A contribuição da experiência eclesial latino-americana para a nova evangelização.
Esse artigo foi originalmente publicado na edição francesa da revista católica internacional Communio, num fascículo dedicado a apresentar ao público europeu a “teologia do povo”, versão argentina da teologia da libertação latino-americana.
São João Paulo II, na encíclica Redentoris missio (RM, 1990) escreveu que era “hora de comprometer todas as forças eclesiais para a nova evangelização e missão ad gentes. Nenhum crente em Cristo, nenhuma instituição da Igreja pode escapar deste dever supremo: proclamar Cristo a todos os povos” (RM 3). Este é o grande significado do pontificado do Papa Francisco.
A Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” (QA, 2020) é um documento particularmente oportuno para entender como a tradição eclesial da qual Bergoglio vem molda sua maneira de se engajar nessa nova evangelização. Surpreendentemente, a Amazônia é uma realidade particularmente adequada para entender os desafios da Igreja no mundo globalizado, onde a homogeneização cultural convive com a fragmentação multicultural, as riquezas do capitalismo convivem com a exclusão social e a pobreza dos subúrbios, o fascínio eterno pela beleza convive com o vazio da falta de sentido da vida.[1]
Dois papas que vieram “de longe”
Os tempos passam e nossa memória muitas vezes esquece. Há pouco mais de 40 anos, São João Paulo II se apresentou ao mundo dizendo: “Os Eminentes Cardeais chamaram um novo bispo de Roma. Eles o chamavam de um país distante, muito longe”.[2] Palavras semelhantes às do Papa Francisco, ao apresentar-se: “o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que meus irmãos Cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo.[3]
Os dois papas mais carismáticos do pós-concílio vieram de fora do chamado “Primeiro Mundo”, rico e desenvolvido. Vieram de países que historicamente enfrentaram submissão às potências mundiais, pobreza e opressão. Ambos viveram sob regimes ditatoriais, em nações muito católicas e patrióticas. No entanto, um veio do norte, o outro do sul; um enfrentou o autoritarismo de esquerda, o outro, o autoritarismo de direita. Por um lado, a identidade católica teve que resistir aos governos ateus; por outro lado, essa mesma identidade teve que resistir à hipocrisia dos governos que se autodenominavam católicos, mas agiam contra o amor cristão.
Com suas semelhanças e contrastes, são particularmente complementares, revelando para nós, nestes tempos contemporâneos, a integralidade da doutrina católica. Não ser consciente dessa complementaridade entre os dois papas torna muito mais difícil compreender a riqueza dos dons do Espírito que se manifesta na diversidade de temperamentos que caracterizam a humanidade (cf. 1Co 12: 4-31). Ao mesmo tempo, reduz a integralidade da mensagem da Igreja, particularmente nestes tempos pós-modernos, a uma disputa entre interpretações particulares. Em uma mistura de informação e desinformação, os próprios cristãos tendem a considerar que o papa pensa “como eles” ou “contra eles” e estão mais interessados em confirmar esse preconceito do que em se perguntar como o sucessor de Pedro pode ajudá-los em seu caminho de conversão.
O Papa que veio da terra da missão
Jorge Mario Bergoglio é membro da Companhia de Jesus, sempre missionária, e nascido em uma terra de missão. Na América Latina, a Igreja nunca deixou de ser uma experiência missionária. Padres sempre foram relativamente poucos. Os governos sempre olharam para a Igreja com desconfiança ou más intenções.[4] Pessoas simples não tiveram uma boa educação católica, mas sempre tiveram o apoio da Igreja Católica e foram fiéis a ela, embora em um período recente as igrejas cristãs neopentecostais tenham crescido muito.
A origem em solo missionário implica numa série de características humanas e espirituais que são evidentes na mensagem do Papa Francisco. Para quem conhece essa realidade, é evidente que – com esse papado – o Espírito queria que a Igreja universal aprendesse novamente as duras lições de viver como um estrangeiro, que ama o mundo imensamente, mesmo quando é perseguido pelo mundo, como lembrado na Carta a Diogneto.
