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O mundo na visão da doutrina social da Igreja

O mundo na visão da doutrina social da Igreja

Compreendendo a realidade numa perspectiva integral, a partir do pensamento social cristão

Tag: Diálogo

O aborto, os ianomâmis e a defesa da vida sem partidarismos

O aborto, os ianomâmis e a defesa da vida sem partidarismos

A CNBB já publicou, em 2023, duas notas que se referem diretamente à defesa da vida dos mais fragilizados. Em 18 de janeiro, a Nota “A vida em primeiro lugar” manifestava a reprovação da entidade às iniciativas do governo recém-empossado, como a saída do Brasil da Convenção de Genebra de defesa da vida e a revogação da portaria que determina a comunicação de aborto por estupro às autoridades, apontando para a flexibilização do aborto. Em 22 de janeiro, na figura de sua Comissão Especial de Bioética, emitiu uma “Nota de solidariedade”, condenando a situação desumana em que se encontram os yanomamis e expressando sua solidariedade a eles.

Tristemente, a sociedade brasileira muitas vezes parece ter se dividido entre os que parecem indignados com a potencial flexibilização do aborto, mas não se importam com a situação dos yanomamis, e os indignados com a situação destes indígenas, mas que consideram o aborto “um direito”.

Se analisarmos as muitas declarações dos papas recentes, tanto sobre a questão indígena quanto sobre o aborto, constataremos facilmente que nenhum deles, por mais opostas que possam parecer suas posições, deixaria de se indignar com essas duas situações. Tanto a defesa da vida (uma questão de direitos humanos, que transcende as convicções religiosas) quanto a doutrina social católica devem ser vistas numa perspectiva integral, que supere os partidarismos. Quanto partidarizamos essas questões, invertemos a ordem dos fatores: ao invés dos partidos e forças sociais servirem ao bem comum, são os ideais de construção do bem comum que passam a ser instrumentalizados pelos partidos em sua busca pelo poder hegemônico – e nesta tendência direita e esquerda se equivalem.

Normalmente, três passos nos afastam de uma percepção integral da defesa da vida e nos induzem à partidarização.

A invisibilização dos mais frágeis

Não defendemos a vida dos mais frágeis se não nos damos conta de sua existência. Sua invizibilização pode ser tanto uma estratégia intencional para evitar que nos empenhemos em sua defesa, quanto uma estratégia inconsciente, pela qual nos descomprometemos com uma pauta com a qual não nos identificamos ou com uma bandeira que parece estar hegemonizada pelos nossos adversários políticos.

A humanidade do filho desejado e esperado já é reconhecida tão logo a gravidez é notada, e a criança ainda por nascer desde já é cercada por carinhos e cuidados. Mas, numa gravidez indesejada, causada por um ato violento ou mesmo consensual, para quem defende o aborto como direito, o feto é visto como um amontoado indefinido de células, ser estranho que não é parte do corpo materno nem é um tumor, mas também não é visto como pessoa. Sua humanidade é invisibilizada, para liberar um aborto que poderia parecer monstruoso para a própria mãe, se a criança fosse vista e reconhecida como ser humano.

Com estratégias bem diferentes, se invisibiliza o drama dos povos indígenas. Foi-se o tempo em que eles nem mesmo eram considerados humanos (argumento já rejeitado na Bula Sublimus Dei, de 1537, do Papa Paulo III). Agora, os argumentos são de que a impressa partidarizada distorce as informações, que seus sofrimentos não existem ou estão sendo aumentados pela mídia, que deturpa os fatos.

As justificativas injustificadas

Quando não é possível invisibilizar, se usa argumentos para justificar da omissão ou mesmo o erro. Como dito acima, no caso dos indígenas, se usa os argumentos de que são eles próprios ou as ONGs que não desejam melhorar suas condições de vida, que os indígenas são os culpados de sua pobreza (esquecendo-se que estamos falando de povos que não vivem mais segundo seus costumes e tradições, mas conforme nossa sociedade impôs que vivessem).

Os povos indígenas são parte da Nação brasileira. Como cada um de nós, eles também têm direito a viver segundo suas tradições e procurar um verdadeiro desenvolvimento humano integral. As evidentes dificuldades envolvidas nesse processo devem orientar as ações a serem implementadas, mas não podem justificar a omissão ou coisas piores, como a injustiça e a exclusão social.

Já no caso do aborto, são bem conhecidos os argumentos relativos aos sofrimentos psíquicos da mãe, da falta de condições para cuidar da criança, dos riscos dos abortos clandestinos. Novamente, os problemas são reais e devem orientar tanto as políticas públicas quanto o compromisso solidário dos cristãos, mas não servem como justificativas para a inação ou o descompromisso…

A empatia seletiva e o ego ressentido

A história da civilização ocidental é marcada pelo crescimento da empatia. Ver uma pessoa escravizada foi normal em grande parte da história da humanidade, mas é inadmissível para nós. Torturas e flagelações já foram espetáculos públicos, mas hoje em dia chegamos a duvidar da sanidade mental de alguém que se divirta com essas situações. Os direitos civis eram prerrogativa dos homens ricos e das etnias dominantes (brancos, em nossa civilização ocidental), mas hoje reconhecemos que devem ser partilhados por todos.

Contudo, como diz o ditado popular, o diabo expulso pela porta, entra pela janela. A empatia contemporânea não costuma abrir-se ao perdão, nem aceitar os argumentos do adversário. O ressentimento frequentemente nos cega à condição do outro. O ressentimento contra o “autoritarismo patriarcal branco”, por exemplo, leva à negação de valores que são inerentes à natureza humana e à estigmatização de pessoas que não querem nada mais que o bem de seus filhos e da sociedade. Por outro lado, o rechaço à ideologia de gênero leva a não aceitar o fato de que muitos homossexuais são vítimas de injustiças e discriminações.

Se desejamos mesmo estar perto de Cristo…

Todos dizem querer o diálogo e o bem dos mais fragilizados, mas poucos estão dispostos a realmente dar a mão ao sofredor quando este parece estar no lado oposto do espectro ideológico. Nós também, seres humanos que somos, filhos de nosso tempo, estamos sujeitos a essa tentação de selecionar a quem defendemos – mas ao fazermos isto nos afastamos de Cristo, que amou bons e maus, que se sacrificou tanto pela salvação de seus discípulos quanto de seus algozes.

Escandalizar-se, ficar com raiva ou negar a realidade não nos ajudará a sermos cristãos melhores, nem pessoas mais felizes. Um bom exame de consciência, onde não procuramos nos justificar mas sim reconhecer nossos pecados, ainda é o mais cristão e eficiente antídoto a uma postura de desamor. Quando aprendemos a olhar com sinceridade a nós mesmos e as nossas falhas, também aprendemos a dialogar com os outros e descobrir as contribuições que eles podem nos dar para que nós mesmos nos tornemos melhores… E então teremos a alegria de nos percebermos cada vez mais próximos de Cristo.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Imagem: Wikimedia (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alto_orinoco5.jpg).

 

Autor BorbaPublicado em 7 de fevereiro de 2023Categorias Defesa da vidaTags cultura, Diálogo, Ideologia, Promoção humanaDeixe um comentário em O aborto, os ianomâmis e a defesa da vida sem partidarismos

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Nossa grande atividade política é sermos geradores de esperança

Daniel Gomes*

Discernir o voto no 2o turno das eleições de 2022 a partir de um olhar integral para com a realidade: esse foi o desafio que 20 jovens universitários do Movimento Comunhão e Libertação (CL) se propuseram a vivenciar em outubro. Neste movimento, hoje presente em cerca de 90 países, fundado em Milão, na Itália, pelo Padre Luigi Giussani (1922-2005), com o objetivo de alcançar uma madura educação cristã e colaborar com a missão da Igreja em todos os âmbitos da sociedade, estes jovens participam das Escolas de Comunidade, nas quais refletem sobre as experiências que vivenciam.

