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O mundo na visão da doutrina social da Igreja

O mundo na visão da doutrina social da Igreja

Compreendendo a realidade numa perspectiva integral, a partir do pensamento social cristão

Tag: Papa Francisco

A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

Os chamados “princípios irrenunciáveis” (cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, 2002) se propõem a ser norteadores das escolhas políticas dos cristãos. Contudo, sua aplicação de forma tendenciosa ou parcial frequentemente leva-nos a assumir posições partidarizadas que dividem a comunidade católica e escandalizam os cristãos, tanto de um lado quanto de outro do espectro ideológico. A justa aplicação desses princípios implica em que sejam vistos em sua integralidade, sem abdicar de qualquer um deles em favor de outro ou imaginar que possam ser relativizados para que nossos candidatos e partidos cheguem ao poder.

No confronto eleitoral deste ano, dois princípios irrenunciáveis aparecem como bandeiras de candidatos diferentes: a defesa da vida, pensada em termos principalmente de condenação ao aborto e à eutanásia, e a economia a serviço da pessoa. Na doutrina social católica, contudo, esses princípios não aparecem desvinculados. Fatalmente nos afastamos dos ensinamentos cristãos se imaginamos que podemos escolher um em detrimento do outro.

Seguindo os passos de São João Paulo II…

O Papa Wojtyla é amplamente reconhecido como ferrenho defensor da vida e contrário ao comunismo, cujos malefícios testemunhou pessoalmente. Sendo assim, seu ensinamento sobre as questões socioeconômicas não pode ser acusado de ideologicamente comprometido com as esquerdas ou coisa parecida. Trata-se de uma referência segura para os católicos que se alinham às doutrinas econômicas liberais pró-mercado.

Pois bem, seguindo a doutrina social da Igreja e o ensinamento de seus antecessores, São João Paulo II reconhecia a propriedade privada e o lucro como direitos humanos, mas subordinados à dignidade da pessoa e ao bem comum (cf. Laborem exercens, LE 14, Centesimus annus, CA 35, Compêndio da doutrina social da Igreja, CDSI 181-184, 340-341). Nessa perspectiva, considerava a opção preferencial pelos pobres como “primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor” (Sollicitudo rei socialis, SRS 42). Na própria Evangelium vitae, documento maior da defesa da vida, São João Paulo II reúne a defesa da vida e a opção preferencial pelos pobres (cf. EV 32), mostrando que uma não pode ser separada da outra.

… E do Papa Francisco

Baseados no compromisso socioambiental sempre presente nas mensagens sociais do Papa Francisco, alguns tentaram relativizar a defesa da vida em seu magistério, reduzindo-a ao aspecto ecológico. De fato, a dimensão ambiental não pode ser esquecida quando falamos de defesa da vida, na perspectiva do Papa Bergoglio. Contudo, nas próprias palavras de Francisco: “a defesa da vida não se cumpre de uma só forma ou com um único gesto, mas realiza-se numa multiplicidade de ações, atenções e iniciativas; nem diz respeito apenas a algumas pessoas ou a certos âmbitos profissionais, mas concerne cada cidadão e a complexa rede das relações sociais […] a defesa da vida tem o seu fulcro no acolhimento de quem foi gerado e ainda está albergado no ventre materno, envolto no seio da mãe como num abraço amoroso que os une”. Essa passagem evidencia tanto sua firme condenação ao aborto como apresenta a defesa da vida como uma preocupação que concerne a todos nós, em todas as dimensões de nossa vida.

No aniversário de 25 anos da promulgação da Evangelium vitae, por São João Paulo II, o Papa Francisco expôs claramente tanto a importância desse compromisso com a vida quanto sua vinculação com outras mazelas sociais: “Cada ser humano é chamado por Deus a gozar da plenitude da vida; e, tendo sido confiado à solicitude materna da Igreja, qualquer ameaça à dignidade humana e à vida não pode deixar de se repercutir no seu coração, nas suas ‘entranhas’ maternas. Para a Igreja a defesa da vida não é uma ideologia, mas uma realidade, uma realidade humana que envolve todos os cristãos, precisamente porque são cristãos, porque são humanos. Infelizmente, os atentados contra a dignidade e a vida das pessoas persistem até nesta nossa época, que é o tempo dos direitos humanos universais; aliás, estamos diante de novas ameaças e escravidões, e as legislações nem sempre tutelam a vida humana mais frágil e vulnerável”.