A primeira lição, amplamente proclamada por Francisco desde o início, é que Deus está “lá fora”, naqueles que encontramos, nas periferias da existência, que Ele se entrega a nós quando nos entregamos aos outros. Dar-se ao outro, ir para as periferias da existência não é filantropia altruísta. É um ato de amor ao próximo, mas também é – ainda antes – uma jornada em direção a Cristo. Assim Francisco, logo no início do texto mais programático de seu pontificado, Evangelii Gaudium (EG, 2013), ao propor uma “Igreja em saída”, declara: “A alegria do Evangelho que preenche a vida da comunidade de discípulos é uma alegria missionária … A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão ‘constitui-se essencialmente em comunhão missionária’(Christifideles laici,32)” (EG 21-23).
O missionário, um estranho na terra em que se encontra, é sempre pobre e fraco, desprovido das honras e consideração que o cristianismo recebe onde é a fé predominante. Ao mesmo tempo, seu coração naturalmente se dirige aos mais fracos e aos mais excluídos – e é reconhecido por eles. Não importa para quais periferias ele foi enviado: outro país, onde tudo parece estranho e os valores cristãos estão sempre em dúvida; os bairros pobres da cidade, onde falta pão e dignidade; a universidade ateia, onde se sofre do vazio da razão sem sentido. Em todos esses lugares o missionário, em sua própria pobreza e fragilidade, encontra Cristo. Em todos esses lugares ele descobre que os pobres e o sofredores são os primeiros a aderir à Boa Nova, mesmo que a primeira vista até pareçam hostis.
Por isso, o missionário percebe, com particular sensibilidade, a importância da opção pelos pobres. Antes de um discurso teológico aprendido nos bancos escolares, é uma experiência humana diária. É por isso que Francisco quer uma Igreja “pobre para os pobres” (EG 198).
Todo ser humano se reconhece como pobre em um certo sentido: material, afetivo, moral, espiritual. Todos tentam esconder sua pobreza e fragilidade dos outros. Mas só os mais arrogantes escondem a própria pobreza de si mesmos. E só a misericórdia pode aceitar plenamente a miséria. É por isso que Francisco, com sua devoção pessoal à misericórdia e seu amor pelos pobres, fascina o mundo.[5]
O missionário também se caracteriza pela sua atenção para com o outro e a realidade. Em uma terra estrangeira e até hostil, ele deve estar atento, procurando “pontes” que lhe permitam comunicar a experiência cristã em um contexto diferente. A primeira preocupação nunca pode ser corrigir. Em vez disso, precisa entender e acolher para anunciar. A alma missionária está acostumada a não parar em frente do diferente, tentar entendê-lo e valorizá-lo, descobrir nele as maravilhas que Deus espalha no mundo e as pontes que permitem o diálogo e o encontro evangelizador. O missionário está acostumado a encontrar no outro os maravilhosos sinais da ação de Deus, que até precedem o anúncio cristão; descobrir a necessidade de um compromisso concreto para superar problemas materiais.
Bergoglio encontra o problema socioambiental
Nesse espírito, o Papa Francisco reconhece que começou a ter contato mais próximo com a questão ambiental durante a Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Aparecida (2007). Em suas próprias palavras, ele pensou na época: “Mas esses brasileiros, como aborrecem com essa Amazônia! O que a Amazônia tem a ver com evangelização”.[6] No entanto, a estranheza inicial tornou-se atenção, fascínio e comprometimento. [7]
A questão ambiental há muito recebeu a atenção da Igreja. Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI escreveram sobre o tema. No entanto, em sua abordagem, Francisco fez da questão socioambiental um traço de seu pontificado, com a Encíclica Laudato si’ (LS, 2015). [8]
Um Sínodo para a Amazônia
Diante do Laudato Si’ e dos desafios enfrentados na região, o Papa Francisco, em 2017, convocou o Sínodo para a Amazônia, realizado em 2019. Entre a convocação e a realização do Sínodo, uma série de conflitos envolvendo o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o aumento da devastação do meio ambiente e das queimadas na região durante seu mandato (que começou em 2019), fizeram com que o evento ganhasse repercussão política mundial.[9]
Antes, outras dez Assembleias Sinodais de Bispos já haviam ocorrido dedicadas a regiões específicas do mundo, como Europa, África ou Oriente Médio. No entanto, dois aspectos foram particularmente significativos nesta edição focada na Amazônia: (1) a importância que o Papa Francisco sempre deu à sinodalidade e à colegialidade na Igreja; [10] e (2) uma ampla consulta com as pessoas da região, que seria a base para a redação do Instrumentum Laboris. [11]
Este Instrumetum tornou-se o centro das divergências em torno do Sínodo para a Amazônia. De acordo com seus críticos, muitas de suas formulações estão teologicamente equivocadas, sugerindo um certo panteísmo ecológico e esvaziando a centralidade de Cristo. Além disso, gerou muita indignação defendendo a ordenação de homens casados como solução para a falta de padres na região. Seus defensores, por outro lado, argumentaram que se tratava de ouvir as demandas feitas durante o processo consultivo, manter a abertura ao diálogo intercultural e responder aos problemas socioambientais na região.[12],[13]
Uma curiosidade deste debate sobre o Instrumentum laboris é que seus defensores sentiram que a crítica veio de uma visão eurocêntrica que não queria reconhecer a especificidade da reflexão latino-americana. Muitos de seus críticos, por outro lado, consideravam seu problema como sendo uma contaminação ideológica por parte dos teólogos europeus que participaram da elaboração do documento e, mesmo vivendo na América Latina, “exportaram” as questões da Igreja europeia para o contexto amazônico.
