A doutrina social da Igreja, o lulismo e o bolsonarismo

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

 

A soltura do ex-presidente Lula gerou uma comoção que lembra, sob certos aspectos, a vitória do presidente Jair Bolsonaro nas últimas eleições. Em ambos os casos, militantes extremados fizeram discursos ufanistas ou catastrofistas, como se aquele fato fosse suficiente para levar o País à salvação ou à perdição. Num momento de grande insatisfação e desilusão com os políticos e os rumos da Nação, é compreensível que esses dois homens públicos passem a representar a esperança ou a catástrofe para uns e outros. Isso não pode levar, contudo, ao endeusamento de um e à demonização do outo. Seria uma idolatria que não corresponde a um espírito cristão e à construção do bem comum.

Nem a fé, nem a doutrina social da Igreja fornecem um manual pronto de ação política. Exigem sempre um exercício pessoal de discernimento. Assim, é natural que existam cristãos com diferentes posturas políticas. O problema não está nas opções partidárias, falíveis como tudo mais que é humano, mas sim em endeusar ou demonizar pessoas e partidos, deixando-se levar por ideologias ou brilhos individuais em vez de buscar o bem comum com realismo e diálogo, tão defendidos pelo Papa Francisco (cf. Evangelii gaudium, EG 34, 84, 231-233, 238-241).

Com certeza existem posturas que condizem mais com o pensamento cristão e outras que condizem menos ou até se contrapõem ao cristianismo e sua visão de pessoa e bem comum. Contudo, perceber quem está mais próximo e quem está mais distante pode não ser tão evidente quanto parece. Podemos entender isso se pensarmos nos cinco princípios irrenunciáveis propostos na Nota Doutrinal sobre Algumas Questões Relativas à Participação e Comportamento dos Católicos na Vida Política (2002): (1) o direito à vida, (2) a proteção e promoção da família, (3) a liberdade – em particular religiosa e de educação, (4) a economia a serviço da pessoa, (5) a construção da paz.

Evidentemente o direito à vida é o mais básico entre todos, mas a vida sofre com muitas ameaças, como o aborto e a eutanásia, mas também a fome, a violência urbana, as guerras, etc. Assim, católicos bem-intencionados, mas partindo de análises opostas da realidade, podem chegar a opções políticas diferentes procurando defender um mesmo princípio.  Os favoráveis às políticas do ministro Paulo Guedes dirão que ele pratica uma economia a serviço da pessoa, porque deseja o desenvolvimento econômico, a geração de empregos e de renda, seus adversários dirão que são políticas contrárias à pessoa, porque irão prejudicar os mais pobres. São polêmicas que não pertencem ao campo da fé, mas que um cristão deve enfrentar se quer comprometer-se com o bem comum. Sem dúvida, alguns estarão numa posição mais justa que os outros, mas a confusão é possível e precisamos nos esforçar sempre para superá-la. Como fazer isso?

Peguemos um exemplo, vindo dos Estados Unidos. Lá, os republicanos costumam ser contra e os democratas favoráveis ao aborto. Mas, nos últimos anos, foram os republicanos que mais defenderam as guerras (como a do Iraque), enquanto os democratas tiveram posições mais pacifistas. De que lado um cristão deveria ficar? O exemplo de Russell Kyrk, um dos maiores pensadores católicos norte-americanos, foi emblemático: ele se aproximou dos republicanos, mas nunca deixou de criticá-los quando achou que optavam pela guerra e não pela paz. Devemos optar pela posição que consideramos mais justa, mas estando sempre prontos a criticar os erros de nossos correligionários e reconhecer os acertos de nossos adversários. E esse é um outro problema da adesão e da condenação absolutas a um lado ou outro: perdemos a sensibilidade de fazer esse exercício crítico, fundamental para um diálogo sincero e para a construção do bem comum.

Nesses momentos, sem dúvida difíceis, temos que fazer opções partidárias e escolhas pessoais, mas sem deixar de entender que nossa esperança vem da experiência do encontro com Cristo e que a construção do bem comum é uma tarefa de todos e não de uns poucos, como lembra Bento XVI na encíclica Spe salvi (cf. SS 24, 30-31).

 

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Imagem: Needpix.com

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