Para alcançar o objetivo proposto, primeiro os jovens entenderam que precisariam ter uma percepção da realidade além de suas bolhas de relacionamento. Assim, decidiram que cada participante iria pesquisar aspectos que o surpreendesse positivamente no candidato em que não votaria de modo algum. O passo seguinte, foi compartilhar esses apontamentos em um ambiente virtual em que os demais pudessem ver e comentar tais postagens. Por fim, uma semana antes do 2o turno das eleições, os jovens realizaram um encontro remoto para compartilhar dúvidas e as experiências de discernimento realizadas nesse período.

Participante de CL desde 2016, Ricardo Chiquetto do Lago, 20, estudante de Engenharia Elétrica na Poli-USP, participou dessa atividade. Nesta entrevista, ele detalha como se deram os encontros e os resultados alcançados, entre os quais a tolerância com aqueles que pensam de modo diferente e o entendimento sobre o papel dos cristãos como promotores da esperança na sociedade.

 

Daniel Gomes. Como surgiu esta iniciativa realizada durante as eleições? E de que maneira a espiritualidade do Padre Luigi Giussani serviu-lhes de inspiração?

Ricardo Chiquetto do Lago. Conversando entre amigos do Movimento Comunhão e Libertação (CL), sentimos um incômodo muito grande quando olhávamos ao nosso redor, em nossos ambientes de trabalho ou estudo. No que tangia à política, ficamos preocupados com a polarização que aparecia. Mais do que isso, porém, ficamos também preocupados em como as eleições tomavam um caráter totalizante, como se esse fosse o fim de tudo. Então, a partir dos ensinamentos de Dom Giussani, resolvemos nos ajudar a olhar de forma diferente para esse momento, sem reduzir os fatos que nos cercavam. Aprendemos com ele, dentro da experiência do movimento, a procurar olhar integralmente para a realidade. Assim, vimos nesse contexto em que estávamos inseridos o aparecimento de uma oportunidade para nos educarmos e nos ajudamos, a partir do texto de um encontro com um professor universitário italiano de CL, Giorgio Vittadini, a enfrentar esse novo desafio que nos era apresentado.

 

Como ocorreram os encontros e com quais foram focos principais?

Localmente, realizamos encontros presenciais, porém, dada a distância entre as comunidades dos diferentes estados, ou até mesmo a dificuldade de se encontrar em uma metrópole como São Paulo, fizemos algumas propostas também on-line. Mas tudo girava em torno de dois grandes temas, que notamos ao final estarem bem interligados: “O que constrói a esperança nos dias atuais?” e “O que constrói de verdade a história?”. Como resultado, nos deparamos com a fragilidade da esperança que carregávamos e, depois, com o desejo entender o que de fato construía algo sólido ao longo da história.

 

Essa proposta de uma pessoa se debruçar sobre aspectos que considerasse positivo nas propostas de um candidato em que não votaria de modo algum trouxe quais resultados para as reflexões do grupo?

Isso surgiu com a consciência de que, para escolher em quem votar, era necessário conhecer, de verdade, a realidade, em todos os seus fatores. Assim, essa proposta incômoda nos foi útil ao educar o nosso coração para não se contentar com a bolha de narrativas em que nos inserimos, sobretudo daquelas que sempre carregam apenas as falhas alheias, sem algo positivo próprio. No fim, foi impressionante ver o quanto que, aos poucos, isso nos fazia irmos além da mentalidade das pessoas que nos cercam. Definitivamente, o resultado me surpreendeu.

 

Essa experiência deixou quais legados principais aos jovens em termos de percepção e interesse sobre a política e a construção do bem comum?

Em primeiro lugar, conforme passou o tempo, notamos que houve uma mudança em onde depositamos a nossa esperança. Ela ficava frágil quando, antes, era depositada na votação, pois não gostar profundamente de nenhum dos candidatos podia ser razão de desespero. Contudo, perceber que a esperança estava na construção da comunidade cristã inseriu um novo paradigma no nosso olhar para os acontecimentos. Simplesmente mudou tudo. A própria eleição ganhou outro rosto. Tanto que até mesmo aqueles que no começo não se importavam com o voto viram brotar em si um interesse pela política como jamais ocorrera antes.

 

A partir desta experiência, qual o entendimento de vocês sobre como o jovem católico pode tomar parte da atividade política com vista a ajudar na formação de uma sociedade melhor?

Cada vez mais, meus amigos e eu fomos percebendo o quanto ficamos incomodados com as opiniões das pessoas em nossos ambientes de trabalho ou estudo, por exemplo quando muitos de nossa geração afirmam expressamente que não querem ter filhos. Em contrapartida, encontramos em CL um olhar para a realidade diferente, que traz mais esperança na forma como encarar a vida. A partir de então, percebemos o quanto construir a comunidade cristã é também um gesto político, muitas vezes nevrálgico diante das outras questões ao nosso redor. Ou seja, reconhecemos que nossa grande atividade política é sermos geradores de esperança. Existe, porém, uma questão importante em todo esse caminho: antes de mais nada, antes de comunicar os valores cristãos, é necessário um esforço individual e coletivo de verificação. Afinal, sem ele, os juízos da Igreja permanecem só bonitos, sem uma real capacidade de persuasão das pessoas.

 

Como avaliam que o católico pode colaborar para que haja a superação do atual clima de polarização política no Brasil?

Nesse caminho percorrido, notamos uma gigante ampliação dos nossos horizontes, e foi nítido que, semana após semana, alguém mais fazia essa experiência. Quando nos perguntamos “De quem queremos ser?”, o olhar para aqueles ao nosso redor mudou. Por exemplo, mudou-se a consciência de quem amamos, nos permitindo até amar alguém que votava em um candidato pelo qual tivéssemos aversão. E isso nos fez reconhecer a beleza do que encontrávamos na Igreja, pois não éramos excluídos pelos nossos votos. E dentro da polarização que vivíamos na sociedade, isso definitivamente não era algo óbvio.

 

Essa iniciativa transcorreu nas escolas da comunidade. Pode explicar melhor como elas funcionam?

Para mim, elas são um ponto crucial no carisma de Comunhão e Libertação. São reuniões, semanais ou quinzenais, que fazemos entre alguns que vivem realidades minimamente próximas, com objetivo de nos ajudar a julgar melhor as experiências que vivemos. Muitas vezes, trabalhamos em cima de algum texto, por exemplo aquele do Vittadini sobre política que comentei acima. E são essenciais para mim, por me fazerem aprender a usar a razão e entender a fé de forma concretíssima.

Conheça mais sobre as Escolas da Comunidade em: https://portugues.clonline.org/escola-de-comunidade

* Daniel Gomes é jornalista, com atuação em mídias católicas e de comunicação comunitária

 

 

 

Autor BorbaPublicado em 17 de novembro de 2022Categorias EleiçõesTags Comunhão e Libertação, Democracia, Diálogo, Ideologia, Partidos políticos, Política2 comentários em Nossa grande atividade política é sermos geradores de esperança

A “beleza desarmada” no pós-eleição

A “beleza desarmada” no pós-eleição

Tomo emprestado, para esse artigo, o instigante título do livro de Julián Carrón, A beleza desarmada (São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016) – mesmo que não me detenha propriamente nos conteúdos daquela obra. Publicado na Europa quando a polarização e os extremismos ideológicos começavam a se manifestar de modo mais evidente, o título remete à percepção da beleza de Cristo e do cristianismo como “desarmada”, isso é, entregue à humanidade sem necessidade de buscar a autodefesa ou o confronto. A “guerra cultural” pode até existir, mas é vencida não pela lógica do mundo, mas pelo fascínio de um encontro que corresponde ao mais profundo do nosso ser, que nos irmana a todos na aceitação do amor imerecidamente recebido.