O Documento Final do Sínodo dos Bispos, “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral“, procurou afastar-se das querelas teológicas e manter as linhas socioambientais já presentes no Instrumentum laboris.[14] No entanto, manteve suas propostas relativas à ordenação de homens casados (nº 111).
Amazônia: o valor e a fragilidade da floresta e seu povo
Duas características marcam a região amazônica e determinam a vida humana em seu território. Por um lado, sua riqueza natural e cultural, por outro, sua fragilidade, igualmente natural e social.
As condições climáticas e a história geológica da região criaram ecossistemas com alta biomassa e grande diversidade biológica, com recursos tropicais de grande valor (peixes, frutos, ingredientes ativos para farmacologia, paisagens para ecoturismo), minerais e algumas (nem todas) áreas adequadas para agricultura e pecuária. No entanto, a própria floresta é o principal fator de controle do clima, protegendo o solo e o fertilizando. Sua destruição resultaria na perda da maioria desses recursos, além de impactar o equilíbrio climático em escala global, dada a extensão da região.[15]
Do ponto de vista demográfico, a região amazônica repete essa dinâmica de riqueza e fragilidade. O estado do Amazonas, no Brasil, um dos locais mais afetados no mundo pelo Covid-19, é um exemplo característico das contradições da região. Em um território cerca de 3 vezes maior que a França, há uma população de 4,2 milhões de habitantes (apenas 2,7 habitantes/km²). No entanto, a capital Manaus, é uma cidade com 2,2 milhões de habitantes e uma economia baseada na indústria, um centro de produtos petroquímicos e eletroeletrônicos. O índice de desenvolvimento humano (IDH = 0,73) é considerado alto, mas cerca de 47% da população vive abaixo da linha de pobreza.
A região amazônica é um mosaico onde culturas indígenas (hoje populações minoritárias) se fundem com culturas ocidentais e africanas, trazidas por escravos. A religião predominante é um cristianismo popular, sincrético e muitas vezes amadurecido longe do acompanhamento pastoral de qualquer Igreja cristã. O catolicismo era visto como a principal religião, mas está rapidamente perdendo terreno para novas igrejas neopentecostais.
“Querida Amazônia”
A partir desse contexto desafiador, tanto para os problemas concretos existentes quanto para as polarizações teológicas, Francisco cria um texto reconhecido como referência obrigatória por leitores bem-intencionados, seja qual for sua tendência.[16]
“Querida Amazônia” é uma exortação pós-sinodal. Deve, portanto, dialogar com o Documento Final produzido pelos bispos. Nesse sentido, o Papa tomará uma decisão metodológica explícita: ele não menciona este Documento, mas convida todos a lê-lo (QA 2-3). Ao mesmo tempo, com seu texto, dialoga com as preocupações e propostas do Sínodo.
É importante notar que a Exortação não se liga a aspectos normativos ou organizacionais. As respostas do Papa não eliminam esses aspectos, mas são muito mais espirituais e místicas por natureza. À questão da falta de padres para a região, por exemplo, ela não responde com uma discussão normativa sobre o celibato, mas escreve: “Não se trata apenas de favorecer uma maior presença de ministros ordenados que possam celebrar a eucaristia. Este seria um objetivo muito limitado se não tentássemos criar uma nova vida nas comunidades. Precisamos promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade através de vários serviços leigos” (QA 93).
