Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP
Nas redes sociais, entre os partidos políticos e a imprensa, muita gente quis ver o Sínodo para a Amazônia menos como uma reflexão pastoral católica e mais como um grande embate ideológico. A direita procurava afirmar a supremacia do modelo capitalista atual. A esquerda, a necessidade de um desenvolvimento alternativo, ecológico e inclusivo. Os progressistas mais extremados procuravam retomar uma imagem quase disruptiva de Igreja dos pobres, recuperada da segunda metade do século XX. Conservadores igualmente extremados procuravam barrar o que imaginam ser uma assustadora maré reformista, que se estabeleceu com o Papa Francisco.
Os extremismos forçam a divisão
O problema não estava no embate entre direita e esquerda, natural na democracia, mas na instrumentalização da reflexão católica, desfigurando suas características próprias e induzindo a própria comunidade à divisão. A questão também não estava em se buscar uma Igreja para os pobres, mote do próprio Papa Francisco, ou da atenção – sempre necessária – para com a fidelidade à mensagem evangélica. Estava numa autorreferencialidade, muitas vezes marcada por polêmicas do passado, que dificultava a construção de um Igreja para os pobres fiel à ortodoxia, induzindo mais uma vez à divisão.
Os grupos que incentivavam a polarização muitas vezes não estavam discutindo tanto os desafios objetivos da região, mas sim posições mais amplas, algumas de cunho teológico, outras de cunho puramente ideológico. Quando, por exemplo, se discutia a relação entre soberania nacional e ação da Igreja, o debate real era entre os interesses da mineração e do agronegócio tradicionais – frequentemente predatórios para com o meio ambiente – e as práticas alternativas apoiadas pelo Terceiro Setor. Era uma discussão carregada de elementos ideológicos, onde as partes estavam motivadas por posicionamentos políticos numa conjuntura global. Quando se discutia a ordenação de homens casados na região, o tema de fundo era o casamento de padres ordenados no resto do mundo… E assim por diante.
As polêmicas, quando justas, se resolvem num caminho de comunhão
O Instrumentum Laboris, texto base para as discussões, acabou estimulando a tensão entre os extremistas, mais entre os que estavam fora do Sínodo do que entre os que estavam participando efetivamente dele. Seu conteúdo estava carregado de propostas e abordagens polêmicas, quase como que testando até onde a Igreja Católica poderia ir no pontificado atual. Os temas, é importante dizer, eram pertinentes, correspondiam a solicitações das comunidades ou posicionamentos de teólogos que atuam na região. Se não houvesse questões polêmicas e propostas arrojadas, não haveria por que fazer um Sínodo, os procedimentos cotidianos seriam suficientes para dirimir as dúvidas. Quem comparar o Instrumentum Laboris com o Documento Final, verá que essas questões vão se encaminhando para um justo equilíbrio, onde o respeito à ortodoxia e a abertura para a mudança coexistem. O próprio processo sinodal – com a insubstituível contribuição do Espírito Santo – tende sempre para esse ponto de equilíbrio.
Nesse contexto, o perigo é que os desdobramentos deste Sínodo fiquem presos a uns poucos pontos polêmicos e não às respostas integrais, como aconteceu naquele sobre a Família, cuja repercussão pareceu se reduzir a um debate estéril sobre dar ou não a comunhão aos casados em segunda união – um detalhe importante, mas pequeno em relação ao desafio de apoiar a família. Quem ler as chamadas nos jornais dos dias seguintes ao seu encerramento, terá a impressão que a discussão era sobre ordenação de homens casados e diaconato feminino, e não sobre os problemas pastorais e socioambientais dessa extensa parte do mundo. Esses eram pontos polêmicos, em relação aos quais os padres sinodais tomaram posições moderadas: pedem um avanço, mas com reflexões e procedimentos que permitam soluções adequadas tanto à tradição da Igreja quanto às necessidades dos tempos e do lugar.
O compromisso socioambiental reafirmado
Visto em seu conjunto, o Documento Final do Sínodo reafirma o compromisso social e ecológico da Igreja na Amazônia, abrindo espaço para novas ações pastorais. O maior foco do texto é com a questão indígena. Num texto com 120 parágrafos numerados, encontramos cerca de 80 vezes as palavras e expressões índios, indígenas e povos ou culturas originais. Como essa atenção para com os índios foi muito criticada no processo de preparação do Sínodo, é importante justificá-la aqui. Em primeiro lugar, essa atenção não nasce de uma preocupação demográfica. A Igreja não se volta aos povos indígenas porque eles são muito numerosos, mas sim porque eles são os mais frágeis na região amazônica. Numa família, os pais amam a todos os filhos, mas têm sempre uma atenção especial para com aqueles que estão mais fragilizados ou sofrendo – e espera-se que os irmãos, inspirados pelo amor que receberam pelos pais, também se voltem para esses mais debilitados.
Além disso, as comunidades indígenas são o maior desafio tanto teológico quanto pastoral para uma evangelização inculturada, isso é, que não se apresenta como dominação cultural, mas como diálogo que permite que a semente do Evangelho brote, de maneira original e fecunda, numa outra sociedade. Nascido no contexto hebreu, difundindo-se depois no mundo helênico, vivendo sempre o ardor missionário, o cristianismo sempre foi uma religião que se inculturava em cada realidade em que chegava. Os relatos e documentos dos missionários mostram que essa não é uma preocupação deste Sínodo, mas uma questão que sempre esteve presente na história da Igreja.
Dois fatores dificultam essa reflexão sobre a inculturação na Amazônia de hoje. O primeiro é a situação de imposição cultural, marginalização e até extinção física em que vivem as populações indígenas. Ao longo da história, os missionários católicos procuraram, na maior parte das vezes, tomar o partido dos povos indígenas, mas temos cada vez mais a percepção da violência cultural e física que exercemos sobre eles, mesmo quando não queremos. O segundo é a crise de valores da própria cultura ocidental, que faz com que duvidemos de nossos valores e da possibilidade de um diálogo construtivo, onde todos sejam enriquecidos e o cristianismo seja assumido como um princípio religioso que valoriza aquilo que existe de mais humano tanto em nossa sociedade quanto na sociedade indígena.
Um caminho a construir
Contudo, as reflexões mostraram que não basta dizer “o que fazer”, mas é necessário saber “como fazer”. Nesse sentido, entende-se a proposta de um organismo episcopal regional que acompanhe a efetivação das propostas feitas no Documento. Por exemplo, não basta querer ordenar indígenas casados, o problema é como capacitá-los e apoiá-los em suas comunidades distantes. Não basta querer uma evangelização inculturada, o problema é como fazê-la quando nossa sociedade sufoca as culturas indígenas.
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