A difícil tarefa do discernimento pessoal

Aplicar esses princípios, de forma integrada, na escolha de nosso candidato a um cargo majoritário, quando sabemos que nenhum deles se ajusta de forma inequívoca a todos os princípios, é uma tarefa realmente difícil. Não basta compreendermos os princípios, existem aspectos morais, mecanismos econômicos e relações políticas que devem ser consideradas.

No plano moral, existe sempre o risco de que as declarações dos candidatos sejam falsidades demagógicas. O fato de alguém se declarar a favor da vida ou lutando pelos pobres não quer dizer que ele realmente atue dessa forma. Podemos concordar ou não com a ideia que nossos irmãos têm da moralidade desse ou daquele candidato, podemos tentar dissuadi-lo de sua opinião sobre determinada pessoa, mas temos que reconhecer que se trata de uma avaliação subjetiva, que independe dos princípios de fundo envolvidos.

O mesmo raciocínio vale para as análises econômicas e políticas. Uns poderão julgar que a privatização de empresas públicas ajudará a melhorar as finanças do Estado e a eliminar a pobreza, outro pensará exatamente o contrário. Não se trata de uma questão de fé e a comunidade católica deve olhar para esses debates com liberdade. O importante é que cada um, independentemente da análise econômica e política que faça, se comprometa com o bem das pessoas e a defesa da vida.

Por difícil que possa parecer, uma visão integrada do direito à vida e da organização da vida econômica é fundamental para uma justa compreensão da mensagem cristã na vida política, que supere partidarismos e distorções ideológicas. É um caminho que todos podemos trilhar, se nos abrirmos ao diálogo, à correção fraterna e ao amor à verdade.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Autor BorbaPublicado em 16 de maio de 2022Categorias Defesa da vida, Opção pelos pobresTags Aborto, Diálogo, Economia, Ideologia, Papa Francisco, pobreza, São João Paulo IIDeixe um comentário em A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa

A Mensagem da CNBB, as disputas ideológicas e as eleições

A Mensagem da CNBB, as disputas ideológicas e as eleições

Em um ano político, todas as forças políticas, que buscam o voto católico, tendem a tentar usar a doutrina social da Igreja e os valores cristãos para conseguir votos. É sempre bom relembrar que a Igreja não indica partidos, cada um de nós é convidado a escolher os candidatos que considera melhores à luz da caridade e da verdade – e nesse sentido são úteis os princípios e ensinamentos presentes nos documentos do Magistério. Assim, as diversas tentativas de conquistar o voto católico, por parte de políticos e partidos, devem ser sempre acolhidas no que têm de verdadeiro e criticadas no que têm de falso.

A 59ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, em 29 de abril, uma nova Mensagem ao povo brasileiro. Imediatamente, o texto foi tomado por uns e outros, favoráveis e contrários, como instrumento para a propaganda ideológica de cada tendência. Os que se sentem mais à vontade com o teor da Mensagem, dizem “vejam como os bispos concordam conosco”. Os que se sentem criticados, dizem “vejam como os bispos estão comprometidos ideologicamente com nossos adversários”.

Bispos, padres e lideranças religiosas têm opções e formas de expressão influenciadas pelos grandes debates socioculturais e econômicos do País. Seus documentos, em sua exposição, refletem essas influências. Contudo, será um erro pessoal grave de cada um de nós, católico, reduzir suas mensagens a essas influências, ao invés de procurar a provocação que o Espírito, por meio dos seres humanos falíveis que constituem a sua Igreja, nos faz. Nessa Mensagem, aqui comentada, podemos encontrar sete elementos – totalmente inspirados e afinados com a doutrina social da Igreja. São temas que aparecem, talvez com formulação um pouco diferente, mas com esse mesmo espírito, em documentos como Solicitudo rei socialis, Centesimus annus e Evangelium vitae, de São João Paulo II, Laudato si’ e Fratelli tutti, do Papa Francisco.