A abordagem dos problemas segue o método de diálogo estabelecido na Laudato si’. Na encíclica, Francisco afirma: “Se levarmos em conta a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, devemos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única forma de interpretar e transformar a realidade. Também é necessário recorrer às diferentes riquezas culturais dos povos, da arte e da poesia, da vida interior e da espiritualidade […] nenhum ramo da ciência e nenhuma forma de sabedoria pode ser negligenciada, nem mesmo a sabedoria religiosa com sua própria língua” (LS 63). Além disso, todo o Capítulo Cinco desta encíclica, “Algumas diretrizes e ações”, se dedica a propor diálogos entre diferentes organismos sociais e políticos como forma de resolver problemas socioambientais.[17]
Sonhos e contemplação
O texto de Francisco está estruturado em torno de quatro “sonhos”: social, cultural, ecológico e eclesial. O “sonho” é, na linguagem coloquial, o espaço do desejo, da mais profunda e mais livre aspiração, onde o coração do homem é revelado. Pode ser um sonho utópico, referindo-se a um projeto futuro que nunca se realiza, mas também pode ser a representação estética de um ideal que ilumina o presente.
Os “sonhos” de Francisco para a Amazônia são claramente desse segundo tipo. Eles revelam, de forma afetiva e bela, um ideal que deve guiar o momento presente. Mais do que um projeto para o futuro, são uma experiência espiritual: a contemplação do que o amor de Deus deseja para os seres humanos e para toda a criação.[18]
O primeiro sonho é social. A sequência reflete a inquietação do coração. Para o pai aflige o sofrimento de seus filhos; para o missionário, as necessidades das pessoas para quem ele foi enviado. A conversão, é bom lembrar, é um fruto da graça no diálogo com a liberdade; já a solicitude em face do sofrimento material é um dever de caridade.
O Papa quer que os povos amazônicos “consolidem uma boa vida” (QA 8). A expressão “boa vida” faz uma referência explícita à espiritualidade indígena latino-americana. No entanto, também harmoniza com uma visão clássica de harmonia entre os seres humanos e a realidade.[19],[20]
Usando essa expressão, Francisco mostra que o bem-estar de um povo não pode ser determinado por regras externas, deve ser entendido em diálogo com suas tradições e seu modo de vida. Ao mesmo tempo, refere-se a uma intuição universal de que uma vida digna depende de condições materiais, mas também de uma posição humana adequada diante do mundo. Para aqueles de boa vontade, católicos ou não, a expressão é uma ponte de diálogo.
Diante dos problemas sociais da Amazônia, o Papa nos convida a ficar indignados e pedir perdão, especialmente pelas instituições corruptas, que muitas vezes contavam com a omissão e até com o apoio dos católicos (QA 15-19: 23-25). Alternativamente, aponta para o sentido comunitário dos povos amazônicos (QA 20-22) e o crescimento de um diálogo sociopolítico, que “não deve apenas dar prioridade à escolha preferencial para a defesa dos pobres, dos marginalizados e dos excluídos, mas considerá-los como protagonistas” (QA 27).
A necessidade de diálogo traz à reflexão o “sonho cultural” de Francisco (QA 28-40). Não seria possível compreender o pensamento do Papa sem reconhecer o papel fundamental que ele atribui à cultura e, em particular, à cultura popular. De fato, o diálogo intercultural, no qual o encontro de culturas ocorre com respeito à tradição e especificidade de cada povo, mais do que um tema, é o próprio espírito que guia toda a Exortação.[21]
A valorização dos povos e culturas que vivem na região leva diretamente à conservação dos ecossistemas, ao “sonho ecológico” (QA 41-60). “O Senhor, que primeiro cuida de nós, nos ensina a cuidar de nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá todos os dias” (QA 41). Francisco entende a natureza, particularmente na Amazônia, como “um lugar teológico, um espaço onde o próprio Deus se manifesta e chama seus filhos” (QA 57). Esta não é uma afirmação panteísta, como alguns imaginaram. É uma consequência do encontro com Cristo: “Para nós cristãos, é o próprio Jesus que nos implora através delas [as criaturas], porque o Ressuscitado misteriosamente as envolve e as direciona para um destino de plenitude. As mesmas flores e os pássaros que Ele contemplava admirado com seus olhos humanos, agora estão cheias de sua presença luminosa (Laudato si’,100)” (QA 57).