A beleza desarmada é mais necessária do que nunca nesses tempos em que a agressividade e a desesperança parecem tomar conta de grande parcela da sociedade, enquanto outra parcela parece querer usar os acontecimentos para demonizar seus adversários. De um lado e de outro, avançamos de escândalo em escândalo, cada vez mais contaminados por um espírito de desunião, divididos entre a incapacidade de ver uma esperança e a ilusão utópica de um futuro ideal que nunca se realizará plenamente, como já vimos no passado.

Encontramos o que buscamos

O mundo é pródigo de maravilhas e surpresas. Nele, encontramos aquilo que buscamos. Se procurarmos, entre nossos opositores, pessoas más, abjetas, com sangue nos olhos, que só pensam em nos destruir, certamente encontraremos. Se procuramos, entre esses mesmos opositores, pessoas amigas, cheias de boas intenções, comprometidas com o bem comum e ansiosas por uma reconciliação, também encontraremos. Isso acontece, em parte, porque pessoas dos dois tipos existem realmente – aliás, a maior parte de nós é formada por pessoas que combinam os dois estereótipos em maior ou menor grau. Mas também se deve ao fato de que nosso relacionamento com o outro é, em grande parte, definido pela forma como nos aproximamos dele. Se nos aproximamos de forma agressiva, encontraremos, quase certamente, agressividade; se nos aproximamos com a mão estendida, teremos mais possibilidade de encontrar outra mão estendida.

A polarização extremada dos últimos tempos deixou, com certeza, marcas profundas em nossa sociedade. Infelizmente, existem pessoas que nunca mais conseguirão se livrar dos ressentimentos e rancores adquiridos nesse período. A maioria, contudo, não está “condenada” a essa dinâmica agressiva e responderá, positiva ou negativamente, àquilo que a realidade lhe apresentar. A superação interior das mágoas e dos extremismos depende da construção de uma “política melhor” e da recuperação de um tecido social esgarçado. Tarefas que pertencem não só aos políticos, mas a todos os cidadãos.

A maior pergunta que cada um de nós precisa responder é “o que me determina, o encontro com a ‘beleza desarmada’ de Cristo ou os discursos inflamados, justos ou injustos, de lideranças humanas?”. Aquele que é determinado pelo mundo, responde com a lógica do mundo – uma lógica para a qual a beleza e a bondade parecem sempre ilusórias e a dignidade só pode ser conseguida à força, derrotando e condenando os opositores aos mesmos castigos que eles supostamente nos infligiram.

Dois modos de superar as divisões

O modo mais frequente de se construir o diálogo entre posições antagônicas é buscar os pontos em comum e abstrair os diferentes, procurando os consensos. Esse método, “horizontal”, é, sem dúvida, prático e eficiente na maior parte dos casos. Contudo, não funciona quando as oposições se tornam muito arraigadas, os ressentimentos são muito fortes e as visões de mundo se apresentam como muito dispares.

Nesse caso, o diálogo pressupõe um outro método, “vertical”: mergulhar até o íntimo das próprias convicções, procurar entender e explicitar os anseios mais profundos de cada um dos interlocutores. Em primeiro lugar, nós mesmos temos que mergulhar em nós mesmos, superarmos as capas ideológicas, os desejos desordenados, as ilusões enganosas, para encontrarmos aqueles anseios de amor, felicidade, realização e liberdade que são a razão de ser mais profunda de nosso agir no mundo. Diante desses anseios, nos descobrimos desarmados, mas abertos e fascinados para com a beleza do Amor que, de modo nem sempre evidente, inunda toda a realidade.

Aquele que mergulhou em si mesmo – e descobriu no seu íntimo uma resposta, que vem de um Outro, aos anseios do próprio coração – se torna sinal dessa realidade mais profunda para os demais. Sempre haverá quem adere e quem não adere ao diálogo que pode nascer daí, mas aqueles que se movem em busca do bem acabam por se identificar e construir uma relação que não anula as diferenças, mas permite a construção de uma amizade operativa que irá dando frutos à medida que se desenvolver. Aquele que mergulhou em si mesmo, se torna ele mesmo parte dessa “beleza desarmada” capaz de fascinar o mundo e potencializar uma verdadeira construção do bem comum.

Para o nosso bem e para o bem do mundo

Encontrar a “beleza desarmada” pode ser um ponto de inflexão na trajetória de muitas pessoas. Alguns de nós temos o potencial de influenciar milhares de pessoas, outros podem ser sinal apenas para sua família e para uns poucos amigos. Não é isso que importa. Aos olhos de Deus e no caminho da nossa realização humana, a grandeza de cada um se mede não pelo tamanho da responsabilidade que nos foi dada, mas pelo tamanho do coração que conseguimos cultivar. A responsabilidade social que recebemos depende muito menos de nós e muito mais dos acontecimentos ao longo de nossa vida. Nosso coração, pelo contrário, depende diretamente do quanto nós o cultivamos, o quanto somos sinceros conosco mesmo e engajamos nossa liberdade na busca do verdadeiro, do bom e do belo.

Nossa colaboração para a construção do bem comum não depende do tamanho de nossa responsabilidade, mas do quanto somos fiéis a essa responsabilidade. Aqueles entre nós que têm muitos seguidores, que ocupam lugares de influência, precisam sem dúvida ser sinais dessa “beleza desarmada” e não dos medos e dos ressentimentos ditados pelas ideologias. Mas a todos nós é dada a possibilidade de encontrar essa beleza e de ajudar nossos irmãos a encontrá-la também… Para o nosso bem e para o bem do mundo.

Autor BorbaPublicado em 8 de novembro de 2022Categorias EleiçõesTags Amor, beleza, Democracia, Diálogo, Paz, Perdão, Política2 comentários em A “beleza desarmada” no pós-eleição

E, depois das eleições, a vida continua…

E, depois das eleições, a vida continua…

Escrevo esse texto antes do segundo turno da eleição para presidente, sem saber o seu resultado. O leitor talvez já saiba o resultado ao lê-lo, talvez não. Desejei começar assim para deixar claro que as observações a seguir não têm significado partidário, valem seja lá quem for o ganhador do pleito.

No primeiro turno, Lula obteve 36,6% do total de votos possíveis (que incluem também brancos, nulos e abstenções). Bolsonaro, 32,6%. Num primeiro momento, mais de 60% da população brasileira não apoiou nosso futuro presidente, seja ele qual for. Ainda que isso seja normal numa disputa democrática, a polarização acentuada dessa eleição torna ainda mais urgente pacificar os ânimos exaltados pela disputa partidária e caminhar para um projeto comum de Nação, capaz de orientar o desenvolvimento e construir realmente o bem comum. Afinal, a pobreza continuará existindo em 2023, seja quem for o governante; assim como os desafios ao desenvolvimento econômico, a necessidade de combater a corrupção, as ameaças à formação de nossos jovens e à construção das famílias.