É inegável que os temas que mais preocupam os bispos são as questões sociais, particularmente a situação dos mais pobres e das populações mais sujeitas a injustiças, e a estabilidade política da democracia brasileira – e esse não pode deixar de ser um convite a nossa reflexão e discernimento político diante das eleições. Nessa perspectiva, a Mensagem:

  1. Valoriza a solidariedade e encoraja movimentos e organizações sociais a trabalharam por uma sociedade justa e fraterna.
  2. Enaltece o esforço das famílias, nesse período de pandemia, em particular em prol da educação (ver o Pacto Educativo Global, estimulado pelo Papa Francisco).
  3. Denuncia os graves problemas sociais do Brasil, que aumentaram com a crise sanitária e internacional, as ameaças aos mais vulneráveis e ao meio ambiente.
  4. Condena a violência, as guerras, o armamentismo e a lógica do confronto, na sociedade e na política.
  5. Defende a vida, da concepção até a morte natural.
  6. Se opõe à manipulação religiosa e às fake news.
  7. Condena a corrupção, ao citar a Lei da Ficha Limpa, e conclama ao voto consciente, por uma política melhor.

Dificilmente encontraremos um candidato nas eleições que, na teoria e na prática, ao longo de toda a sua vida pública, tenha agido de forma totalmente condizente com todos esses pontos. Cabe a cada um de nós ter o discernimento para escolhermos aqueles que estão mais próximos da doutrina social da Igreja, procurando nós mesmos nos convertemos sempre mais e exortando-os a serem cada vez mais fieis ao bem comum.

Francisco Borba Ribeiro Neto


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Autor BorbaPublicado em 2 de maio de 2022Categorias Democracia, Diálogo, Eleições, Papa Francisco, São João Paulo II, Sem categoriaTags Aborto, Bolsonaro, CNBB, Corrupção, Defesa da vida, família, Lula, Opção pelos pobres, Papa Francisco, Partidos políticos, PTDeixe um comentário em A Mensagem da CNBB, as disputas ideológicas e as eleições

Perdoa-lhes[nos], pois não sabem[os] o que fazem[os]

Perdoa-lhes[nos], pois não sabem[os] o que fazem[os]

A famosa frase de Jesus, ao ser crucificado (Lc 23, 34), permanece, por toda a história, como uma das lições mais duras do seguimento a Cristo: amar e perdoar o outro no momento em que ele nos inflige a maior dor. Talvez seja ainda mais desafiadora nesse tempo de “batalhas culturais” e “cancelamentos sociais”. Lutamos para que nossa dignidade seja respeitada e para que os valores naturais a todo ser humano (ou que pelo menos assim deveriam ser percebidos) sejam respeitados num mundo que já foi cristão (uma análise objetiva mostrará que em nossa sociedade as marcas do cristianismo ainda persistem, mas ele não é mais hegemônico). É fato que grande parte de nossas dificuldades vêm de um cristianismo mal vivido ao longo da história do Ocidente. As contradições, os pecados e as traições de gerações de cristãos – alguns poderosos, outros não – criaram o terreno fértil onde cresceram as objeções ao cristianismo nos tempos atuais, mas isso não muda nossa indignação e nossa dor.

Quando respondemos ao mal com o mal

Falando sobre a não-violência, Bento XVI explica que “dar a outra face” (cf. Lc 6, 29) não consiste em entregar-se nas mãos daquele que é mal, mas sim em responder ao mal com o bem (cf. Rm 12, 17-21). Mas, uma tentação diabólica de nossos tempos é justamente querermos usar as estratégias do mal para vencer o mal. Se o mundo se tornou ideológico, sejamos nós também ideológicos – o que interessa é que a ideologia seja “a nossa”, supostamente boa e cristã. Se a mentalidade hegemônica está recheada de mentiras, por que não adulterar um pouco a verdade, deixando-a um pouco mais escandalosa para que os outros entendam melhor o quanto estamos certos? Como aqueles que têm uma postura anticristã nos censuram e nos cancelam, melhor responder-lhes com igual virulência e agressividade, afinal, o mundo é dos fortes.