O anúncio: necessário e inculturado
Em um documento com 111 pontos numerados, 49 são dedicados ao “sonho eclesial” (QA 61-110). Muitos esperavam uma adesão radical neste capítulo à linha tomada pelo Instrumentum Laboris e ficaram decepcionados com o que consideravam uma concessão aos conservadores. A posição e as declarações de Francisco não apoiam essa hipótese. O Papa sempre disse o que acha necessário dizer, sem temores políticos. Portanto, o mais justo é considerar que seu “sonho eclesial” representa a mensagem que ele quer transmitir à Igreja na Amazônia (e, quando aplicável, ao mundo). Pode ser resumido em quatro pontos:[22]
– A presença e a missão da Igreja são inseparáveis da promoção humana em geral e, quando necessário, da proteção do meio ambiente – razão para a apresentação dos três sonhos anteriores.
– No entanto, há uma proclamação indispensável, que é a razão do ser da Igreja: “A opção preferencial para os mais pobres e mais esquecidos, ao mesmo tempo em que nos empurra para libertá-los da miséria material e defender seus direitos, implica que proponhamos a eles a amizade com o Senhor que os promove e lhes dá dignidade. Seria triste se eles recebessem de nós um código de doutrina ou um imperativo moral, mas não a grande proclamação salvadora, aquele grito missionário que aponta para o coração e dá sentido a tudo o resto […] Eles têm direito à proclamação do Evangelho” (QA 63-64).
– Essa proclamação deve ser inculturada, ou seja, capaz de recuperar e integrar todos os valores que encontra nas tradições e culturas. Trata-se de reconhecer a sabedoria dos povos, aprender com eles, acolher sua espiritualidade (cf. QA 70-73). A inculturação deve atingir a santidade (QA 77-80), liturgia (QA 81-84) e ministérios (QA 85-90) com rostos amazônicos, que não são considerados como invenções exóticas, mas como explicitação dos valores universais da Igreja em um contexto específico.
– Por fim, comunidades cheias de vida, com forte espiritualidade, ampla presença de leigos, contribuição reconhecida das mulheres, capacidade de superar conflitos e ir ao encontro de outras religiões.
Entendendo a história: do Pacto das Catacumbas à “Querida Amazônia”
Em um distante 1965, quarenta bispos que participaram do Concílio Vaticano II – a maioria composta por latino-americanos – reuniram-se na Catacumba Domitila, em Roma, e assinaram um documento propondo viver a pobreza evangélica, praticar a colegialidade, dar mais espaço aos leigos em suas dioceses e lutar por justiça social. O documento tornou-se conhecido como Pacto das Catacumbas e muitos veem, com razão, neste texto um presságio do que são hoje as propostas eclesiais do Papa Francisco.[23]
Mas como podemos explicar esse aparente hiato de 50 anos entre esse Pacto e o magistério do atual Papa? Muitos, nostálgicos para aqueles tempos, leem essa lacuna em perspectiva secularizada, explicando-a como resultado das oscilações características da dialética da história. Entre alguns há também uma certa alegria vingativa: “finalmente ganhamos”.
Isso seria só um “cochilo” do Espírito? Deus teria abandonado os justos de sua Igreja por tanto tempo? Ou teria sido um tempo de purificação, necessário para uma compreensão justa dessa perspectiva eclesial?
Para entender – com o discernimento cristão – o que aconteceu, devemos voltar aos anos sessenta, recuperar um pouco da mentalidade desse período, na Igreja e no mundo. Naquela época, havia uma crença generalizada de que a utopia estava próxima. Muitos movimentos sociais, muitas vezes em desacordo uns com os outros, acreditavam em uma grande revolução nos costumes e nas estruturas sociais.
Neste contexto não houve falta de santos engajados com a justiça social e com os pobres, seguindo uma tradição cristã presente em todas as épocas e continentes. No entanto, houve também interpretações secularizadas da mensagem evangélica, que atualizaram os movimentos milenaristas – também estes espalhados pelo tempo e espaço. Era a ideia de que seria a coerência moral dos cristãos (agora lida em termos sociopolíticos e emancipatórios) que legitimaria a presença da Igreja no mundo racionalizado e desencantado da Modernidade Avançada.
