A família diante de nossa fobia às contradições

Poucas coisas nos horrorizam tanto quanto nossas próprias contradições. Sabemos que somos todos pecadores, mas nos parece terrível constatar que não fazemos o bem que queremos, mas sim o mal que não queremos (cf. Ro 7, 19); ou que nosso “eu real” nunca consegue estar à altura do nosso “eu ideal”. Não aceitamos a imperfeição dos demais, que não conseguem (ou pior, nem mesmo desejam) nos amar e respeitar como acreditamos merecer – mas também não aceitamos nossa própria imperfeição, que nos diminui aos nossos próprios olhos e aos olhos dos demais. Às imperfeições dos outros, queremos condenar ou usar como justifica para as nossas próprias. Às nossas imperfeições, queremos negar ou apresentar como responsabilidade de outros.

Diante das frustrações, alguns assumem uma posição autoritária e não querem reconhecer os próprios erros nem se deixarem questionar em seus valores. Outros querem condenar a todos, pois não aceitam que seus problemas são singulares, que nem todos enfrentam as mesmas dificuldades e as mesmas dores. Os autoritários tendem a infernizar a vida daqueles que estão próximos. Os revoltados tendem a desorientar aqueles que os escutam. Necessário salientar que existe uma autoridade que ajuda a crescer e uma revolta que é necessária para mudar o que está errado – mas não estamos nos referindo aqui a essas manifestações quando são benéficas.

No fundo, essas coisas não deveriam nos escandalizar – seja nos outros, seja em nós mesmos. Fazem parte da natureza com a qual Deus nos fez. O escândalo gera raiva e frustração, impede um raciocínio preciso e a tomada de decisões justas. Reconhecer os erros é o primeiro passo para buscar o perdão e caminhar rumo à virtude – mas a dor pela culpa e pelo pecado precisa do unguento da misericórdia, não do aguilhão da raiva (contra si próprio ou contra o outro).

A família é um problema…

Essas reflexões me ocorreram ao ouvir um podcast sobre família que me foi enviado. Nele, uma influencer e um psicólogo discutiam sobre a desnecessidade da família – ou sobre a necessidade de um outro modelo de família, que rompesse totalmente com o atual. Nas falas, iam se amontoando uma série de falhas familiares, algumas bem características de casos específicos, outras mais ou menos gerais (afinal, todas as famílias são formadas por seres humanos falíveis, algumas são muito melhores, outras muito piores, mas nenhuma delas é “perfeita”). A somatória das falhas, deixadas sem solução, apontavam para um inevitável “fracasso” da família tradicional e a necessidade de um modelo alternativo – que não se chegava a esboçar claramente, pois o fato é que todas as “famílias alternativas” que temos por aí são variações do mesmo tema: pai, mãe e filhos.

A questão familiar, em nossa sociedade, contempla duas vertentes: aquela material, que inclui os aspectos econômicos e a organização da vida concreta; e a cultural, que inclui as subjetividades, os valores e a forma de conceber as relações afetivas. As duas são problemáticas e se relacionam. Muitas famílias, por exemplo, sofrem com a desestruturação decorrente da pobreza e da falta de opções para viver com dignidade; outras sofrem por uma concepção individualista ou pelo autoritarismo dos pais; muitas vezes a desorientação afetiva e moral dos filhos decorre da impossibilidade de serem acompanhados pelos pais, forçados pelas condições econômicas a jornadas de trabalho longas e estafantes.

Contudo, quando mídias e redes sociais se põem a questionar a família, o aspecto mais discutido é de natureza afetiva e relacional. O quanto as famílias são responsáveis pelos desajustes que exibimos todos os dias? Os valores transmitidos em seu seio são realmente necessários para nossa realização? Até onde vai o amor verdadeiro e onde começa o autoritarismo sufocante?