Com essa assimilação de nossa conduta aos comportamentos que nos ferem, acabamos esquecendo que o cristianismo não é uma ideologia ou um programa moral, mas sim o encontro pessoal de cada um de nós com Cristo, como lembram tanto Bento XVI (Deus caritas est, DCE 1) quanto Papa Francisco (cf. sua carta a Eugenio Scalffari). Esquecemos que não existem “meias verdades” e que “meias mentiras” e fake News, mesmo quando bem-intencionadas, só nos levam para um mundo de falsidade cada vez maior. Nos tornamos, nós mesmos, agressivos e violentos, cada vez mais distantes do modo de ser de Cristo, que era “manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).

É verdade que, ao longo da história, muitos se aproveitaram da mensagem de Jesus, exortando os cristãos a uma obediência e a uma humildade ingênuas e submissas. Grande parte da revolta anticristã dos tempos modernos veio de uma compreensível repulsa a esse tipo de situação. Por outro lado, também é verdade que a negação dessa postura tem levado muitos cristãos a uma dura militância que confia mais nas estratégias humanas do que na graça de Deus, esquecendo-se que “não há rei que se salve com a grandeza dum exército, nem o homem valente se livra por sua muita força” (Sl 33, 16).

A dura verdade é que a Igreja se declara assentada sobre o sangue dos mártires e o testemunho dos santos, não sobre a força dos cruzados ou as vitórias dos generais cristãos. Não só isso! De que nos valeria ganhar o mundo inteiro, se perdêssemos a própria alma? (cf. Mt 16, 26). Muitas vezes os cristãos, querendo criar um mundo supostamente melhor com as próprias forças, espalharam dor e sofrimento. Muitos cristãos, confiando no próprio poder, se perderam e se afastaram do caminho de Cristo.

A força do testemunho da bondade

Existe um outro modo de responder ao mal, que é com uma bondade sincera e inteligente, vinda de nossa conversão e adesão a Cristo. Os maus podem não querer reconhecer a força da bondade, mas ela tem um poder avassalador. Nosso grande problema não é sermos muito “bonzinhos”, mas não sermos suficientemente bons, para que nossa bondade permita a nossos irmãos ao menos vislumbrar, por um instante, a verdadeira bondade de Deus…

Ficou famosa a pergunta de Stalin, que foi sem dúvida o mais poderoso ditador do século XX: quantas divisões militares tem o papa? Nenhuma, é verdade. Numa guerra como a atual da Ucrânia, ele não pode enviar exércitos, nem contribuir para com as sanções econômicas que procuram parar a guerra. Pode apenas rezar pela paz e pedir aos poderosos do mundo um pouco de bom senso e caridade. Mas, o grande império soviético, com seus exércitos, suas armas atômicas e seus espiões, não durou um século, enquanto a Igreja Católica subsiste praticamente a vinte séculos.

Com a graça de Deus, a bondade tem um poder real. Quando vemos a forma pela qual o mundo trata o Papa Francisco, percebemos claramente essa força. Concordem ou não com ele, sigam a Igreja Católica ou não, as pessoas não conseguem negar sua bondade e seu exemplo. Infelizmente, o povo cristão nem sempre está à altura do seu líder – e a força de seu testemunho é perdida em meio a nossas contradições e aos posicionamentos ideológicos que nos dividem.

A experiência da misericórdia e do perdão

Aqui voltamos à frase do início desse artigo. De onde vem a força do testemunho de Francisco? O segredo de sua força, que não fica oculto, mas frequentemente não é percebido até por seus seguidores mais deslumbrados, é a experiência da misericórdia. Bergoglio é um homem que se sabe pecador e que se reconhece perdoado. Por isso, olha com ternura a seus irmãos, mais preocupado em comunicar-lhes o perdão de Deus do que em julgá-los por critérios morais (o que não quer dizer que não reconheça esses critérios, apenas entende que eles vêm depois da experiência do amor e do perdão, não antes).