Essa tendência milenarista, nunca assumida, mas sempre próxima, foi o grande problema da Igreja no quadro teórico da teologia da libertação. Infelizmente, no período imediatamente seguinte ao Concílio, problemas semelhantes estavam generalizados na comunidade católica em todo o mundo. A renovação muitas vezes parecia não ser uma recuperação da novidade sempre presente do encontro com Cristo, mas uma ruptura que negava a relevância desse encontro, reduzida a uma doutrina ou ideologia, respeitável e inspirada, mas relegada ao passado.[24]
É compreensível, portanto, que a jornada da Igreja passasse por um período de realinhamento no qual os princípios fundamentais fossem bem evidenciados. Como tudo na Igreja, era um caminho que passava pela graça de Deus, mas também através dos pecados humanos. No entanto, foi um passo necessário. Ciente desse fato, Bento XVI proclamou, no final de seu pontificado: “devemos aprender a lição mais simples e fundamental do Concílio, ou seja, que o cristianismo em sua essência consiste na fé em Deus, que é o Amor Trinitário, e no encontro, pessoal e comunitário, com Cristo dirigindo e guiando a vida: todo o resto é consequência”.[25]
A tradição que se abre para o futuro
Uma estrutura corporal sólida é uma condição para que um atleta ultrapasse seus limites. Ele não seria capaz de avançar sem esta estrutura, mas ela seria inútil se ele não tentasse ir mais longe. Este é o grande vínculo que articula o pontificado de Francisco com o de seus antecessores. A segurança teológica e o progresso missionário não se opõem, são a raiz e o fruto da mesma árvore.
Em seu discurso final na Assembleia do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, o Papa explica como entender essa ligação com uma citação de Gustav Mahler: “Tradição é a preservação do futuro e não a guarda das cinzas”.[26] E seu magistério pode ser visto não só como uma grande missão ad gentes, mas como uma missão à cultura e à mentalidade da “pós-modernidade”.
Publicação original : RIBEIRO NETO, Francisco Borba. Le pape François et la nouvelle évangélisation. Communio, Revue Catholique Internationale. Théologie du peuple et pastorale populaire, novembro-dezembro 2021, n°278: 119-130.
Notas
[1] Para uma apresentação Sistemática do documento, Ver SPADARO, A. Commento alla Esortazione Apostolica di Papa Francesco “Querida Amazonia”. La civiltà cattolica, 171 (4073): 462-476, 2020.
[2] Primeira saudação e primeira bênção aos fiéis, 16 de outubro de 1978.
[3] Bênção Apostólica Urbi et Orbi, 13 de março de 2013.
[4] Na América Latina colonial, os governos supostamente protegiam a Igreja Católica, em um sistema conhecido como padroado régio. Na verdade, era mais um sistema de cooptação e submissão da Igreja ao poder temporal. Exemplos óbvios são a destruição, com a aprovação dos governos espanhol e português, das reduções jesuíticas, a maior experiência de inculturação do cristianismo no continente, destruídas entre 1753-1756 e a expulsão dos jesuítas do Brasil (1759) e da América Espanhola (1767).
[5] Para uma visão geral da experiência pessoal do Papa Francisco com a misericórdia e como essa experiência se torna ensino, ver Mensagem aos Missionários da Misericórdia (10 de abril de 2018).
[6] Encontro com um grupo de especialistas que trabalham com a Conferência dos Bispos da França sobre o tema Laudato Si’, 3 de setembro de 2020.
[7] Na “Querida Amazônia”, Francisco assim enuncia essa inevitável ligação entre fascínio e compromisso: “A amada Amazônia se mostra diante do mundo com todo o seu esplendor, seu drama, seu mistério […] endereço esta Exortação para o mundo inteiro. Eu faço isso, por um lado, para ajudar a despertar afeto e preocupação para esta terra que também é ‘nossa’ e convidá-los a admirá-la e reconhecê-la como um mistério sagrado; por outro lado, porque a atenção da Igreja para os problemas deste lugar nos obriga a assumir alguns temas” (QA 1-5).
[8] Ver o resumo histórico apresentado na Laudato Si (LS 3-5).
