A família diante de nossa fobia às contradições

Poucas coisas nos horrorizam tanto quanto nossas próprias contradições. Sabemos que somos todos pecadores, mas nos parece terrível constatar que não fazemos o bem que queremos, mas sim o mal que não queremos (cf. Ro 7, 19); ou que nosso “eu real” nunca consegue estar à altura do nosso “eu ideal”. Não aceitamos a imperfeição dos demais, que não conseguem (ou pior, nem mesmo desejam) nos amar e respeitar como acreditamos merecer – mas também não aceitamos nossa própria imperfeição, que nos diminui aos nossos próprios olhos e aos olhos dos demais. Às imperfeições dos outros, queremos condenar ou usar como justifica para as nossas próprias. Às nossas imperfeições, queremos negar ou apresentar como responsabilidade de outros.

Diante das frustrações, alguns assumem uma posição autoritária e não querem reconhecer os próprios erros nem se deixarem questionar em seus valores. Outros querem condenar a todos, pois não aceitam que seus problemas são singulares, que nem todos enfrentam as mesmas dificuldades e as mesmas dores. Os autoritários tendem a infernizar a vida daqueles que estão próximos. Os revoltados tendem a desorientar aqueles que os escutam. Necessário salientar que existe uma autoridade que ajuda a crescer e uma revolta que é necessária para mudar o que está errado – mas não estamos nos referindo aqui a essas manifestações quando são benéficas.

No fundo, essas coisas não deveriam nos escandalizar – seja nos outros, seja em nós mesmos. Fazem parte da natureza com a qual Deus nos fez. O escândalo gera raiva e frustração, impede um raciocínio preciso e a tomada de decisões justas. Reconhecer os erros é o primeiro passo para buscar o perdão e caminhar rumo à virtude – mas a dor pela culpa e pelo pecado precisa do unguento da misericórdia, não do aguilhão da raiva (contra si próprio ou contra o outro).

A família é um problema…

Essas reflexões me ocorreram ao ouvir um podcast sobre família que me foi enviado. Nele, uma influencer e um psicólogo discutiam sobre a desnecessidade da família – ou sobre a necessidade de um outro modelo de família, que rompesse totalmente com o atual. Nas falas, iam se amontoando uma série de falhas familiares, algumas bem características de casos específicos, outras mais ou menos gerais (afinal, todas as famílias são formadas por seres humanos falíveis, algumas são muito melhores, outras muito piores, mas nenhuma delas é “perfeita”). A somatória das falhas, deixadas sem solução, apontavam para um inevitável “fracasso” da família tradicional e a necessidade de um modelo alternativo – que não se chegava a esboçar claramente, pois o fato é que todas as “famílias alternativas” que temos por aí são variações do mesmo tema: pai, mãe e filhos.

A questão familiar, em nossa sociedade, contempla duas vertentes: aquela material, que inclui os aspectos econômicos e a organização da vida concreta; e a cultural, que inclui as subjetividades, os valores e a forma de conceber as relações afetivas. As duas são problemáticas e se relacionam. Muitas famílias, por exemplo, sofrem com a desestruturação decorrente da pobreza e da falta de opções para viver com dignidade; outras sofrem por uma concepção individualista ou pelo autoritarismo dos pais; muitas vezes a desorientação afetiva e moral dos filhos decorre da impossibilidade de serem acompanhados pelos pais, forçados pelas condições econômicas a jornadas de trabalho longas e estafantes.

Contudo, quando mídias e redes sociais se põem a questionar a família, o aspecto mais discutido é de natureza afetiva e relacional. O quanto as famílias são responsáveis pelos desajustes que exibimos todos os dias? Os valores transmitidos em seu seio são realmente necessários para nossa realização? Até onde vai o amor verdadeiro e onde começa o autoritarismo sufocante?

… mas ainda é a melhor solução

A família é o primeiro âmbito no qual nos damos conta das relações afetivas que nos cercam e é também o âmbito onde essas relações atingem seu clímax. Nunca antes, em uma sociedade, se teve tanta liberdade para amar quanto temos na nossa. Fazemos questão de dizer que todas as formas de amar são válidas. Mas, diante de toda essa pretensa liberdade, descobrimos estarrecidos que não sabemos amar, que muitas vezes não conseguimos ir além de uma remota intuição do que seja o amor, que muitas vezes nossa única experiência de amor é um buraco aberto em nosso coração – do qual sai um clamor incessante por preenchimento. Nesse contexto, é evidente que a instituição familiar seja dramaticamente questionada o tempo todo.