Francisco é o homem que repete o pedido de Cristo, “perdoa-lhes, Pai, eles não sabem o que fazem”. Mas também é aquele que sabe repetir “perdoa-me, Pai, eu não sei o que faço”. Com isso, responde às batalhas culturais e aos cancelamentos sociais de um modo novo e impensável aos olhos do mundo. Que Deus nos ajude a sermos como ele, para o nosso bem, para o bem da Igreja e do mundo.

Francisco Borba Ribeiro Neto

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Autor BorbaPublicado em 17 de abril de 202218 de abril de 2022Categorias Diálogo, Espiritualidade, Misericórdia, Papa Francisco, PáscoaTags bondade, cultura, Diálogo, Misericórdia, Papa Francisco, Páscoa, Perdão1 comentário em Perdoa-lhes[nos], pois não sabem[os] o que fazem[os]

O diálogo necessário e os outros diálogos

O diálogo necessário e os outros diálogos

Francisco Borba Ribeiro Neto

Muitos diálogos estão acontecendo sempre na sociedade. É verdade que, frequentemente, o que denominamos “diálogo” é apenas uma conversa entre pessoas que pensam as mesmas coisas e o DIÁlogo é muito mais um MONÓlogo compartilhado. Mas, nem por isso, deixa de haver muitos diálogos em nosso meio.

Contudo, mesmo esses diálogos ainda são, na maior parte das vezes, realizados entre pessoas que estão, por assim dizer, numa mesma grande frente. Compartilham os posicionamentos mais relevantes com relação à política, à moral, à família e à vida social. Não coincidem em tudo, mas – quando procuram dialogar – desenvolvem temas para os quais existe uma grande concordância.

Esse não é o diálogo que faz a diferença na sociedade, ao qual o Papa Francisco fez questão de convidar os brasileiros ao insistir “diálogo, diálogo, diálogo” (no Encontro com a classe dirigente do Brasil), em 27 de julho de 2013), aquele ao qual os cristãos estão sendo convidados na Campanha da Fraternidade desse ano – não importa aqui seus erros e acertos.

Leia também: Uma Campanha da Fraternidade ao gosto do Papa Francisco

Um diálogo que não nos incomoda, nem nos obriga a mudar, pelo menos um pouco, não é o diálogo com o qual os cristãos são chamados a contribuir para a construção de um mundo melhor. O diálogo que os cristãos deveriam ter entre eles e com todos os demais é aquele que exige a nossa adesão cada vez maior ao amor e à verdade. Nos incomoda, porque nos chama à conversão (nem que seja apenas para nos tornarmos mais pacientes e tolerantes com os que pensam diferente).

Se tornou muito falado, nesses tempos, o “paradoxo da tolerância” de K. Popper: se tolerarmos os intolerantes, eles criarão uma sociedade intolerante – aos seus moldes – e eliminarão a nós, os tolerantes”. Esse raciocínio é justo, ao menos em termos, mas não é válido para o diálogo.

Leia também: Campanha da Fraternidade, diálogo e convicções firmes

A tolerância pertence ao terreno da negociação e do pacto, da convivência pacífica – sem dúvida necessária – entre diferentes. O diálogo pertence ao terreno do encontro e da partilha, de uma convivência onde os diferentes não apenas convivem, mas conseguem construir algo juntos.

Dialogar com os sectários pode parecer igual a tolerar os intolerantes. Mas, não é. Tolerar os intolerantes leva a uma sociedade dominada pela intolerância. Não procurar dialogar com os sectários tornará a nós mesmos mais sectários e construirá uma sociedade mais fechada e que acabará se tornando intolerante e sectária – com sofrimentos para todos, mais cedo ou mais tarde.

Leia também: Diálogo e busca da Verdade em uma sociedade ideologicamente dividida

Por tudo isso, existe um diálogo particularmente significativo ao qual nós cristãos estamos sendo chamados nessa Campanha da Fraternidade Ecumênica: o diálogo entre posições ideológicas opostas. “Dialogar” com pessoas que estão no mesmo lado nosso do espectro ideológico é bom, mas não faz a diferença, essa não é a contribuição específica dos cristãos num momento de crise, confusão e conflitos sociais.