[9] A história do Sínodo para a Amazônia é contada em SELL, C.E. “Nada será como antes”. A controvérsia eclesiástica sobre o Sínodo dos Bispos da Amazônia (2017-2019). Revista Eclesiástica Brasileira, 80 (316): 282-306, 2020
[10] Ver FRANCISCO. Constituição Apostólica Episcopalis Communio sobre o Sínodo dos Bispos. Roma 15 de setembro de 2018
[11] SÍNODO DOS BISPOS. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Instrumentum Laboris. Vaticano 17 de junho de 2019.
[12] Entre as vozes críticas, destaca-se:
MULLER, G. Dokumentiert: “Zum Offenbarungsverständnis des Arbeitspapiers” der Amazonas-Synode. CNA Deustsch, 16 de julho de 2019. Um teólogo europeu critica aspectos conceituais do documento.
AZCONA, J.L. A Amazônia brasileira não é mais católica, prelado crítica o Instrumentum Laboris do Sínodo. ACI Digital, 20 de agosto de 2019. Um bispo que trabalhou na Amazônia critica os aspectos pastorais e a visão social do documento.
[13] Ver a defesa do documento em SELL, E.C. Op. cit. O artigo assume as principais defesas do Instrumentum e refere-se a outros textos semelhantes.
[14] SÍNODO DOS BISPOS. Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Documento Final. Vaticano 26 de outubro de 2019.
[15] RIBEIRO NETO, F.B. Amazônia: a floresta como valor. Ciberteologia, 61: 9-23 (2019).
[16] Ver comentários a “Querida Amazônia” em:
SUESS, P. O sínodo para a Amazônia: entre conveniência pastoral e audácia socioecológica. Caminhos de diálogo, 8 (12): 35-45. Comentário de um teólogo diretamente envolvido na elaboração do Instrumentum laboris.
MULLER, G. “Querida Amazonia” Is a Document of Reconciliation. National Catholic Register, 12 de fevereiro de 2020. Comentários de outro teólogo, já mencionado por sua forte crítica do mesmo Instrumentum.
[17] Uma compreensão correta do pensamento de Francisco implica reconhecer sua ênfase no diálogo (“Quando os líderes dos diferentes setores me pedem conselhos, minha resposta é sempre a mesma: diálogo, diálogo, diálogo”, disse ele na Reunião com a classe dirigente do Brasil, 7 de julho de 2013), mas sem perder sua valorização do protagonismo dos movimentos populares e sua resistência aos poderes dominantes (cf. Mensagem aos participantes do 3º Encontro Mundial de Movimentos Populares, 5 de novembro de 2016).
[18] A beleza remete à poesia e à literatura, coerentemente Francisco frequentemente menciona poetas que viveram ou são da Amazônia.
[19] Veja WOLFART, G. O Bem Viver é uma teologia indígena. IHU Online, outubro de 2012.
[20] Assim podemos entender, por exemplo, o diálogo entre o Cardeal Angelo SCOLA e Aldo CAZZULLO, La vita buona. Un dialogo sulla Chiesa, la fede, l’amore, la vita e il suo senso (Milão: Mondadori, 2014).
[21] Para uma apresentação mais sistemática do tema da cultura em relação com o diálogo sociopolítico, ver Fratelli tutti (FT 133-155, 215-224).
[22] Sobre uma das questões mais controversas do Instrumentum Laboris, a permissão para ordenar homens casados, Francisco já tinha falado que aprecia o celibato (cf. Conferência de imprensa durante o voo de volta do Panamá, 27 de janeiro de 2019) e nada sugere que ele tinha uma posição diferente para defender.
[23] Ver BOFF, L. El pacto de las catacumbas vivido por el Papa Francis. Servicios Koinonia, 8 de julho de 2014. Durante o Sínodo para a Amazônia, outro grupo, formado por quarenta bispos e outros participantes do evento, fizeram uma reedição atualizada deste Pacto (cf. MODINO, M. Pacto das Catacumbas pela Casa Comum. Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética and Samaritana. IHU Online, 21 Outubro 2019).
[24] A este respeito, para uma crítica, inserida em uma perspectiva construtiva e proveniente da mesma teologia da libertação, ver BOFF, C. Teologia da Libertação e volta ao fundamento. Revista Eclesiástica Brasileira, 67(268): 1001-1022, 2007
[25] Audiência Geral, 10 de outubro de 2012.
[26] Discurso do Santo Padre Francisco no final da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para o Panamazzonica sobre o tema “Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, 26 de outubro de 2019.