… mas ainda é a melhor solução

A família é o primeiro âmbito no qual nos damos conta das relações afetivas que nos cercam e é também o âmbito onde essas relações atingem seu clímax. Nunca antes, em uma sociedade, se teve tanta liberdade para amar quanto temos na nossa. Fazemos questão de dizer que todas as formas de amar são válidas. Mas, diante de toda essa pretensa liberdade, descobrimos estarrecidos que não sabemos amar, que muitas vezes não conseguimos ir além de uma remota intuição do que seja o amor, que muitas vezes nossa única experiência de amor é um buraco aberto em nosso coração – do qual sai um clamor incessante por preenchimento. Nesse contexto, é evidente que a instituição familiar seja dramaticamente questionada o tempo todo.

Com uma ironia “chestertoniana”, poderíamos dizer que não é ela que falhou, foi o mundo que falhou e continua a esperar dela uma solução. Quanto maior a responsabilidade, maiores as consequências de um fracasso. Um bom governo pode fazer maravilhas pelos cidadãos, mas um mau governo gera catástrofes e desgraças. Sendo tão importante, é natural que a família seja culpada de tantas frustrações e desgraças, mas também é aquela para a qual o mundo olha com maior desejo de realização.

O fato é que as pessoas não querem se desfazer das famílias. Ao contrário, todos querem uma família na qual se realizem. Quem ataca a família, no fundo, ataca um modo de ser família, na esperança de encontrar um outro no qual poderá se adequar. Nenhum Estado, nenhum programa político, encontrou uma proposta mais eficiente e integral para responder a todas as necessidades humanas, de proteção, auxílio, afeição e sentido, do que a família.

O desafio – e isso temos que reconhecer – é superar as muitas dificuldades e criar famílias que, mesmo não sendo perfeitas, possam permitir a realização humana de seus membros.

Antes de discutir ideias, testemunhar o amor

Os problemas materiais das famílias podem ser razoavelmente bem solucionados por políticas públicas bem orientadas, com a ação de gestores eficientes e competentes. Mas, quando as questões atingem o núcleo da existência familiar, que são as relações afetivas e todo o complexo de concepções de si mesmo e valores que derivam dessas relações, as soluções passam a exigir a experiência da acolhida e um justo envolvimento afetivo de quem deseja ajudar.

Quem não faz a experiência de perceber-se amado de forma gratuita não consegue entender o que é o amor, nem amar os outros de forma adequada. É verdade que ideologias e interpretações distorcidas podem piorar muito essa percepção do amor – uma vez que ele, sendo humano, é sempre contraditório. Mas a realidade é sempre maior que a ideia. Por isso, a tradição católica insiste tanto no testemunho.

Uma interpretação belicista, que enfatiza as “guerras culturais”, nos induz a imaginar que as ideias podem se sobrepor à realidade. Mas uma interpretação distorcida só pode prosperar porque explora as contradições do ser humano – e porque nós não conseguimos apresentar a gratuidade do amor e sua capacidade de perdão como uma experiência em ato, algo crível.

Se queremos realmente ajudar as pessoas e o mundo a serem felizes, a encontrarem os valores e a riqueza das famílias, temos que estar dispostos a dar o melhor de nós para amar e acolher o outro. É relativamente fácil solidarizar-se com uma criança pobre e desnutrida, mais difícil com um adolescente que se tronou violento por conta do bullying e da falta de perspectivas, muito mais difícil com um jovem autocentrado que parece sempre ter vivido entre mimos e confortos. Mas não importa a quem Deus nos envia. Somos chamados a testemunhar, para cada um, o amor que já recebemos e tentar, no limite de nossas capacidades e das circunstâncias objetivas, ser um sinal do amor que dá sentido à vida.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Atentados, suicídios: os jovens diante da violência do mundo

Mais um atentado em escolas brasileiras, este culminando com o assassinato de uma professora por seu aluno de 13 anos, nos obriga a pergunta: o que está acontecendo? A sociedade brasileira nunca foi tão pacífica quanto gostaríamos de supor. Assassinatos por motivos fúteis, violência doméstica, linchamentos sempre aconteceram entre nós – ainda que nem sempre noticiados. Contudo, no período recente, parece que estamos importando de países como os Estados Unidos esta nova praga dos atentados em escolas e universidades. Foram pelo menos 16 atentados nos últimos 20 anos, sendo ao menos sete no último ano.