Temos a ilusão de que mudamos o mundo quando nos tornamos, nós e nossos correligionários, mais convictos de nossas posições – mesmo que isso nos torne mais sectários. Mas os cristãos ajudam a mudar o mundo quando, por amor a Cristo e aos irmãos, conseguem entender e acolher um pouco melhor as razões do outro (naquilo que têm de verdadeiro).

Assim como existem os sectários que se recusam a mudar, sempre haverá aqueles que, no diálogo, mudam para melhor – por pouco que seja.

Leia também: O diálogo e o desejo mais profundo do coração

São essas pequenas mudanças, que podem parecer insignificantes para os que estão obcecados pelo poder, que criam a possibilidade de novas sínteses que superam as polêmicas e abrem a possibilidade de verdadeiros soluções para temas controversos.

 

Artigo originalmente publicado no jornal O São Paulo

Imagem: Sérgio Ricciuto Conte, jornal O São Paulo

Autor BorbaPublicado em 10 de março de 2021Categorias DiálogoTags Campanha da Fraternidade, Diálogo, Ideologia, Papa FranciscoDeixe um comentário em O diálogo necessário e os outros diálogos

Uma Campanha da Fraternidade ao gosto do Papa Francisco

Uma Campanha da Fraternidade ao gosto do Papa Francisco

Francisco Borba Ribeiro Neto

Existe, evidentemente, uma sintonia entre os vários temas das Campanhas da Fraternidade, promovidas pela CNBB, e os ensinamentos do Papa Francisco. Esse ano, contudo, essa sintonia é ainda mais evidente. Para começar, trata-se de uma Campanha da Fraternidade Ecumênica, patrocinada pela Igreja Católica em comunhão com várias outras Igrejas cristãs.

O ecumenismo, já há muito, é uma das metas perseguidas pelos vários papas, e Francisco é um dos que lhe têm dado grande apoio. As Campanhas da Fraternidade Ecumênicas acontecem desde 2000 e são sempre uma grande oportunidade para crescermos na comunhão cristã, tão desejada por ele. Mas não é só isso… Com o tema “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor” e o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade” (Ef 2,14), a Campanha toca em dois pontos particularmente importantes na mensagem do Pontífice.

A unidade deve prevalecer sobre o conflito

Não é exagero dizer que, no Brasil, o conflito está mais vivo hoje do que em qualquer outro momento dos últimos 50 anos. Violência e dominação, infelizmente, são uma realidade sempre presente entre nós. Mas, nos tempos atuais, o conflito – isso é, o choque violento entre opiniões e posições – tornou-se a tônica dominante nas relações sociais, até mesmo no âmbito familiar. Cada vez as pessoas têm que banir mais temas em suas conversas para evitar conflitos aparentemente sem solução. Cada vez mais, argumentos violentos – vindos de todas as partes – se sobrepõem ao diálogo.

Na Evangelii Gaudium (EG), o Papa Francisco propõe que a unidade deve prevalecer sobre o conflito (EG 226-230). Não se trata de ignorar ou esconder os conflitos. Eles devem ser reconhecidos e enfrentados. Mas podemos entrar neles procurando aumentá-los, acreditando que só a destruição do outro pode trazer a paz e criar o bem comum, ou podemos entrar neles procurando criar verdadeiros consensos, que não são simples pactos negociados de não agressão, mas a melhor solução visando a construção da paz e do bem comum.

Leia também: Campanha da Fraternidade, diálogo e convicções firmes

Podemos enfrentar o conflito com a violência – e aí nos tornamos instrumentos do mal, mesmo quando queremos construir o bem – ou com o diálogo sincero e aberto à verdade.

Dialogar sempre

Francisco é muito firme em suas convicções. Ninguém pode acusá-lo de tibieza ou conivência. Reafirma sempre que a identidade da Igreja é o anúncio do Evangelho e que devemos estar do lado dos pobres e dos excluídos, “em saída” rumo às periferias da existência. Mas, apesar de toda a sua firmeza, sempre considera que o diálogo é o caminho para a solução dos problemas sociais e religiosos. Testemunho claro de que a violência e o sectarismo não podem ser confundidos com firmeza, de que o diálogo e a abertura ao outro não são sinais de relativismo.

