O desafio que nos vem da Nicarágua

O leitor já deve ter lido vários artigos sobre a situação política da Nicarágua de Daniel Ortega e da perseguição da qual estão sendo vítimas os cristãos daquele país. Trata-se de uma perseguição de natureza político-partidária: os cristãos são perseguidos não porque seu Deus seja outro que o de Ortega (ao menos oficialmente…), mas sim porque não se dobraram a uma vontade tirânica. As perseguições religiosas quase sempre são assim: parecem ter uma causa confessional, mas são motivadas por interesses econômicos e políticos. A diferença é que em alguns casos – como neste da Nicarágua – isso é evidente, em outros não.

O caso nicaraguense, além de demandar orações e solidariedade, nos dá muito o que pensar…

Lembrando Ernesto Cardenal

Em primeiro lugar, para os mais velhos, é impossível não lembrar do episódio constrangedor envolvendo São João Paulo II e Ernesto Cardenal, poeta e sacerdote nicaraguense. Diante do triste quadro fornecido pela ditadura somozista, de direita, que dominava a Nicarágua, padre Cardenal aderiu ao marxismo e chegou a integrar a Frente Sandinista de Libertação, liderada por Daniel Ortega. Com a vitória do sandinismo, em 1979, integrou a Junta de Governo, como Ministro da Cultura. Numa viagem à Nicarágua, em 1983, São João Paulo II o censurou publicamente, num dos gestos mais polêmicos de seu pontificado. Dois anos depois, Cardenal foi suspenso de suas atividades sacerdotais pelo Vaticano, que as considerou incompatíveis com seu cargo político. Em 1994, contudo, o próprio Cardenal, desiludido, rompeu com o sandinismo – posição que manteve até sua morte, em 2020.

Independentemente da validade maior ou menor da insurreição sandinista contra o regime somozista, que foi um dos mais cruéis e desumanos da América Central, da maior ou menor descortesia de São João Paulo II, existe uma lição na história de Cardenal, um homem brilhante e, sem dúvida, um idealista que procurava o melhor para seu povo. A Igreja não pode se omitir de um juízo ético sobre os malfeitos humanos na política, mas deve manter uma justa distância, que lhe permita exercer com liberdade sua função tanto crítica quanto educativa. Além disso, o exercício do poder tem sempre a capacidade de corromper mesmo os supostamente justos. Não é conveniente que a Igreja se confie ao poder político e/ou permita uma confusa identificação entre mando temporal e autoridade espiritual. Isso vale, não custa frisar, tanto para os que se consideram de esquerda quanto para os que se consideram de direita – e até mesmo para os “de centro” (as comunidades cristãs já sofreram muitas desilusões também com políticos ditos “moderados” que se apresentaram como defensores da fé e representantes do cristianismo junto ao poder).

O Brasil não é a Nicarágua

Nos últimos tempos, muitos apontam o perigo do Brasil se tornar uma nova Venezuela, ou uma nova Nicarágua, em função da vitória eleitoral de Lula. Analisando friamente a situação, temos que reconhecer que a possibilidade disto ocorrer é muito pequena. A história política, a solidez das instituições, por mais precárias que pareçam a nossos olhos, a enorme extensão territorial e a pluralidade das forças sociais e econômicas existentes fazem o Brasil muito diferentes destes outros países.

Para que um golpe autoritário dê certo, um país não pode ter um real equilíbrio entre os Poderes, deve ter um Executivo muito mais forte que os demais; a estrutura e a pluralidade social não podem ser grandes, pois quanto mais complexa e diversa for a sociedade, mais difícil congregar forças capazes de darem um golpe; as Forças Armadas devem ter pouco apreço pela democracia, de modo a serem facilmente cooptadas pelos golpistas. São todas condições que não são encontradas em nosso país na atualidade, como os últimos acontecimentos mostraram.

O Brasil com Lula não é como a Venezuela com Chavez e Maduro, ou como a Nicarágua com Ortega. Assim como o Brasil com Bolsonaro não era o Peru de Fujimori, considerado por muitos o mais autoritário governante de direta da América do Sul no período recente. Não é que não estejamos sujeitos a ameaças a nossa democracia. Ela, como todas as demais, em algum grau, só pode se manter com a permanente vigilância e o consenso de toda a sociedade. Sem dúvida, contudo, tem hoje em dia robustez interna que lhe dá sustentabilidade ao longo do tempo, mesmo com todos os seus problemas e limites (que precisam ser sanados, evidentemente).

