À luz da doutrina social da Igreja, o difícil equilíbrio entre equidade e justiça

Alguns princípios que orientam a doutrina social da Igreja são pouco conhecidos mesmos entre os cristãos mais praticantes. Entre eles, o de equidade, frequentemente confundido com igualdade – apesar de ser diferente. A bem conhecida igualdade diz que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. A equidade alerta para a necessidade de que os mais vulneráveis ou com mais dificuldades recebam o necessário para poder compartilhar uma qualidade de vida similar, ao menos, à dos demais.

Existe uma analogia clássica para ilustrar a questão da igualdade e da equidade em termos cristãos. Numa família, os pais gostam de todos os filhos. Contudo, se algum deles tem uma fragilidade ou atravessa um período difícil, eles se dedicam mais a este filho – e esperam que os irmãos também façam o mesmo. Deus também espera que cada um de nós se dedique mais aos nossos irmãos mais vulneráveis – e, portanto, que as normas e políticas sociais também ajudem mais a estes em dificuldade.

A doutrina social da Igreja não traz um capítulo específico sobre esse tema, mas em seus documentos o conceito de equidade aparece frequentemente junto ao de justiça. O Compêndio de Doutrina Social da Igreja, por exemplo, insere os direitos relativos à propriedade num contexto que garanta o “uso inspirado em critérios de justiça, de equidade e de respeito dos direitos do homem” (DCSI 283). lembra também que migrantes e refugiados devem ser tratados “segundo critérios de equidade e de equilíbrio” (CDSI 298). Considera que “o bem-estar econômico de um País não se mede exclusivamente pela quantidade de bens produzidos, mas também levando em conta o modo como são produzidos e o grau de equidade na distribuição das rendas” (CDSI 303) e os bens da terra “devem ser divididos com equidade, segundo a justiça e a caridade” (CDSI 481). Bento XVI, dirigindo-se aos católicos do continente, adverte que “a economia liberal de alguns países latino-americanos deve ter presente a equidade, pois continuam a aumentar os setores sociais que se veem provados cada vez mais por uma pobreza enorme ou mesmo despojados dos seus próprios bens naturais”.

O grande perigo das ações afirmativas que seguem o princípio da equidade é sacrificarem indevidamente aqueles que, também estando numa situação de fragilidade, não são contemplados por elas. Por outro lado, muitas vezes as queixas contra essas políticas públicas vêm de grupos que não querem renunciar a prerrogativas adquiridas ao longo do tempo e invocam critérios de justiça e igualdade para legitimar seus privilégios. Distinguir entre as duas situações exige empatia para com aqueles que sofrem, despojamento dos próprios privilégios e uma boa percepção do alcance e das implicações das medidas propostas. Duas situações, que vieram à tona nas últimas semanas, ilustram a complexidade dessas questões.

A questão das cotas raciais nas universidades públicas

Uma pesquisa do Datafolha estimou que cerca de 50% da população brasileira é a favor de cotas raciais nas universidades, enquanto 34% é contrária. Para os que são favoráveis, essa política significa uma tentativa de reparação a duas grandes injustiças históricas que foram a escravidão negra e o genocídio e expulsão dos povos indígenas de suas terras. Para os contrários, cotas são injustas por violarem o mérito dos que obtiveram melhores notas no vestibular e privilegiarem alguns grupos sociais em detrimento de outros.

Nas universidades que adotaram mecanismos de cotas raciais, foi constatado que os cotistas, mesmo tendo entrado com notas menores no vestibular, terminam a universidade com médias comparáveis aos demais. Esses estudantes percebem que receberam uma oportunidade e se esforçam para corresponder a ela. Nesse sentido, a equidade não levou a uma injustiça, mas tornou a sociedade mais justa, permitindo que jovens de valor – antes prejudicados por uma situação social que não haviam criado – mostrassem seu valor.

Contudo, estudantes brancos pobres encontrarão de fato mais dificuldade para entrar na universidade por causa das cotas raciais. Significativamente, a aprovação às cotas é maior entre as pessoas escolarizadas e com maior renda. Entre os pais com filhos em escolas particulares, o apoio foi de 60%. Muitos pensam que esses grupos seriam aqueles teoricamente preteridos por essa ação afirmativa. Mas isso não é exatamente certo. Os mais ricos e escolarizados são também aqueles que menos dependem da universidade pública, pois têm condições de pagar uma universidade particular de elite, e contam com outros recursos, como heranças, redes de amizade e formação complementar, que lhes garante o futuro. São os jovens pobres que mais precisam da universidade pública e, entre eles, a política de cotas pode significar uma perda de oportunidade por uma questão étnica e não de mérito.