Leia também: O diálogo e o desejo mais profundo do coração

Já em 2013, na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro, durante o Encontro com a classe dirigente do Brasil, Francisco propunha três aspectos para a construção de um futuro melhor para todos os brasileiros: (1) o humanismo integral, respeitoso à nossa cultura original; (2) a responsabilidade solidária, que implica em lutar por justiça social e atenção para com os mais pobres e excluídos; (3) o diálogo construtivo. Insistia nesse último, dizendo: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo […] Quando os líderes dos diferentes setores me pedem um conselho, a minha resposta sempre é a mesma: diálogo, diálogo, diálogo. A única maneira para uma pessoa, uma família, uma sociedade crescer, a única maneira para fazer avançar a vida dos povos é a cultura do encontro; uma cultura segundo a qual todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom. O outro tem sempre algo para nos dar, desde que saibamos nos aproximar dele com uma atitude aberta e disponível, sem preconceitos. Esta atitude aberta, disponível e sem preconceitos, eu a definiria como ‘humildade social’ que é o que favorece o diálogo”.

O Brasil precisa de nosso exemplo nessa Campanha da Fraternidade

Infelizmente, o conflito crescente na sociedade tem nos feito desacreditar do outro. Acreditamos que só aqueles que pensam como nós são bem intencionados, que as ideias diferentes são obrigatoriamente falsas. Com isso, deixamos de procurar o diálogo e acreditar no encontro. Pensamos que diálogo, encontro, unidade entre diferentes são ilusões enganadoras, que não podem acontecer na prática. Não percebemos que o diálogo, o encontro e a unidade deixam de acontecer não por serem impossíveis, mas sim porque nós deixamos de procurá-los. Quem não procura o diálogo, não encontra o diálogo, quem imagina que todos os demais são maus, só encontra pessoas más…

Leia também: O diálogo necessário e os outros diálogos

Que essa Campanha da Fraternidade Ecumênica nos ajude a uma verdadeira conversão, que nos contraponha à violência e a falta de empatia crescentes em nossa sociedade. Que nos tornemos realmente cristãos que seguem cada vez mais a Cristo e não à ideologia hegemônica, mesmo quando ela vem revestida com palavras sedutoras e enganadoras.

 

Artigo originalmente publicado em Aleteia

Imagem: Flickr.com

Autor BorbaPublicado em 10 de março de 202110 de março de 2021Categorias DiálogoTags Diálogo, Ideologia, Papa FranciscoDeixe um comentário em Uma Campanha da Fraternidade ao gosto do Papa Francisco
Mesas redondas apresentando as duas grandes encíclicas do Papa Francisco
  • A defesa da vida integrada a uma economia a serviço da pessoa16 de maio de 2022
  • Princípios irrenunciáveis e política no Brasil9 de maio de 2022
  • A Mensagem da CNBB, as disputas ideológicas e as eleições2 de maio de 2022
  • O medo que nos afasta de Cristo25 de abril de 2022
  • O ressentimento e o revanchismo que nos afastam de Cristo e do bem comum20 de abril de 2022
  • Doutrina social da Igreja e homeschooling18 de abril de 2022
  • Perdoa-lhes[nos], pois não sabem[os] o que fazem[os]17 de abril de 2022
  • A defesa da vida sem partidarismos12 de abril de 2022
  • Catolicismo e educação11 de abril de 2022
  • A família no Oscar 20225 de abril de 2022
  • A beleza, a verdade, a bondade e a doutrina social da Igreja2 de fevereiro de 2022
  • A sabedoria cristã diante das enchentes e dos desastres naturais28 de janeiro de 2022
  • Papa Francisco e a nova evangelização na Amazônia e no mundo5 de dezembro de 2021
  • O que é democracia?12 de setembro de 2021
  • Caminhos para um Brasil melhor5 de setembro de 2021
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