Uma tarefa para todos

A construção de um país melhor é sempre um processo histórico que se alonga no tempo, que exige tanto a correção dos erros quanto a manutenção dos acertos. Sem um mínimo de consenso em torno a certos pontos, o Estado tem uma atuação errática e, forçosamente, ineficiente. Além disso, é necessário traçar limites claros tanto para os Poderes institucionais quanto para as forças sociais, de modo que todos saibam o que é desejável ou possível, o que não é desejado e até condenável – seja na vida econômica, nas pautas de costumes ou na esfera política propriamente dita. Por isso, a construção de consensos justos é uma prioridade para o Brasil que sai dessas eleições tão dividido e machucado, seja qual for o resultado.

Para os cristãos, existe uma razão a mais para buscar a superação das divisões que se estabeleceram nessas eleições: é no amor mútuo que seremos reconhecidos pelo mundo (cf. Mt 18, 20; Jo 13, 35). Estar juntos, mesmo reconhecendo as diferenças, mas sempre procurando a verdade, é um chamado muito exigente. Como lembra São Paulo, é necessário ser humilde e não se considerar melhor do que os outros, amar até o inimigo, ser paciente na tribulação e constante na oração (Ro 12, 3-21).

Ora, esse comportamento virtuoso, que o Apóstolo explica numa linguagem tipicamente evangélica, implica naquilo que chamamos, na sociedade atual, de empatia – a capacidade de se identificar com o outro, compreender suas dores, necessidades e anseios. Uma empatia absoluta é impossível. Cada um de nós é único e um mistério até para si mesmo, quanto mais para os outros… Mas, quando vemos em nossas comunidades tantas pessoas boas com posições políticas opostas e conflitantes, temos que reconhecer que algumas dificuldades e aspirações não foram compartilhadas, compreendidas e nem mesmo respeitadas. Não podemos imaginar que nosso irmão é “burro” ou “mal-intencionado”, temos que tentar compreender o que existe de mais profundo e verdadeiro em seu coração, nos comprometermos também com essas aspirações e necessidades. Só a partir daí é que poderemos julgar a política e os programas políticos, mantendo-nos em unidade e ajudando a construir um projeto único de nação.

Uma tarefa para os eleitores do vencedor

Uma tendência instintiva no ser humano é o de espezinhar os derrotados. A história é narrada pelos vencedores, diz a sabedoria popular. Mas esse é um comportamento muito nocivo. O derrotado de hoje, frequentemente, é o vencedor de amanhã – e o ressentimento acumulado explode frequentemente sob a forma de um espírito vingativo e do desrespeito até aos direitos do outro. Cria-se uma espiral de rejeição, desprezo e agressividade, dificultando cada vez mais a construção de consensos que levem ao bem comum. Assim, para os eleitores do vencedor, é particularmente importante um esforço de controle para evitar a humilhação do adversário, para manter uma postura de acolhimento e um verdadeiro desejo de entendimento e construção de um projeto comum.

A vitória eleitoral é sinal de que se tem a maioria, não de que se está certo. A verdade não é decidida por um critério eleitoral. Podemos ganhar uma eleição tendo feito as opções erradas, assim como podemos perdê-la tendo feitas as corretas. Por isso, é oportuno que o vencedor não deixe de procurar entender as razões do perdedor. Deve, inclusive, procurar assimilar tudo aquilo que existe de verdadeiro na posição do outro – tanto para melhorar suas próprias propostas quanto para conseguir ainda mais apoio no futuro.

Uma tarefa para os eleitores do vencido

Quem perde tende a se fechar, ressentido e magoado com os demais. É comum considerarmos que o outro “não sabe votar” e, por isso, fez com que os maus ganhassem. Nos fechamos e perdemos cada vez mais a capacidade de dialogar e entender o outro. Porém, se nosso candidato perdeu é porque ele não conseguiu se apresentar para a maioria como o candidato melhor (ou o “menos pior”). Isso exige de nós uma reflexão crítica também de nossa posição.

É fundamental superar o vitimismo e o ressentimento, fazendo uma autocrítica severa e construtiva (que os cristãos tradicionalmente chamam de “exame de consciência). Saber o que não conseguimos comunicar, o que não entendemos, onde nossas propostas estavam objetivamente erradas são passos fundamentais não só para tentar vencer da próxima vez, mas para sermos colaboradores reais na construção do bem comum.

Dialogar e construir juntos

As palavras do Papa Francisco, dirigidas justamente aos brasileiros, na Jornada Mundial da Juventude de 2013, são particularmente significativas nesse momento: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo no povo, porque todos somos povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce, quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística e a cultura tecnológica, a cultura econômica, a cultura da família e a cultura da mídia […] Quando os líderes dos diferentes setores me pedem um conselho, a minha resposta é sempre é a mesma: diálogo, diálogo, diálogo. A única maneira para uma pessoa, uma família, uma sociedade crescer, a única maneira para fazer avançar a vida dos povos é a cultura do encontro; uma cultura segundo a qual todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom”.

Mas o diálogo não pode ser um mero ato intelectual. Tem que ser acompanhado por gestos concretos. Este é um momento particularmente importante para desenvolvermos e apoiarmos as obras que constroem o bem comum, seja qual for a posição ideológica e partidária de seus proponentes. O que constrói o bem comum deve ser apoiado, venha de onde vier a proposta, aquele que está disposto a construir coisas boas junto conosco deve ser acolhido e integrado, seja lá quem for.

A responsabilidade para com o bem comum deve temperar tanto a euforia da vitória quanto a melancolia da derrota. Ter em mente aqueles que amamos – e, bom frisar, continuaremos a amar – e que votaram no outro candidato pode ser um bom começo para caminharmos rumo a um Brasil melhor.

Francisco Borba Ribeiro Neto

 

Imagem: Guilhem Vellut, Flickr
Autor BorbaPublicado em 27 de outubro de 202228 de outubro de 2022Categorias EleiçõesTags Democracia, Diálogo, Ideologia, Opção pelos pobres, Papa Francisco6 comentários em E, depois das eleições, a vida continua…

O maior valor cristão

O maior valor cristão

Com o tema dos valores cristãos colocados no centro do debate político atual, cresce tanto a necessidade quanto a oportunidade de amadurecermos nosso discernimento sobre esses valores. Quais são os grandes valores do cristianismo? Como eles são implementados na sociedade? Quais são as maiores ameaças que enfrentam? No último artigo, comentamos a relação entre os valores cristãos e a laicidade do Estado: os valores da fé não podem ser impingidos aos demais, implicam numa adesão livre de cada um de nós, e o poder estatal, que pode forçar a conduta humana, mas não pode mudar a profundidade de nosso coração, não é um justo guardião desses valores.

Esse tema pode ficar mais claro a partir das reflexões propostas por três livros que imaginam sombrios cenários futuros, escritos por um católico ortodoxo russo (V. S. Soloviev, 1853-1900), um sacerdote anglicano convertido ao catolicismo romano (R. H. Benson, 1871-1914) e um autoproclamado “socialista democrático” (George Orwell, 1903-1950).

Distopias futuristas

Na virada do século XIX para o XX, Soloviev escreveu o Breve conto sobre o Anticristo (São Paulo: Editora Antroposófica, 2003) e Benson escreveu O senhor do mundo (Campinas: Editora Ecclesiae, 2013). As duas obras, escritas em realidades diferentes, mas olhando com olhos proféticos o que seriam os séculos XX e XXI, falam de um futuro onde o Anticristo viria para a batalha final visando destruir a Igreja e dominar o mundo. Muito diferentes no estilo e no tamanho, ambas partem da mesma intuição: o Anticristo não será um senhor mal e terrível, mas sim um líder sedutor, que trará a paz e o bem-estar desejadas pela humanidade, sendo seguido por quase todos. Aliás, para se apossar da Igreja chegará até mesmo a propor sua reconstrução (!?!), mas não como obra divina, e sim como obra dele, o Anticristo. Apenas uns poucos fieis a Cristo perceberão a armadilha, pois este líder sedutor conquistará os corações humanos não para sua definitiva libertação, mas sim para subjugá-los na escravidão de uma desumanidade inicialmente consentida, mas nem por isso menos infeliz.