Não estamos livres de ameaças trazidas por partidos e posicionamentos ideológicos autoritários. Mas nossos problemas, à esquerda e à direita, se aproximam mais daqueles de outros países latino-americanos, como a Argentina, imersa numa crise socioeconômica que dura décadas e parece infindável, ou o Chile, que era considerado um modelo de sucesso no continente até a recente crise de 2019. Entender as diferenças de contexto político, social e econômico são importantes para enfrentar os problemas de forma realista e adequada…

Um diálogo e uma solidariedade que superem as ideologias

O grande desafio que a crise nicaraguense nos apresenta é conseguirmos ser solidários com um povo e uma Igreja que sofrem perseguição de um regime de esquerda, sendo que nosso governo também é de esquerda.  O posicionamento histórico, no mínimo ambíguo, do PT em relação aos regimes autoritários de esquerda na América Latina é um fato. Pesam, nesse posicionamento, uma história colaborativa, no passado, e o esforço de criar, no presente, uma aliança regional de esquerdas.

Oposições gritando têm o seu impacto, mas – nesse caso – o mais importante é o protesto daqueles que votaram no PT no segundo turno das eleições. Um partido vitorioso não precisa se incomodar tanto com seus opositores, mas deve satisfazer seus simpatizantes. Por isso, é particularmente importante que os eleitores de esquerda reconheçam os desmandos do governo nicaraguense e peçam que o governo brasileiro se solidarize com os perseguidos políticos e com a Igreja do país.

A direita também tem seu papel nesse processo. Mais do que a denúncia partidária, da repetição exaustiva de que o outro é autoritário, esse é o momento de uma “comunicação empática”, que busque entender o outro e procurar ajudá-lo a ver as falhas de seus correligionários. Não é hora de querer se impor ou “provar que o outro está errado”, mas sim de ajudá-lo a perceber “como pode ser melhor”.

Não só porque nossos irmãos católicos estão sendo perseguidos, mas pelo bem de toda a população nicaraguense e de nós mesmos, a situação da Nicarágua nos desafia a sermos mais cristãos, de abandonarmos nossas posições partidárias – contrárias ou favoráveis ao regime atual – para um diálogo que nos ajude a ser sempre menos ideológicos e mais fiéis ao amor e à solidariedade.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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partir  da  doutrina  social  da  Igreja.

O que o Documento de Aparecida diz para cada um de nós?

Em 2007, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) realizou a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, com o lema “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida” e que resultou no Documento de Aparecida. O então Cardeal Jorge Mário Bergoglio presidiu a comissão de redação do texto e seu conteúdo tem um vínculo amplamente reconhecido com o pontificado de Francisco. Em 2021, a pedido do Papa, o CELAM iniciou uma ampla retomada continental desse Documento, que culminou num texto, recém-lançado, intitulado “Nossas dívidas com Aparecida: balanço 15 anos depois”.

Como essas reflexões podem ser úteis para cada um de nós? Um dos erros mais comuns, no estudo dos documentos eclesiais, é fazer uma leitura seletiva, onde procuramos as passagens que confirmam nossas ideias prévias e deixamos de lado os trechos que não se adequam a nossos pensamentos. Outro erro comum é fazer uma reflexão genérica, de caráter teológico e sociológico, que não incide em nossa vida. Em oposição a essas duas posturas, aquela justa é a de perguntarmo-nos “o que Deus quer me dizer com esse texto?” – pois, na verdade, nada que diga respeito à Igreja tem sentido se não passar pela conversão de nossos corações.

O discipulado missionário

O ponto de partida do Documento de Aparecida – bem como de toda trajetória religiosa do Papa Francisco – é, sem dúvida alguma, o encontro com Cristo. A pessoa apaixonada espelha, em tudo que faz, a sua paixão. O discípulo, diz Francisco, é aquele que “permanece” com o Senhor, que se deixa guiar por Ele. Não uma postura moralista ou discernimento meramente intelectual, mas um “estar junto”, uma companhia afetiva que ilumina a caminhada.