Nesse caso, a solução é criar políticas afirmativas mais adequadas, por exemplo, adotando critérios socioeconômicos além dos raciais. Uma solução adequada implica em buscar mais equidade, não menos.

O rol taxativo

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou, em junho de 2022, que o rol de procedimentos e eventos a serem cobertos pelos planos de saúde, estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é taxativo e não exemplificativo. Isso significa que os planos de saúde só precisam cobrir doenças e tratamentos já previstos nessa lista. Doenças pouco comuns ou novos tratamentos, por mais que afetem a saúde das pessoas atendidas pelos planos, não serão cobertos.

Uma razão para a defesa do caráter taxativo desse rol é que o custo dos planos seria muito mais elevado se tivessem que custear tratamentos dispendiosos, de doenças raras, pouco conhecidas e imprevistas. O aumento de custos faria com que muitos tivessem que optar por planos mais simples ou mesmo que desistir de seu plano de saúde, recorrendo apenas ao sistema público de saúde. Contudo, o rol taxativo deixa pessoas já mais fragilizadas sem os tratamentos necessários. Um dos casos mais divulgados nesse momento é o dos autistas, cujos tratamentos considerados mais adequados na atualidade não estão incluídos no rol taxativo.

O princípio da equidade nos indica que os mais frágeis, com doenças raras, devem ter o direito garantido aos tratamentos que necessitam, mesmo que esses onerem mais ao conjunto da sociedade. Nosso problema, nesse caso, é a insuficiência do sistema público de saúde, que não consegue oferecer para todos um atendimento de qualidade nessas situações. Se o Estado pudesse garantir esse atendimento com qualidade para todos, não haveria necessidade de onerar os planos de saúde. Além disso, sempre teremos o debate sobre qual seria a margem de lucro aceitável para esses planos…

Assim como no exemplo das cotas raciais, também aqui a justiça não passa por uma redução da equidade, mas de uma ampliação da qualidade e da universalidade dos serviços prestados à população, para que ninguém seja excluído do bem comum.

Francisco Borba Ribeiro Neto

Publicado originalmente em Aleteia

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Os desafios para construir uma família

Não é preciso recorrer a dados estatísticos, análises econômicas ou reflexões sociológicas para perceber que formar uma família é cada vez mais difícil no Brasil. Todos os brasileiros que já têm família, ou que estão tentando constituir uma, experimentam as dificuldades na própria pele. No contexto eclesial, é muito comum se ouvir falar de ideologias contrárias à família. Elas de fato existem e estão disseminadas em nossa sociedade, mas frequentemente os maiores perigos não estão tão evidentes, pois de certa forma já nos acostumamos a eles.

As ameaças no campo socioeconômico

Atualmente, a crise econômica, as dificuldades do mercado de trabalho, os custos crescentes com educação dos filhos e saúde são os maiores desafios para aqueles que estão formando ou desejam começar a formar uma família. Uma parcela muito pequena de brasileiros jovens pode se gabar de uma situação socioeconômica consolidada, sem apertos financeiros, com segurança para o futuro. Os jovens não têm dinheiro para se casar, os pais fazem árduos esforços para garantir o sustento, a educação e a segurança dos filhos e depois não conseguem estar tão perto deles quanto gostariam e deveriam.

Não estamos falando aqui de luxos ou gastos supérfluos. O valor mínimo de uma remuneração justa é aquele que permite que os adultos possam dar a seus filhos uma educação e uma qualidade de vida equivalente àquela que tiveram. É natural que todo adulto queira dar a seus filhos um pouco mais do que recebeu ou pelo menos as mesmas oportunidades que teve na vida. Hoje em dia, frequentemente, mesmo que os pais tenham ganhos satisfatórios, o tempo de deslocamento, o trabalho fora do expediente convencional, a pressão por resultados e a insegurança quanto ao futuro causam um desgaste psicológico e um consumo de energia que dificultam sua presença junto aos filhos.

Com raras exceções, as escolas públicas não se apresentam como opções desejáveis para as famílias. Fora das políticas de quotas, as taxas de ingresso de alunos de escolas públicas em boas universidades são muito baixas. Assim, o custo da escola se tornou um fator limitante para o número de filhos e um fator de desgaste crescente para os pais. O sistema público de saúde também não transmite confiança e os planos de saúde são caríssimos – onerando ainda mais as famílias, particularmente no caso de seus idosos, que utilizam mais esses serviços.