Com uma ironia “chestertoniana”, poderíamos dizer que não é ela que falhou, foi o mundo que falhou e continua a esperar dela uma solução. Quanto maior a responsabilidade, maiores as consequências de um fracasso. Um bom governo pode fazer maravilhas pelos cidadãos, mas um mau governo gera catástrofes e desgraças. Sendo tão importante, é natural que a família seja culpada de tantas frustrações e desgraças, mas também é aquela para a qual o mundo olha com maior desejo de realização.

O fato é que as pessoas não querem se desfazer das famílias. Ao contrário, todos querem uma família na qual se realizem. Quem ataca a família, no fundo, ataca um modo de ser família, na esperança de encontrar um outro no qual poderá se adequar. Nenhum Estado, nenhum programa político, encontrou uma proposta mais eficiente e integral para responder a todas as necessidades humanas, de proteção, auxílio, afeição e sentido, do que a família.

O desafio – e isso temos que reconhecer – é superar as muitas dificuldades e criar famílias que, mesmo não sendo perfeitas, possam permitir a realização humana de seus membros.

Antes de discutir ideias, testemunhar o amor

Os problemas materiais das famílias podem ser razoavelmente bem solucionados por políticas públicas bem orientadas, com a ação de gestores eficientes e competentes. Mas, quando as questões atingem o núcleo da existência familiar, que são as relações afetivas e todo o complexo de concepções de si mesmo e valores que derivam dessas relações, as soluções passam a exigir a experiência da acolhida e um justo envolvimento afetivo de quem deseja ajudar.

Quem não faz a experiência de perceber-se amado de forma gratuita não consegue entender o que é o amor, nem amar os outros de forma adequada. É verdade que ideologias e interpretações distorcidas podem piorar muito essa percepção do amor – uma vez que ele, sendo humano, é sempre contraditório. Mas a realidade é sempre maior que a ideia. Por isso, a tradição católica insiste tanto no testemunho.

Uma interpretação belicista, que enfatiza as “guerras culturais”, nos induz a imaginar que as ideias podem se sobrepor à realidade. Mas uma interpretação distorcida só pode prosperar porque explora as contradições do ser humano – e porque nós não conseguimos apresentar a gratuidade do amor e sua capacidade de perdão como uma experiência em ato, algo crível.

Se queremos realmente ajudar as pessoas e o mundo a serem felizes, a encontrarem os valores e a riqueza das famílias, temos que estar dispostos a dar o melhor de nós para amar e acolher o outro. É relativamente fácil solidarizar-se com uma criança pobre e desnutrida, mais difícil com um adolescente que se tronou violento por conta do bullying e da falta de perspectivas, muito mais difícil com um jovem autocentrado que parece sempre ter vivido entre mimos e confortos. Mas não importa a quem Deus nos envia. Somos chamados a testemunhar, para cada um, o amor que já recebemos e tentar, no limite de nossas capacidades e das circunstâncias objetivas, ser um sinal do amor que dá sentido à vida.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Cultura, secularismo e evangelização na ótica do Papa Francisco

As palavras sobre cultura, secularismo e evangelização ditas pelo Papa Francisco, em sua viagem ao Canadá, no discurso às autoridades civis com os representantes das populações indígenas, e na homilia das Vésperas com os bispos e padres, são particularmente esclarecedoras de seu modo de atuar.

A religiosidade, a solidariedade, a capacidade de resistência e de esperança de um povo, para Francisco, estão diretamente vinculadas a sua identidade cultural. Interessante notar que essa é uma posição claramente compartilhada por São João Paulo II. É natural que, para eles, a evangelização tem que ser um processo de inculturação e não de imposição cultural.

Abrir-se ao novo

Na Querida Amazônia (QA 62ss), Francisco se detém nas questões ligadas à inculturação do Evangelho. Quando um povo acolhe o Evangelho, não se repete a cultura do evangelizador, mas se cria uma nova identidade cultural, fruto da ação do Espírito na cultura daquele povo. Por isso “é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre algo de novo” (QA 69).

O secularismo atual, a tendência de eliminar a consciência de Deus na vida cotidiana, cancelando o direito de expressão pública dos cristãos, é a antítese da inculturação do Evangelho. Francisco observa, nas Vésperas rezadas no Canadá, que esse secularismo pode gerar um olhar negativo, que “nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de ‘armadura’ para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: ‘O mundo é mau, reina o pecado’ [… mas Deus] encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo”.

Assim como a inculturação do Evangelho, também o enfrentamento do secularismo implica numa imaginação criativa, que se abre ao novo. Francisco continua: “o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspeto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral”.

