A Mangueira, os justos de Sodoma e Bento XVI

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Num Brasil onde a questão religiosa se reveste de uma cada vez maior relevância no debate político-cultural, começamos esse ano com o episódio envolvendo um grupo de comediantes que ridicularizavam passagens do Evangelho e agora temos o desfile da Mangueira, que buscava retratar a vida de Cristo associando-O a diferentes grupos vítimas de violência e discriminação no Brasil. Mas, apesar das situações parecerem semelhantes, podem ser um pouco diferentes.

 

Escracho ou busca sincera?

Sem querer julgar um caso ou outro, comecemos por uma análise genérica de episódios desse tipo.

Em alguns casos, temos o escracho proposital, a intenção explícita de ridicularizar talvez não a Cristo, mas sim os valores da comunidade cristã e provocar as pessoas mais afeitas a esses valores.

Em outros, existe um desejo de identificar-se com Cristo. Antes de ser um ataque aos cristãos, é uma tentativa – frequentemente mal orientada – de encontrar a Cristo.

Nos dois casos, contudo, se acaba por ferir a sensibilidade religiosa de muitas pessoas. Para a mentalidade hegemônica em nossa sociedade (que não é obrigatoriamente a da maioria da população) o desrespeito motivado por questões étnicas ou sexuais é imperdoável, mas os religiosos teriam a obrigação de não se sentirem ofendidos com nada. Assim, o sentimento de desrespeito é rotulado como intolerância.

Com isso, tanto o escracho proposital como a tentativa de uma aproximação bem-intencionada a Cristo se igualam e, em função do confronto entre intolerância ou desrespeito, nada de bom acaba nascendo. Os que desejavam identificar-se com o Cristo sofredor perdem a simpatia dos cristãos mais devotos e esses cristãos passam a ter mais dificuldade de apoiar o sofredor, se afastando do lema da Campanha da Fraternidade 2020: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.

 

Como diferenciar as duas situações?

Existe um critério simples e objetivo para entender em qual das duas situações nos encontramos: nada de bom nasce do escracho, enquanto a busca sincera sempre leva ao encontro de um valor, mesmo que não seja aquele esperado por nós em teoria.

Vale ressaltar que não se trata de uma questão apenas objetiva. Toda interação com o Senhor passa pela liberdade humana. Sendo assim, um gesto bom pode ser desvirtuado por alguém que não procura o bem e a verdade. Por outro lado, um gesto mal não se torna bom pela vontade humana, mas Deus pode se valer até mesmo dele para tocar um coração que busca sinceramente.

 

O desfile da Mangueira

Se acompanharmos as repercussões do desfile da Mangueira de 2020, encontraremos muitas pessoas que se sentiram mais próximas do cristianismo em função dele. Alguns reconheceram essa proximidade, mas aproveitaram para criticar nossas comunidades e a Igreja, que não estariam à altura da mensagem de Cristo.

Um problema do desfile, típico de nosso tempo, foi a polarização partidária em torno do tema. Cristo veio, de fato, para os pecadores e para os que sofrem (cf. Lc 5, 29-32, Mt 11, 28-30), mas não pode ser encontrado pelos que se dizem seguidores de Paulo ou Apolo (cf. 1Cor 1, 10-13),

Todo passo que aproxima a pessoa de Cristo é positivo. Nossa responsabilidade é ajudarmo-nos mutuamente a sempre dar mais passos nesse caminho.

 

O diálogo

A busca pelo diálogo sempre é a melhor estratégia nessas situações, pois não pode ser rotulada como “intolerante” e nos ajuda a viver mais a verdadeira caridade cristã. Diante de pessoas que, buscando uma identificação com Cristo e não o escracho, acabam ofendendo a muitos cristãos e seus valores, o diálogo é ainda mais necessário.

Contudo, esse diálogo terá pouca chance de sucesso se começar no momento que o evento polêmico está para acontecer. Nessas horas, as propostas já estão definidas e as pessoas têm mais dificuldade para compreender a posição do outro e se adaptar.

O encontro e o cuidado cotidiano com o nosso próximo que sofre são os instrumentos que nos capacitam a fazer esse diálogo nos momentos críticos – sem cair em relativismos ou aceitar o desrespeito, mas sim orientando-nos pelo mandamento do amor.

 

Os justos de Sodoma

Num primeiro momento, talvez não encontremos muitos interlocutores para esse diálogo. Nesse caso, a interpelação de Abraão a Deus, no episódio de Sodoma, pode nos dar o ânimo necessário (Gn 18, 16-33).

Deus quer destruir a cidade, mas Abraão pergunta-lhe se destruiria a cidade se houvesse nela uns poucos justos. No final, Deus concorda que pouparia a cidade mesmo que os justos fossem apenas dez.

Os sodomitas justos não estavam em outra cidade. Pelo contrário, habitavam a mesma Sodoma daqueles condenados pelo Senhor. Os bem-intencionados que buscam a Deus em contextos que chocam a muitos cristãos se encontram justamente em ambientes aparentemente inesperados.

Deus, que tudo sabe, contava com a intercessão de Abraão para salvar os sodomitas justos. Hoje, conta conosco para ser encontrado por todos os justos do mundo.

 

Bento XVI e os que buscam a Deus

Ocasiões como a do desfile da Mangueira nos convidam a procurar entender e apoiar ainda mais a nossos irmãos. Diferenças ideológicas ou até mesmo uma certa oposição ao cristianismo não podem impedir-nos nessa caminhada.

Nesse sentido, a declaração mais dura da qual me recordo não vem do “progressista” Francisco, mas do “conservador” Bento XVI. Comentando a passagem em que Jesus diz que os publicanos e as prostitutas entrariam no Reino dos Céus antes dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas (Mt 21, 31-32), o Papa diz: “agnósticos que, por causa da questão de Deus, não encontram paz e pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e sentem desejo dum coração puro estão mais perto do Reino de Deus de quanto o estejam os fiéis rotineiros, que na Igreja já só conseguem ver o aparato sem que o seu coração seja tocado por isto: pela fé”.