Seguindo os princípios irrenunciáveis

Existem “princípios irrenunciáveis” que nascem da doutrina social da Igreja?

Sim, existem, mas devem ser adequadamente compreendidos para serem propostos ao mundo…

Em primeiro lugar, temos que lembrar que os princípios da doutrina social da Igreja, ainda que iluminados pela fé, referem-se à natureza do ser humano e da história (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 72-75, 83-84). Nesse sentido, podem ser compartilhados mesmo por quem não compartilha da fé católica, conforme já vimos anteriormente. Então, num mundo relativista como o nosso, consideramos esses princípios “irrenunciáveis” pois eles se referem àquelas coisas que fazem com que nos percebamos como humanos. Por exemplo, um ser humano tem uma dignidade intrínseca que deve ser respeitada; contudo, nos damos conta do nosso próprio valor como pessoas no seio de uma família, em primeiro lugar por meio do amor e da dedicação que nossos pais nos deram. Uma pessoa que não tenha vivenciado esse amor familiar, ou o tenha vivenciado de forma deformada, terá muito mais dificuldade para se dar conta da própria dignidade. Por isso, tanto a dignidade fundamental da pessoa (com tudo aquilo que implica) quanto a família são princípios irrenunciáveis para qualquer ser humano, não importa qual a sua confissão religiosa.

Por outro lado, temos que reconhecer que nos damos conta de quais princípios são irrenunciáveis principalmente no momento em que são proclamados ou que estão em risco. Por exemplo, no passado, em sociedades onde a maioria da população era iletrada, tanto o direito quanto a liberdade de educação não seriam enunciados pelas pessoas. Nessas mesmas sociedades, a família poderia também não ser apresentada como princípio irrenunciável, pelo simples fato que haveria uma concordância geral sobre esse tema e as pessoas pensariam em outros direitos ligados à constituição da família (por exemplo, direito a uma remuneração justa), ao invés de pensarem na própria família como um direito.

A Congregação para a Doutrina da Fé, em 2002, publicou a Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, na qual propunha a existência de “princípios irrenunciáveis” que deveriam orientar a conduta política dos católicos. O texto não trazia um elenco sistemático de princípios, apenas alguns exemplos que, na época, pareciam mais prementes. O combate à corrupção, por exemplo, é um princípio irrenunciável evidente (cf. CDSI 411), mas que não está listado no documento. A defesa da vida, que estava em pauta na maior parte dos países europeus na época, é amplamente citada, mas outros princípios também são citados, como a liberdade e a paz.

Sem fazer um elenco completo, mas procurando apenas dar exemplos, a Nota Doutrinal já citada lista cinco “princípios irrenunciáveis”: (1) o direito à vida, (2) a proteção e promoção da família, (3) a liberdade – em particular religiosa e de educação, (4) a economia a serviço da pessoa e (5) a construção da paz. Todos são irrenunciáveis, não podemos escolher um e esquecer outros.

Candidatos e partidos frequentemente respeitam alguns desses princípios e desrespeitam outros. Além disso, existem aqueles que declaram seguir esses princípios na teoria, mas os traem na prática. Por isso, o simples enunciado desses princípios não é suficiente para resolver nosso problema de discernimento político. Para aplicarmos esses princípios de forma adequada, precisamos superar uma visão reduzida, orientada por um falso “realismo político”. Muitos acreditam que chegar ao poder é a única forma de conseguir aquilo que almejamos. Para tanto, acreditam ser “realista” abdicar de certos ideais em nome de outros. Uns, em nome da opção pelos pobres, deixam de lutar contra o aborto. Outros, em nome da defesa da vida, fecham os olhos à situação dos mais pobres.

Quando caímos nesses reducionismos, perdemos a unidade e a coerência interna do Magistério católico, permitindo a instrumentalização da doutrina social e dando razão às dúvidas de nossos irmãos. A postura justa é aquela de sempre buscar uma visão integral e unitária de todos esses princípios, orientada ao diálogo e à construção do bem comum (cf. CDSI 162).

Se nosso candidato ou grupo político trai algum desses princípios, nosso dever é alertá-lo e exortá-lo a uma adesão mais completa e integral a todos eles – mesmo que isso signifique uma perda política. Podemos chegar até ao ponto de deixar de darmos nosso apoio ao político. O que não podemos é fechar os olhos quando algum desses princípios é abandonado, com alegações como “o adversário faz pior” ou “temos que aceitar isso para defender aquilo”.

Dois princípios são particularmente úteis para nos orientar nos debates brasileiros atuais: (1) a defesa da vida e (2) a economia a serviço do bem comum (que podemos identificar com a opção preferencial pelos pobres, nos termos mais comuns na América Latina). São particularmente importantes porque representam polos antagônicos nos discursos partidários hegemônicos, e considera-los juntos nos ajuda a superar as polarizações ideológicas. Quando falamos em defesa da vida, temos que ter em mente que não se trata apenas do combate ao aborto e à eutanásia, também se morre antes da hora por fome e por violência. A economia a serviço do bem comum, por sua vez, deve tomar o combate à pobreza como prioridade, mas integrando-a à defesa do meio ambiente e a verdadeira promoção humana.

Uma abordagem interessante para estudar essa integração entre esses dois princípios (defesa da vida e opção preferencial pelos pobres) é ler os artigos que falam deles tanto no Compêndio da Doutrina Social da Igreja quanto na Fratelli tutti (FT) e depois refletir e dialogar sobre eles em conjunto, sem se ater a um ponto ou outro em especial. Desse modo, percebemos uma visão unitária de defesa tanto da vida quanto dos mais frágeis, orientada pelo amor social e rumo a uma política melhor. A seguir, apresentamos uma sugestão de pontos a serem lidos:

  • A vida como primeiro valor a ser defendido, o aborto e a eutanásia (CDSI 155), as lições da pandemia (FT 54-55) e a defesa do mais frágil (FT 188).
  • O direito de todos à vida e à dignidade (FT 106-111).
  • Os pobres na tradição bíblica (FT 74, CDSI 323-325).
  • A situação da pobreza no mundo de hoje (CDSI 3, 5, 449) e a função da doutrina social (CDSI 81).
  • A primazia da pessoa (CDSI 105-107), o descarte tanto das coisas quanto das pessoas (FT 18-24),
  • O papel social da propriedade (FT 118-120, 137-138) e a destinação universal dos bens (CDSI 182-184).
  • A economia (CDSI 332-335, FT 33-34, 168-169) e a globalização (CDSI 362-367).
  • O trabalho (CDSI257) e a superação dos assistencialismos (FT 162)
  • A criação de laços e o combate ao individualismo (FT 87), o valor da solidariedade (FT 116),
  • A política como ato de amor (FT 187), a empatia (FT 218-220), a paz social (FT 233-235).

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