O Anticristo de Soloviev e Benson se aproxima tanto das ideologias que encantaram a humanidade no século XX quanto daquelas que a encantam neste início de século XXI. Suas propostas parecem boas e desejáveis, parecem trazer justiça, autonomia, paz e bem-estar às pessoas. Mas são enganosas porque não contemplam a natureza mais profunda do ser humano e acabam se revelando estratégias de dominação. O Anticristo está lá onde o poder e a força parecem condições necessárias para se chegar à felicidade, onde a ética parece impossível ou conflitante com a liberdade, onde os outros parecem um empecilho a nossa realização pessoal. Ele nos corrompe fazendo-nos crer que nós também precisamos, para sermos felizes e construir um mundo melhor, do poder humano e de relativizar certos valores para preservar outros – que devemos agir como os maus para vencer o mal.

Lutando contra o inimigo, podemos acabar nos assemelhando a ele. Assim, George Orwell, em A Revolução dos Bichos (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), imagina uma fazenda onde os animais expulsam os humanos opressores e passam a gerir a propriedade. Os porcos assumem a liderança e um dia têm que negociar sua produção com comerciantes humanos. Os outros animais, amedrontados e solidários aos porcos, ficam olhando o encontro pela janela, mas não conseguem distinguir os porcos dos homens.  O grande perigo da nossa época é este: os salvadores aparentes se identificam aos opressores, as ideologias humanistas se revelam desumanas quando aplicadas na prática. Porém, mais perigoso ainda para os cristãos: nós mesmos, querendo construir o bem, poderemos nos tornar “soldados do Anticristo”. Para isso, basta que confiemos mais nas ideias e no poder humano que no amor e na graça de Deus. Muitas vezes encontramos cristãos muito decididos em defender os valores da fé e da tradição, mas que no fundo estão defendendo a suas próprias convicções e procurando o poder, sem o desejo de anunciar o amor, a beleza e a alegria do Evangelho.

O maior valor é o próprio Cristo

Amar uma pessoa é muito diferente de amar uma ideia – mas nem sempre essa diferença é tão evidente quanto parece. Muitos filhos se ressentem de que seus pais parecem amar mais um projeto de futuro que traçaram para eles do que eles mesmos (e temem até perder o amor dos pais se não se adaptarem a esse projeto). Muitos militantes acreditam amar o povo, mas na verdade amam a um projeto político que construíram para o povo. Os escribas e os fariseus dos tempos de Jesus seguiam as leis e os preceitos mais por um amor à norma e à ordem do que por um amor sincero a Deus.

Numa sociedade plural, em continua mudança, impregnada pela crítica e pelo anseio de felicidade (frequentemente mal direcionado), amor a uma ideia, a um valor abstrato (por mais justo que seja) ou a um código ético formal tornam-se instrumentos de dominação, fatores de desumanidade, armas do Anticristo imaginado por Soloviev e Benson. Amamos pessoas, antes de ideias. Reconhecemos um valor na medida que percebemos que ele realmente faz bem às pessoas. Nosso código ético é aquele que nasce do amor a Deus e ao próximo.

A ordem dos fatores, nesses casos, altera muito o produto. Primeiro, nos descobrimos amados. Porque nos descobrimos amados, nos propomos a também amar. Porque amamos, reconhecemos que alguns valores – e não outros – são verdadeiros e constroem um mundo melhor. Quando começamos pela defesa dos valores, e não pelo amor recebido, perdemos a capacidade de olhar a pessoa concreta, suas necessidades e as formas pelas quais todos nós podemos viver os valores justos como instrumentos de realização de nossa humanidade.

“A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus”. A famosa frase de Santo Irineu de Lion comporta vários desdobramentos possíveis. Em primeiro lugar, a glória de Deus não é uma norma ou um valor abstrato, mas a vida de cada um de nós. Mas a nossa vida não se realiza plenamente sem “a visão de Deus”. A companhia pessoal de Deus não é um elemento místico intimista, mas um fato que se realiza em nosso cotidiano. Ele está conosco – e sua companhia é o maior valor que vivemos, que podemos testemunhar para o mundo, legar àqueles que amamos, transmitir a nossos filhos e às futuras gerações.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Autor BorbaPublicado em 25 de outubro de 2022Categorias Cultura, DemocraciaTags Amor, Defesa da vida, Diálogo, Eleições, Ideologia, VerdadeDeixe um comentário em O maior valor cristão

A sã laicidade e a defesa dos valores cristãos

A sã laicidade e a defesa dos valores cristãos

Frequentemente ouvimos falar duma “sã laicidade” que se contrapõem ao “laicismo militante”. Por laicidade, entendemos a independência e autonomia da comunidade religiosa em relação à política e vice-versa. Já há muito, a Igreja reconhece que a vida política das nações é uma responsabilidade dos leigos de cada país – e que a instituição religiosa deve manter um adequado distanciamento das decisões políticas e partidárias (cf. Gaudium et spes, GS 76). De igual modo, não cabe ao Estado interferir nas crenças religiosas dos cidadãos ou querer administrar os princípios da fé, constituindo “religiões estatais”.

Contudo, a fé inspira valores morais, ideais de convivência mútua e construção do bem comum que podem e devem orientar os fiéis em suas escolhas e trabalhos políticos. Note-se que essa é uma prerrogativa de todas as religiões, não só das cristãs. Podemos questionar alguns princípios dessa ou daquela crença, lembrar que, nesse caminho de construção social, a fé e a razão devem andar juntas, mostrar que não se pode admitir a violência e a prepotência de uma religião sobre as demais. Contudo, em linhas gerais e como princípio, todas as religiões têm igual direito de iluminar a vida pública de seus crentes.

A fé questionada

O laicismo é justamente a negação desse direito da experiência religiosa de ter voz na vida pública. Nas democracias modernas, não implica em perseguição física às pessoas religiosas, mas num processo de cancelamento cultural, que lhes nega o direito de expressar seus valores e princípios, censurados em função da imagem preconceituosa de que se tratam de ideias irracionais, fundamentalistas e autoritárias.

É inegável que a modernidade iluminista é marcadamente laicista. Grande parte dos pensadores e líderes modernos acreditam que a razão irá demonstrar que Deus não existe ou, se existe, não incide na vida das pessoas e sociedades. Sendo assim, qualquer pretensão religiosa seria um mero engano a ser superado. Outros, mais condescendentes, até aceitam o direito da religião influenciar na vida privada de cada um (aquilo que “se faz entre quatro paredes”, sem necessidade de prestar contas aos demais), porém nunca na vida pública.

Os tempos atuais vieram mostrar o quanto essa postura laicista é ilusória e prepotente. Movimentos de caráter religioso são cada vez mais presentes tanto na vida política das nações quanto nas relações internacionais. O ser humano tem necessidade de um sentido para a vida, de um grande amor capaz de acolhê-lo em suas dores e em suas alegrias – e essa experiência é essencialmente religiosa. A mentalidade laicista não conseguiu eliminar as religiões do convívio social, mas teve um efeito exatamente contrário: gerou uma confessionalidade cada vez mais ressentida e aguerrida, que tem dificuldade em dialogar com os proponentes de um progressismo que parece desprezá-la e não reconhecer os seus valores.