O desafio ideológico

Além disso, as ideologias dominantes em nossa sociedade não facilitam uma justa compreensão do que deve ser uma família. Fala-se muito na ideologia de gênero, mas muitas outras concepções ideológicas, ainda mais entranhadas em nosso subconsciente, ameaçam a família. O individualismo e a idolatria à autonomia pessoal, o materialismo e a busca do êxito profissional a qualquer custo, a cultura do descarte refletida nas relações interpessoais são, provavelmente, as maiores ameaças culturais à formação da família em nossa sociedade.

As famílias se desenvolvem como espaço de educação ao dom de si e à gratuidade. São tão mais felizes quanto mais seus membros estão atentos às necessidades e desejos uns dos outros e se esforçam pelo bem dos demais. Aprendemos a amar e compreendemos o valor do outro olhando, em primeiro lugar, aos esforços e sacrifícios que nossos pais fazem por nós. Por mais que os noivos se queiram bem, é na doação continua, no perdão mútuo, nas alegrias e dores compartilhadas que aprendem – ao longo de uma vida – a grandeza e a felicidade do amor. Mas o individualismo e o desejo de autonomia fazem com que cada membro da família pense nos outros como funcionais a si, em vez de se pensar como responsável pelo bem dos outros.

Sendo feita por seres humanos falíveis, toda família é cheia de erros e acertos. Quando cada um está atento e se sente, ao menos em parte, responsável pela felicidade dos demais, os erros tendem a ser perdoados e os acertos, a alegrar e encher de gratidão. Quando cada um está centrado em si mesmo, cobrando a própria felicidade dos demais, os erros se tornam insuportáveis, os acertos nada mais que obrigações e a vida familiar se torna infernal.

Ainda que os desafios socioeconômicos sejam objetivos, o materialismo hedonista que domina em nossos dias multiplica nossas necessidades, nos tornando insaciáveis. O sucesso profissional, a ostentação material, os lazeres caros parecem ser quase uma obrigação. O espaço familiar e as relações interpessoais recheadas de gratuidade são os primeiros sacrifícios imolados nos altares dessa idolatria ao êxito mundano. O pior é que não nos damos conta quando somos doutrinados nessa nova religião. Absorvemos essa mentalidade ao vermos propagandas onde personagens elegantes, em ambientes sofisticados, parecem se realizar consumindo produtos caros. A multiplicamos ao distribuir selfies e fotos onde nós mesmos nos apresentamos como vivenciando essas situações, mesmo que isso seja apenas o “flash” de um instante. Ensinamos nossos filhos a seguirem essa idolatria quando lhes dizemos que devem estudar e se esforçar para “se darem bem na vida” – uma admoestação justa, mas que é ressignificada nesse contexto cultural em que vivemos.

Um trabalho político e comunitário

Os obstáculos socioeconômicos à formação das famílias podem ser superados, em parte, com o esforço individual e algumas condições favoráveis. As soluções exclusivamente particulares, contudo, não constroem o bem comum e tendem a gerar outros problemas – como os pais que ganham bem, mas não têm tempo para acompanhar o crescimento dos filhos. Nesse campo, a dedicação pessoal deve ser amparada e recompensada por políticas públicas adequadas. Não se trata do assistencialismo do Estado, como muitas pensam, pois até o chamado Estado mínimo neoliberal depende de decisões e compromissos políticos assumidos por toda a sociedade.

Remunerações justas, horários de trabalho adequados, transportes eficientes, escolas públicas de qualidade, bons serviços de saúde são todos fatores que podem melhorar a qualidade de vida das famílias e ajudá-las. Já existem empresas que procuram se apresentar como “amigas das famílias”, para desse modo conseguir funcionários mais motivados e preparados. Tais empresas precisam, contudo, de políticas trabalhistas que apoiem seu compromisso com a família, ou correm o risco de perderem competitividade em comparação a outras. É todo um conjunto de fatores que depende, de uma forma ou de outra, de decisões políticas adequadas. Family talks, por exemplo, é uma organização voltada à proteção da família, através da atuação junto ao governo e à opinião pública. Em seu site podem ser vistos vários exemplos de ações, tanto no campo governamental quanto no empresarial, para apoiar as famílias.

Já no campo ideológico, leis e regulamentações estatais, mesmo que necessárias em muitos casos, são pouco efetivas. Mentalidades são formadas por convencimento, não por coação. Nesse campo, a ação dos influenciadores e das mídias sociais é particularmente poderoso. Mas é aqui, também, que o trabalho de nossas comunidades se faz mais efetivo e necessário. O testemunho dos mais sábios, a solidariedade nas dificuldades, os ambientes sadios para a convivência dos jovens são os grandes instrumentos que a comunidade cristã tem para enfrentar as ideologias contrárias à família.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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