Uma realidade que nos pede humildade

O caso canadense é particularmente doloroso para os católicos, pois aconteceu num período relativamente recente e não respeitou princípios de valorização da cultura e das relações familiares que já eram seguidos no trabalho missionário na América Latina desde o período colonial.

Reconhecer o erro e pedir perdão publicamente não deveria ser um problema para os cristãos. A humildade e a contrição de coração sempre foram valores para nós. As tristes consequências dos escândalos de pedofilia mostram na prática o tamanho do erro de uma mentalidade que procurava minimizar e esconder os erros dos católicos. A humildade de pedir perdão não é submissão às coerções do poder, mas liberdade de quem sabe que é a misericórdia de Deus que salva cada um de nós e o mundo.

“Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”. Essas palavras de Francisco, em seu discurso, não são um questionamento ao anúncio evangélico, mas devem abrir nossos olhos para o perigo, sempre presente, de querermos nos adequar “mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

O Papa não se restringe ao pedido de perdão. Lança um questionamento fundamental em nossos dias: o cancelamento cultural, que lê seletivamente a realidade, vendo os pecados dos cristãos, mas não reconhecendo a contribuição da fé, não é uma forma atual de “colonização cultural” – que acaba desenraizando a cultura popular e deixando os seres humanos mais à mercê do poder?

Em busca de novos caminhos

O ressentimento e o ódio não poderão construir um futuro melhor, seja para as vítimas dos erros do passado, seja para aquelas dos erros do presente. Citando, no discurso acima, a escritora judia-húngara Edith Bruck, o Papa lembra que “a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar”.

A construção de uma cultura mais humana, que respeite o passado, mas abra um caminho para o futuro — continua o Papa — passa por não se entregar aos partidarismos e “recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim como, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens”.

Para superar o secularismo, é preciso renovar o anúncio evangélico, levando “aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé”, nas palavras do Papa durante a homília de Vésperas. Para tanto, Francisco lembra três desafios: (1) fazer Jesus conhecido, pois “nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio”; (2) dar um testemunho credível, no qual “é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras”, (3) construir a fraternidade, “viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum”.

Não seguirmos o espírito do secularismo

Por fim, nas Vésperas, o Papa lança uma advertência: “Não nos esqueçamos de que só podemos enfrentar esses desafios com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus”.

Francisco aponta um caminho, o mundo laico tem se encantado com ele. Cabe a nós, católicos, compreender o seu exemplo, para nos convertermos ao que o Espírito nos pede nesse momento e podermos ser sinal claro para nossos irmãos.

Francisco Borba Ribeiro Neto
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Imagem a partir de foto de Ross Dunn (Flickr) e pintura de Benjamin West

O que o Documento de Aparecida diz para cada um de nós?

Em 2007, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) realizou a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, com o lema “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida” e que resultou no Documento de Aparecida. O então Cardeal Jorge Mário Bergoglio presidiu a comissão de redação do texto e seu conteúdo tem um vínculo amplamente reconhecido com o pontificado de Francisco. Em 2021, a pedido do Papa, o CELAM iniciou uma ampla retomada continental desse Documento, que culminou num texto, recém-lançado, intitulado “Nossas dívidas com Aparecida: balanço 15 anos depois”.

Como essas reflexões podem ser úteis para cada um de nós? Um dos erros mais comuns, no estudo dos documentos eclesiais, é fazer uma leitura seletiva, onde procuramos as passagens que confirmam nossas ideias prévias e deixamos de lado os trechos que não se adequam a nossos pensamentos. Outro erro comum é fazer uma reflexão genérica, de caráter teológico e sociológico, que não incide em nossa vida. Em oposição a essas duas posturas, aquela justa é a de perguntarmo-nos “o que Deus quer me dizer com esse texto?” – pois, na verdade, nada que diga respeito à Igreja tem sentido se não passar pela conversão de nossos corações.

O discipulado missionário

O ponto de partida do Documento de Aparecida – bem como de toda trajetória religiosa do Papa Francisco – é, sem dúvida alguma, o encontro com Cristo. A pessoa apaixonada espelha, em tudo que faz, a sua paixão. O discípulo, diz Francisco, é aquele que “permanece” com o Senhor, que se deixa guiar por Ele. Não uma postura moralista ou discernimento meramente intelectual, mas um “estar junto”, uma companhia afetiva que ilumina a caminhada.