A religião partidarizada

As grandes correntes ideológicas rapidamente se apoderaram desse conflito. A direita se apresentou como defensora dos valores religiosos tradicionais, enquanto a esquerda se afirmou do lado do laicismo ou – pelo menos – de uma religiosidade mais laicizada, menos determinante na vida social. Com isso, o segundo turno das eleições de 2022 para presidente algumas vezes parece uma guerra religiosa, onde institutos de pesquisa e analistas políticos tentam entender e descrever um “Brasil profundo”, que lhes parece tão misterioso e desconhecido como as fossas marinhas abissais, ainda que esteja à vista o tempo todo.

O passado não volta, como querem supor alguns, mas a história política, nas democracias, oscila: os grupos políticos se desgastam no poder, tendendo a ser substituídos por grupos antagônicos, que também irão se desgastar e ser substituídos pelo anterior ou algum outro semelhante. De oscilação em oscilação, o mundo vai mudando inexoravelmente, mesmo que de forma mais lenta do que imaginávamos ou indo por um caminho que não era projetado por ninguém.

Os excessos do laicismo, ao invés de enfraquecer, evidenciam a veracidade dos valores religiosos. Já a prepotência religiosa fortalece as demandas laicistas e obscurece a própria transmissão da fé. Novos modos de se relacionar com a Verdade, novas explicações e condutas que explicitam os valores que vêm da religião são inevitáveis – mesmo que a Verdade e os valores mais profundos e caros à natureza humana sejam perenes. Nosso problema é como defender esses princípios, adaptando-os aos novos contextos? Como não transformar a defesa da fé num embate político-ideológico, onde seremos fatalmente carregados pelas ideologias e nos tornaremos, com a melhor das intenções, adoradores de bezerros de ouro?

O testemunho, não o poder

Ao longo dos séculos, o povo cristão aprendeu que a transmissão de uma fé que realmente ilumina e orienta toda vida, que torna o ser humano mais feliz e realizado, não acontece por imposição. As pessoas podem até se curvar às normas ditadas pelo poder, mas o protesto e a ânsia por autonomia permanecem em seus corações, esperando apenas uma ocasião adequada para se manifestar. Em sociedades tradicionais, muito uniformes, a revolta contra o pensamento hegemônico pode não se manifestar, mas em sociedades naturalmente plurais como a nossa, toda hegemonia tende a ser questionada. Um laicismo hegemônico é questionado por aqueles que percebem a força da religião e de seus valores. Uma religiosidade hegemônica será questionada por aqueles muitos que não perceberão mais como os valores que vêm da fé os ajudarão a serem mais felizes.

Numa democracia, permanecem os valores que se consolidam por convencimento e não por imposição. Quem tenta nos impor alguma coisa, está selando sua própria queda a médio e longo prazo. Mas nós também estamos condenando o futuro de nossas crenças se imaginamos que podemos impô-las ou impor seu respeito aos demais. O cristianismo, como toda religião sincera, convence pelo fascínio provocado por uma vida transformada pelo encontro com Cristo, não por argumentos racionais ou normas morais.

Na verdade, condenamos o cristianismo justamente quando imaginamos que o poder político pode salvá-lo ou mesmo eliminá-lo – e o fortalecemos quando o propomos e defendemos a partir de um testemunho de amor e de beleza nascido da nossa experiência pessoal.

Tanto Bento XVI quanto Francisco fizeram questão de afirmar que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, DCE 1). O primeiro e maior valor do cristianismo não é uma ideia santa ou um comportamento virtuoso, nas a própria convivência com a pessoa de Cristo. Tudo o mais vem em acréscimo. O testemunho desse encontro é a verdadeira defesa da fé numa sociedade laicista.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Autor BorbaPublicado em 18 de outubro de 202218 de outubro de 2022Categorias DemocraciaTags Amor, cultura, Defesa da vida, Diálogo, Direitos Humanos, Eleições, família, Ideologia, Opção pelos pobres, Secularismo e laicismoDeixe um comentário em A sã laicidade e a defesa dos valores cristãos

O mapa do Brasil dividido

O mapa do Brasil dividido

O resultado do primeiro turno das eleições reavivou o discurso dos “dois brasis”, um petista, outro antipetista. Mas a divisão geográfica reflete uma divisão cultural entre grupos com grande dificuldade de entender e respeitar argumentos e valores do antagonista – e aqui está o maior problema. Interesses e posições diferentes são inevitáveis na política, mas, quando não existe uma compreensão mútua, são impossíveis o diálogo, tão pedido pelo Papa Francisco, e o consenso .

Os rótulos “progressista”, “conservador”, “direita” e “esquerda”, se bem aplicados, ajudam a referir-se aos grupos em confronto. Mas frequentemente tornam-se uma abstração ideológica para condenar o adversário, sem se dar ao trabalho de entender seus desejos e motivações.

Dizer que ricos votam num candidato e pobres em outro é tentador, mas não resolve a equação. Os ricos são muito poucos para pesar na balança eleitoral. O fato é que pobres e classe média se distribuem ao longo do espectro político.

Invocar o argumento que “o povo não sabe votar” é arrogante e presunçoso para os dois lados, considerando que os candidatos estão quase empatados. Melhor dizer que os “políticos não sabem exatamente o que o povo quer”, e com isso cada posição acerta em algumas coisas e erra em outras.

Assim temos, por exemplo, um Nordeste onde os mais pobres há muito não percebiam a vida melhorar com o progresso econômico e deseja o fortalecimento da função social do Estado. Do outro lado, um Centro-Oeste, onde parcelas significativas da população se beneficiaram com o agronegócio, defendendo políticas pró-mercado e temerosas de ameaças à propriedade privada ou sanções ambientais e sociais que diminuam a produtividade econômica.

Os valores tradicionais, como a família e o trabalho digno, mesmo que mal remunerado, parecem sem sentido e até hipócritas para quem se sente cerceado em sua autonomia e seu desejo de realização, ou que olha para o trabalho sob a ótica da iníqua distribuição de renda brasileira.

Já o tratamento igualitário para ambos os sexos ou as políticas afirmativas para as minorias parecem perigosas ameaças ideológicas para os que sentem que a formação moral de seus filhos está em risco ou que se percebem como maioria ultrajada (e, em nossa sociedade, temos que reconhecer que, para a maioria, a dignidade da pessoa é frequentemente desrespeitada).

Alguns veem no aborto ameaças à vida que está por nascer, outros veem, numa sociedade armada e diante de uma polícia agressiva, ameaças à vida do pobre. O fato é que a vida é sagrada e nos dois casos existem ameaças a serem combatidas e cuidados a serem tomados.

Todas essas situações podem ser instrumentalizadas nas campanhas eleitorais – e quem fizer uma propaganda política mais eficiente tende a vencer o pleito. A construção do bem comum, contudo, vai acontecendo na medida que todos esses aspectos vão sendo pouco a pouco contemplados, que as visões ideológicas vão sendo substituídas por programas realistas que atendem as demandas de uns sem perder de vista o que há de justo nos reclamos dos outros.

Gente bem-intencionada, graças a Deus, não falta no mundo. Gente capaz de dar realmente um testemunho inteligente do amor já é mais difícil. Bem mais desafiador ser capaz de testemunhar um “amor político”, como convida Francisco (Fratelli tutti, FV 180ss), viver aquele “amor social” que não se deixa levar pelo medo, a que aludiu São João Paulo II (Redemptor hominis, RH 15-16). Mas é o amor que nos permite compreender o outro e essa é os cristãos são chamados a testemunhar tal amor nesse momento de tão alta polarização.