Contudo, os atentados respondem apenas por uma parte do drama. Existe uma regra de não noticiar casos de suicídio, porque a sua divulgação tem o efeito de sugerir ideias suicidas entre outras pessoas. Contudo, a taxa de suicídios entre jovens no Brasil teve um aumento de quase 50% de 2016 a 2021. Seja tentando tirar a vida de outrem, seja tentando tirar a própria vida, estamos assistindo a um aumento vertiginoso da violência entre nossos jovens.

Entre os adultos, o escândalo e o medo gerados por essa situação são compreensíveis – mas pouco ajudam na resolução do problema. Raiva e medo são sempre maus conselheiros, as boas soluções nascem da reflexão serena, do olhar atento e da dedicação às pessoas envolvidas. Quando se trata de violência, a raiva e o medo são ainda mais deletérios, pois pessoas raivosas ou temerosas tendem a ser ainda mais agressivas, insuflando o estado de ânimo que deveriam inibir.

O que está acontecendo?

Tendemos sempre a procurar culpados por tudo de mal que acontece. Com isso, enfraquecemos nossa capacidade de análise e a visão objetiva da realidade. Cada qual tende a culpar aqueles com quem não simpatiza ou os adversários políticos, num comportamento ideológico no qual se revela uma parte do problema, mas se deixa de ver outros.

O fato é que vivemos numa sociedade onde as pessoas tendem a sentir-se cada vez mais ressentidas com a sociedade circundante. Lembrando o título de uma obra de Freud, podemos falar de um “mal-estar na civilização”. A ideia é simples e não precisa ser nenhum freudiano para constatar sua veracidade. Para nos adequarmos à vida em sociedade, temos que aceitar fadigas, pressões e desgostos. Trata-se de uma inevitabilidade com a qual convivemos todos os dias de nossa vida, desde a mais tenra idade.

Quanto mais simples, autoritária e estática é a estrutura social, mais esse “mal-estar” é naturalizado, aceito como normal e reconhecido como inevitável. Numa sociedade complexa, plural, liberal e dinâmica, como é a nossa, diminui a adesão às normas sociais, cujo lado autoritário se torna mais evidente. Por que seguir essa ou aquela norma social, se ela não nos faz mais felizes? Por que se esforçar para alcançar certas metas pessoais, se depois constatamos que elas não nos darão a satisfação prometida? Para que ser “bons cidadãos” se todos os dias vemos esses cidadãos frustrados e acabrunhados, esmagados pelo peso dos compromissos e pelo despotismo dos poderosos, insatisfeitos diante dos prazeres que lhes foram mostrados, mas não foram entregues?

Nossa sociedade vende uma realização que depois não consegue entregar. Somos todos como que forçados a nos apresentarmos como felizes e bem-sucedidos (veja-se as imagens que divulgamos de nós mesmos em nossas redes sociais), mas tão poucos alcançam realmente a felicidade e o sucesso! Tudo isso gera um contexto de ressentimento, depressão e raiva. Não é à toa que as pesquisas indicam que a taxa de pessoas diagnosticadas com depressão na sociedade brasileira subiu cerca de 34% entre 2013 e 2019.

É uma armadilha, um labirinto de difícil saída, montado para as novas gerações – que ouvem cada vez mais promessas de realização, mas são pressionadas a alcançarem um sucesso que não lhes parece factível. Nesse contexto, a explosão da violência se torna cada vez mais provável, podendo ser desencadeada por uma infinidade de “detonadores”, muitos dos quais quase imperceptíveis aos olhos dos demais.