Esta paixão, este permanecer, é (ou deveria ser) nosso modo de sermos discípulos de Jesus, um dos eixos fundamentais das reflexões de Aparecida. Discursando aos bispos latino-americanos durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro (2013), Francisco propôs critérios que bem poderiam orientar um “exame de consciência” de cada um de nós sobre como vivemos esse discipulado. Em primeiro lugar, o discipulado é “missionário”. Essa paixão por Cristo não nos fecha em nós mesmos, numa postura intimista, mas é vivida indo-se ao encontro do irmão, se ocupando de suas necessidades, comunicando a ele a alegria que vivemos. Quem se fecha em si mesmo, ainda que com boas justificativas, como excesso de trabalho ou saúde precária, não vive plenamente esse “discipulado missionário” – mas, se nos propusermos a tal, Deus nos ajuda a superar qualquer dificuldade e realizar o seguimento a Cristo e o encontro com os irmãos. Nesse discurso aos bispos, o Papa ainda adverte tanto contra as reduções sociologizantes quanto às intimistas (que chamou “ideologização psicológica”) da fé, alerta contra o intelectualismo dos “católicos iluminados” e o desejo de uma “restauração” de disciplinas e valores – que podem até ser justos, mas acabam se confundindo com uma dinâmica meramente humana.

Para que todos tenham vida

O lema de Aparecida, “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida”, reafirma a centralidade de Cristo tanto em nossa caminhada humana – é Nele, não em riquezas, prazeres ou ideologias, que temos a vida – quanto na promoção humana, pois o discípulo missionário não pode estar alheio a tudo aquilo que diminui e avilta a vida de nossos povos.

As condições de pobreza material e as injustiças sociais estão entre os maiores desafios a nosso discernimento cristão. Ninguém, em sã consciência, poderá duvidar que tanto a vida terrena de Jesus quanto a atuação histórica da Igreja estão marcadas pelo compromisso para com os mais pobres e fragilizados, sempre na busca da realização da justiça e do amor. Contudo, as formas pelas quais a justiça se realizará e a pobreza será superada são questões polêmicas, carregadas de visões ideológicas e politizações. Muitos cristãos se negam a enfrentar esses problemas, outros abraçam uma posição ideológica que lhes parece conveniente e até instrumentalizam a mensagem cristã para se sentirem legitimados. Nenhuma dessas posições é possível para aquele que deseja viver como um “discípulo missionário”. Somos convidados a enfrentar o risco da ideologização, o aborrecimento causado pelos discursos sectários, as dificuldades e o cansaço do trabalho comprometido com a realização do bem comum.

Um olhar que nasce da fé e da oração

Mas como superar a ameaça da ideologização da fé? No discurso acima citado, Francisco lembra dois aspectos importantes das reflexões em Aparecida, que muitas vezes são perdidas por serem dadas por “óbvias”. Em primeiro lugar, a importância da “oração com o Povo de Deus”, pois os bispos não apenas tinham sua rotina de orações, mas também estavam perto do Santuário e da movimentação e oração dos peregrinos que o visitavam. Depois, lembra que não existe um “ver” neutro, toda compreensão da realidade se dá a partir de um quadro referencial. Então, se pergunta Bergoglio, “com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo”.

Não existe discernimento cristão sem oração – e a oração não é intimista, é um ato íntimo, mas que se conecta a toda a comunidade cristã. Essa postura orante, “em saída”, não determinada apenas por nossos sofrimentos e aspirações, não é óbvia e pode exigir um grande trabalho de conversão de cada um de nós. Por outro lado, nesses tempos de incertezas morais, batalhas ideológicas e polarização política, poder ver o mundo com os olhos de Cristo deveria ser um dos nossos esforços mais importantes.

A Introdução e o primeiro capítulo do Documento de Aparecida são particularmente instrutivos do que seja esse olhar a que se refere o Papa Francisco. Ao retomarem, em rápidas pinceladas, a caminhada da Igreja em nosso continente, os bispos recordam as “luzes e sombras” dessa história, feita por seres humanos e sujeita às nossas contradições e pecados, mas nunca perdem de vista a gratidão e a alegria pelos dons recebidos. Como iriamos ver mais tarde nos vários escritos do Papa Francisco, o Documento nos mostra um olhar cristão que é sempre humilde, nunca triunfante, sempre repleto de fascínio e gratidão pelo amor e pela beleza dos dons recebidos.

Esses capítulos, que podem até parecer óbvios e formais, apontam para uma postura diante da realidade carregada de fascínio pela beleza, cheia de alegria e gratidão pelos dons recebidos, permanentemente comprometida com o bem dos irmãos. É um modo cativante de viver a fé, mais do que suficiente para justificar a retomada do Documento. Como dizem os bispos, citando Bento XVI:

“Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Nº 12).

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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