de Deus. E o orgulho, dizem os Evangelhos, é a fonte de todos os pecados.