Francisco Borba Ribeiro Neto

Artigo originalmente publicado no jornal O São Paulo

Autor BorbaPublicado em 12 de outubro de 2022Categorias DemocraciaTags Bolsonaro, Diálogo, Eleições, Lula, Partidos políticos, PT4 comentários em O mapa do Brasil dividido

A responsabilidade de nós, que temos fé, para com a laicidade

A responsabilidade de nós, que temos fé, para com a laicidade

As democracias contemporâneas são Estados laicos, que devem dar igual apoio a todas as religiões, pois a dimensão religiosa é inerente a todo ser humano e como tal deve ser desenvolvida, e não permitir que nenhuma seja imposta. Creio que todos os leitores desse artigo já conhecem e concordam com essa afirmação. Contudo, ela é bastante polêmica na sociedade atual – e parece ter grande peso nas eleições que se aproximam.

Nas mídias religiosas ou simpatizantes de uma religião, os artigos sobre esse tema sempre enfatizam que o Estado laico não persegue as religiões e deve garantir o direito às práticas religiosas; enquanto nas demais quase sempre se usa o laicismo para desqualificar a religião no debate social. Cria-se um impasse: cada um prega para os próprios “convertidos”, ficando sempre mais convencido de estar certo; o diálogo não acontece e a força política, descolada de qualquer compromisso com a verdade, se torna o argumento decisivo.

Quando escrevo ou dou entrevistas para veículos claramente agnósticos ou ateus, sempre defendo o direito de expressão das religiões na vida pública. Aqui, porém, dirigindo-me a leitores católicos, pareceu-me importante responder a uma outra pergunta: o que temos de fazer para dialogar e convencer os bem-intencionados do direito e do valor das religiões para a vida pública? Aviso que falo dos bem-intencionados porque (1) eles são numerosos, mas (2) também existem os mal-intencionados, que não se deixarão convencer por nenhum argumento.

Duas distorções escandalosas

Bento XVI lembra que a fé não pode agir contra a razão, ainda que muitas vezes a própria fé tenha a missão de alargar a razão. Deus quer o bem do ser humano e uma religião que não esteja a serviço deste bem não pode ser verdadeira. Nesse sentido, temos que reconhecer que a laicidade do Estado não pode permitir que fanáticos de uma religião matem crentes de outra ou atentem contra o bem comum.

A mercantilização da fé popular pode ser tão ou mais escandalosa do que o fanatismo. O serviço religioso é uma utilidade pública, pois todo ser humano tem necessidade de uma resposta religiosa para suas perguntas últimas – a própria negação da existência de Deus não deixa de ser uma resposta à questão religiosa (não é à toa que tantos ateus lembram fanáticos religiosos em seu ateísmo). Mas, por exemplo, se torna difícil defender isenções de taxas a igrejas, quando se constata que alguns líderes religiosos têm vida de nababo sustentada por dízimos e contribuições do povo pobre.

A racionalidade que ilumina o diálogo

Os princípios que a doutrina social da Igreja sugere para a organização da vida social não são confessionais. Nascem da reflexão racional, iluminada pela fé, que os cristãos vêm fazendo, ao longo de sua história, a partir da observação da natureza humana e dos acontecimentos. Sendo assim, sempre poderemos (e deveremos) explicar esses princípios e suas consequências mostrando como podem tornar as pessoas mais felizes e construir o bem comum (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 72-84).

A convicção racional nunca é apenas lógica. Temos a tentação de querer obrigar o outro a aceitar nossos argumentos intelectuais, como se isso esgotasse a verdade. Mas a convicção racional depende não só de argumentos teóricos, mas também da demonstração prática de sua veracidade nos acontecimentos e de uma abertura afetiva (que poucas vezes reconhecemos, mas, provavelmente, é o fator mais forte a determinar nossas convicções). Um diálogo eficaz, que deixe os interlocutores mais próximos da verdade, depende não só de argumentos, mas também das experiências concretas que são mostradas e da amizade sincera que se estabelece entre ambos, que os leva a confiar e querer o bem um do outro.

A aversão a qualquer norma

A dominação das consciências na sociedade moderna se baseia numa dicotomia entre o privado (onde tudo que não prejudique o outro deve ser permitido) e o público (cada vez mais vigiado e controlado tanto por recursos tecnológicos e leis quanto por comportamentos coletivos, como o cancelamento social). Trata-se de uma dicotomia ilusória, pois o público e o privado se entrelaçam o tempo todo, de tal modo que a dominação é cada vez mais ampla e mais interiorizada no coração das pessoas.

Nesse contexto ideológico, a autonomia da instintividade (que um cristão não deveria confundir com liberdade) se torna um valor absoluto. Qualquer elemento externo que busque disciplinar a instintividade ou apenas alertar sobre seus perigos aparece como imposição despótica. Na prática, a dominação não deixa de existir, apenas se camufla em autonomia ilusória. Mas as religiões são exatamente o oposto dessa lógica. Elas nos exortam a sermos bons, alerta para os perigos do erro, indica condutas virtuosas. Com sua sabedoria e suas normas explícitas, as religiões são a negação da liberalidade inconsequente e da dominação subliminar sobre as quais se assenta o poder na sociedade contemporânea. Essa é a verdadeira causa das cruzadas laicistas em nosso meio.

Essa mentalidade, contudo, se afirma a partir de uma falha do mundo religioso tradicional. A palavra autoridade designa originalmente alguém que não apenas ordena, mas também faz crescer e se desenvolver (como o autor de uma obra). A ideia de uma autoridade religiosa, paterna ou materna evoca essa missão dos bons líderes e dos pais de nos ajudarem a sermos melhores e mais felizes. Mas muitas vezes a autoridade e suas normas se apresentam apenas como imposições que não ajudam o crescimento pessoal.

Quem experimentou a autoridade só como imposição não pode entender o papel das religiões numa sociedade plural, pois lhe falta essa vivência de uma autoridade que nos ama de fato e nos ajuda a crescer. Se queremos combater o laicismo, temos que ser essa boa autoridade para os jovens e para com todos que se aproximam de nós.

Mostrar o valor da sabedoria religiosa

Numa democracia plural, a validade de uma proposição não depende de quem é o seu formulador, mas do quanto pode contribuir para a justiça e o bem comum. Não importa se veio de um grupo majoritário ou de uma minoria, de um líder religioso ou de um militante laicista, da esquerda ou da direita. Frequentemente se alega que as proposições vêm “da ciência”. Ledo engano, a ciência não propõe nada, apenas descreve as causas e consequências do que acontece – são as lideranças sociais (que, em alguns casos, mas não em todos, também são cientistas) que interpretam as conclusões científicas e propõem ações.

Se a sabedoria religiosa, seja qual for o credo, orienta ações que tornam a sociedade mais justa, deve ser aplicada nas políticas públicas e normas sociais. Não podemos nos dobrar ao argumento laicista que considera uma proposta inadequada só porque seus proponentes são pessoas religiosas. Porém, temos que ter sempre claro que nossas razões devem ser apresentadas com categorias e argumentos que possam ser compreendidos e compartilhados por quem não tem fé. Conciliar essas duas exigências (direito de expor nossas ideias e necessidade de formulá-las de modo compreensível ao outro) é a missão que nos cabe, não só para combater o cancelamento cultural do qual os cristãos são vítimas, mas principalmente porque o mandamento do amor nos leva a lutar pelo bem comum.