Esta paixão, este permanecer, é (ou deveria ser) nosso modo de sermos discípulos de Jesus, um dos eixos fundamentais das reflexões de Aparecida. Discursando aos bispos latino-americanos durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro (2013), Francisco propôs critérios que bem poderiam orientar um “exame de consciência” de cada um de nós sobre como vivemos esse discipulado. Em primeiro lugar, o discipulado é “missionário”. Essa paixão por Cristo não nos fecha em nós mesmos, numa postura intimista, mas é vivida indo-se ao encontro do irmão, se ocupando de suas necessidades, comunicando a ele a alegria que vivemos. Quem se fecha em si mesmo, ainda que com boas justificativas, como excesso de trabalho ou saúde precária, não vive plenamente esse “discipulado missionário” – mas, se nos propusermos a tal, Deus nos ajuda a superar qualquer dificuldade e realizar o seguimento a Cristo e o encontro com os irmãos. Nesse discurso aos bispos, o Papa ainda adverte tanto contra as reduções sociologizantes quanto às intimistas (que chamou “ideologização psicológica”) da fé, alerta contra o intelectualismo dos “católicos iluminados” e o desejo de uma “restauração” de disciplinas e valores – que podem até ser justos, mas acabam se confundindo com uma dinâmica meramente humana.

Para que todos tenham vida

O lema de Aparecida, “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida”, reafirma a centralidade de Cristo tanto em nossa caminhada humana – é Nele, não em riquezas, prazeres ou ideologias, que temos a vida – quanto na promoção humana, pois o discípulo missionário não pode estar alheio a tudo aquilo que diminui e avilta a vida de nossos povos.

As condições de pobreza material e as injustiças sociais estão entre os maiores desafios a nosso discernimento cristão. Ninguém, em sã consciência, poderá duvidar que tanto a vida terrena de Jesus quanto a atuação histórica da Igreja estão marcadas pelo compromisso para com os mais pobres e fragilizados, sempre na busca da realização da justiça e do amor. Contudo, as formas pelas quais a justiça se realizará e a pobreza será superada são questões polêmicas, carregadas de visões ideológicas e politizações. Muitos cristãos se negam a enfrentar esses problemas, outros abraçam uma posição ideológica que lhes parece conveniente e até instrumentalizam a mensagem cristã para se sentirem legitimados. Nenhuma dessas posições é possível para aquele que deseja viver como um “discípulo missionário”. Somos convidados a enfrentar o risco da ideologização, o aborrecimento causado pelos discursos sectários, as dificuldades e o cansaço do trabalho comprometido com a realização do bem comum.

Um olhar que nasce da fé e da oração

Mas como superar a ameaça da ideologização da fé? No discurso acima citado, Francisco lembra dois aspectos importantes das reflexões em Aparecida, que muitas vezes são perdidas por serem dadas por “óbvias”. Em primeiro lugar, a importância da “oração com o Povo de Deus”, pois os bispos não apenas tinham sua rotina de orações, mas também estavam perto do Santuário e da movimentação e oração dos peregrinos que o visitavam. Depois, lembra que não existe um “ver” neutro, toda compreensão da realidade se dá a partir de um quadro referencial. Então, se pergunta Bergoglio, “com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo”.

Não existe discernimento cristão sem oração – e a oração não é intimista, é um ato íntimo, mas que se conecta a toda a comunidade cristã. Essa postura orante, “em saída”, não determinada apenas por nossos sofrimentos e aspirações, não é óbvia e pode exigir um grande trabalho de conversão de cada um de nós. Por outro lado, nesses tempos de incertezas morais, batalhas ideológicas e polarização política, poder ver o mundo com os olhos de Cristo deveria ser um dos nossos esforços mais importantes.

A Introdução e o primeiro capítulo do Documento de Aparecida são particularmente instrutivos do que seja esse olhar a que se refere o Papa Francisco. Ao retomarem, em rápidas pinceladas, a caminhada da Igreja em nosso continente, os bispos recordam as “luzes e sombras” dessa história, feita por seres humanos e sujeita às nossas contradições e pecados, mas nunca perdem de vista a gratidão e a alegria pelos dons recebidos. Como iriamos ver mais tarde nos vários escritos do Papa Francisco, o Documento nos mostra um olhar cristão que é sempre humilde, nunca triunfante, sempre repleto de fascínio e gratidão pelo amor e pela beleza dos dons recebidos.

Esses capítulos, que podem até parecer óbvios e formais, apontam para uma postura diante da realidade carregada de fascínio pela beleza, cheia de alegria e gratidão pelos dons recebidos, permanentemente comprometida com o bem dos irmãos. É um modo cativante de viver a fé, mais do que suficiente para justificar a retomada do Documento. Como dizem os bispos, citando Bento XVI:

“Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Nº 12).

Francisco Borba Ribeiro Neto
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