Francisco Borba Ribeiro Neto
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Autor BorbaPublicado em 4 de julho de 2022Categorias Democracia, SecularismoTags cultura, Diálogo, Educação, família, Ideologia, Verdade1 comentário em A responsabilidade de nós, que temos fé, para com a laicidade

A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

Os chamados “princípios irrenunciáveis” (cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, 2002) se propõem a ser norteadores das escolhas políticas dos cristãos. Contudo, sua aplicação de forma tendenciosa ou parcial frequentemente leva-nos a assumir posições partidarizadas que dividem a comunidade católica e escandalizam os cristãos, tanto de um lado quanto de outro do espectro ideológico. A justa aplicação desses princípios implica em que sejam vistos em sua integralidade, sem abdicar de qualquer um deles em favor de outro ou imaginar que possam ser relativizados para que nossos candidatos e partidos cheguem ao poder.

No confronto eleitoral deste ano, dois princípios irrenunciáveis aparecem como bandeiras de candidatos diferentes: a defesa da vida, pensada em termos principalmente de condenação ao aborto e à eutanásia, e a economia a serviço da pessoa. Na doutrina social católica, contudo, esses princípios não aparecem desvinculados. Fatalmente nos afastamos dos ensinamentos cristãos se imaginamos que podemos escolher um em detrimento do outro.

Seguindo os passos de São João Paulo II…

O Papa Wojtyla é amplamente reconhecido como ferrenho defensor da vida e contrário ao comunismo, cujos malefícios testemunhou pessoalmente. Sendo assim, seu ensinamento sobre as questões socioeconômicas não pode ser acusado de ideologicamente comprometido com as esquerdas ou coisa parecida. Trata-se de uma referência segura para os católicos que se alinham às doutrinas econômicas liberais pró-mercado.

Pois bem, seguindo a doutrina social da Igreja e o ensinamento de seus antecessores, São João Paulo II reconhecia a propriedade privada e o lucro como direitos humanos, mas subordinados à dignidade da pessoa e ao bem comum (cf. Laborem exercens, LE 14, Centesimus annus, CA 35, Compêndio da doutrina social da Igreja, CDSI 181-184, 340-341). Nessa perspectiva, considerava a opção preferencial pelos pobres como “primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor” (Sollicitudo rei socialis, SRS 42). Na própria Evangelium vitae, documento maior da defesa da vida, São João Paulo II reúne a defesa da vida e a opção preferencial pelos pobres (cf. EV 32), mostrando que uma não pode ser separada da outra.

… E do Papa Francisco

Baseados no compromisso socioambiental sempre presente nas mensagens sociais do Papa Francisco, alguns tentaram relativizar a defesa da vida em seu magistério, reduzindo-a ao aspecto ecológico. De fato, a dimensão ambiental não pode ser esquecida quando falamos de defesa da vida, na perspectiva do Papa Bergoglio. Contudo, nas próprias palavras de Francisco: “a defesa da vida não se cumpre de uma só forma ou com um único gesto, mas realiza-se numa multiplicidade de ações, atenções e iniciativas; nem diz respeito apenas a algumas pessoas ou a certos âmbitos profissionais, mas concerne cada cidadão e a complexa rede das relações sociais […] a defesa da vida tem o seu fulcro no acolhimento de quem foi gerado e ainda está albergado no ventre materno, envolto no seio da mãe como num abraço amoroso que os une”. Essa passagem evidencia tanto sua firme condenação ao aborto como apresenta a defesa da vida como uma preocupação que concerne a todos nós, em todas as dimensões de nossa vida.

No aniversário de 25 anos da promulgação da Evangelium vitae, por São João Paulo II, o Papa Francisco expôs claramente tanto a importância desse compromisso com a vida quanto sua vinculação com outras mazelas sociais: “Cada ser humano é chamado por Deus a gozar da plenitude da vida; e, tendo sido confiado à solicitude materna da Igreja, qualquer ameaça à dignidade humana e à vida não pode deixar de se repercutir no seu coração, nas suas ‘entranhas’ maternas. Para a Igreja a defesa da vida não é uma ideologia, mas uma realidade, uma realidade humana que envolve todos os cristãos, precisamente porque são cristãos, porque são humanos. Infelizmente, os atentados contra a dignidade e a vida das pessoas persistem até nesta nossa época, que é o tempo dos direitos humanos universais; aliás, estamos diante de novas ameaças e escravidões, e as legislações nem sempre tutelam a vida humana mais frágil e vulnerável”.

A difícil tarefa do discernimento pessoal

Aplicar esses princípios, de forma integrada, na escolha de nosso candidato a um cargo majoritário, quando sabemos que nenhum deles se ajusta de forma inequívoca a todos os princípios, é uma tarefa realmente difícil. Não basta compreendermos os princípios, existem aspectos morais, mecanismos econômicos e relações políticas que devem ser consideradas.

No plano moral, existe sempre o risco de que as declarações dos candidatos sejam falsidades demagógicas. O fato de alguém se declarar a favor da vida ou lutando pelos pobres não quer dizer que ele realmente atue dessa forma. Podemos concordar ou não com a ideia que nossos irmãos têm da moralidade desse ou daquele candidato, podemos tentar dissuadi-lo de sua opinião sobre determinada pessoa, mas temos que reconhecer que se trata de uma avaliação subjetiva, que independe dos princípios de fundo envolvidos.

O mesmo raciocínio vale para as análises econômicas e políticas. Uns poderão julgar que a privatização de empresas públicas ajudará a melhorar as finanças do Estado e a eliminar a pobreza, outro pensará exatamente o contrário. Não se trata de uma questão de fé e a comunidade católica deve olhar para esses debates com liberdade. O importante é que cada um, independentemente da análise econômica e política que faça, se comprometa com o bem das pessoas e a defesa da vida.

Por difícil que possa parecer, uma visão integrada do direito à vida e da organização da vida econômica é fundamental para uma justa compreensão da mensagem cristã na vida política, que supere partidarismos e distorções ideológicas. É um caminho que todos podemos trilhar, se nos abrirmos ao diálogo, à correção fraterna e ao amor à verdade.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Autor BorbaPublicado em 16 de maio de 2022Categorias Defesa da vida, Opção pelos pobresTags Aborto, Diálogo, Economia, Ideologia, Papa Francisco, pobreza, São João Paulo IIDeixe um comentário em A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

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Mesas redondas apresentando as duas grandes encíclicas do Papa Francisco
  • O aborto, os ianomâmis e a defesa da vida sem partidarismos7 de fevereiro de 2023
  • Para 2023, nossa esperança está no poder ou no amor?7 de fevereiro de 2023
  • Fé, Cultura e o espírito do Natal21 de dezembro de 2022
  • Caderno Fé e Cultura: de São Francisco a Chesterton14 de dezembro de 2022
  • O pecado da estupidez, uma lição de G.K. Chesterton14 de dezembro de 2022
  • O senso religioso, abertura à realidade total23 de novembro de 2022
  • Nossa grande atividade política é sermos geradores de esperança17 de novembro de 2022
  • Jornal O São Paulo. Caderno Fé e Cidadania8 de novembro de 2022
  • A “beleza desarmada” no pós-eleição8 de novembro de 2022
  • Caderno Fé e Cultura Especial Finados1 de novembro de 2022
  • E, depois das eleições, a vida continua…27 de outubro de 2022
  • O maior valor cristão25 de outubro de 2022
  • A sã laicidade e a defesa dos valores cristãos18 de outubro de 2022
  • Caderno Fé e Cultura: quando ciência e Cristianismo se encontram12 de outubro de 2022
  • O mapa do Brasil dividido12 de outubro de 2022
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