Bullying, famílias disfuncionais e redes sociais

Três fatores são normalmente indicados entre esses “detonadores” de comportamentos agressivos, antissociais ou suicidas. Nos ambientes juvenis, se sobressai o bullying. Jovens diferentes, que não se encaixam nos padrões hegemônicos dentro do grupo social, se tornam vítimas das chacotas, do desprezo e do tão temido cancelamento por parte dos demais. Curiosamente, pessoas que poderiam ser colocadas em extremos opostos do espectro ideológico muitas vezes são vítimas do mesmo bullying. Por exemplo, o cristão que deseja viver sua castidade e o homossexual que deseja liberar sua sexualidade poderão ser igualmente cancelados por não se encaixarem num padrão de heterossexualidade permissiva… As armadilhas do poder são mais sutis do que imaginamos!

O segundo fator frequentemente apontado como desencadeador de comportamentos violentos entre jovens advém dos problemas familiares, como violência doméstica e abandono parental. Contudo, também aqui, é perigoso uma generalização esquemática. Não é que por traz de cada suicida e de cada perpetrador de atentados encontraremos uma família disfuncional. Além disso, muitas vezes os próprios pais são vítimas de más condições de trabalho ou de uma situação de pobreza material e humana que não lhes permite dar a atenção e o cuidado aos filhos que desejariam dar.

Por fim, as redes sociais se tornaram o grande vilão de nossos tempos. Elas permitem que ideologias, exemplos e até instruções sejam difundidas com uma facilidade nunca vista em nossa sociedade. Congregam solitários que nunca teriam se encontrado antes. Criam, no mundo virtual, falsas realidades que podem estimular comportamentos antissociais, ódios e agressões. Em sua abrangência e pluralidade, parecerem incontroláveis para famílias e governos.

O que fazer?

Soluções nascidas do desespero e da raiva são pouco eficientes. Aumentar o policiamento ostensivo nas escolas, impor uma disciplina mais rígida colocar detectores de metais são alternativas que podem até ser necessárias em alguns casos – mas não são respostas efetivas para o problema. Quem impedirá o agressor de atacar seus colegas e professores na rua? E os jovens que se suicidam em casa? Eles também são filhos de Deus e vítimas dessa situação generalizada.

O controle das redes sociais é uma necessidade de nossos tempos. A liberdade não é a mesma coisa que o direito de propagar o mal entre os influenciáveis. Contudo, o fato é que há muitas tentativas e poucos resultados realmente eficiente. A complexidade da questão pode ser vista nas discussões sobre a censura do Estado e a responsabilização das chamadas big techs, proprietárias das redes. Acompanhar o que os jovens estão vendo é, sem dúvida, uma das muitas responsabilidades dos pais, mas temos que ser realistas: como pais que trabalham por 8 a 10 horas diárias poderão fazer esse controle? E nem todos, na verdade muito poucos, tem a alternativa de deixar de trabalhar ou ter um emprego de só meio período para poder estar mais perto dos jovens.

Um passo fundamental – e talvez não tão difícil – é garantir assistência psicológica para professores, estudantes e até policiais. O corpo docente deve estar capacitado para perceber quando jovens estão em situações frágeis e/ou perigosas e ter para onde encaminhá-los. A polícia tem que saber o que fazer quando recebe uma denúncia ou constata uma situação violenta numa escola (no caso do assassinato da professora, o menor já havia sido inclusive denunciado para a polícia).

Saber amar

Diante dessa situação, existe uma tarefa que compete a todos nós: aprendermos a amar mais os jovens. Evidentemente isso vale em primeiro lugar para os pais, mas também a professores, sacerdotes, influenciadores e até chefes e empregadores. Os jovens precisam ser amados, mas o amor precisa ser verdadeiro e sábio. Amores possessivos, que sufocam os jovens com expectativas traçadas por outros, ou permissivos, que pecam pela falta de orientação, não ajudam. O exemplo dos adultos é fundamental – mas o primeiro exemplo é o de que somos felizes amando (e, muitas vezes, temos um longo caminho pessoal, pois não somos felizes, nem sabemos amar).

O primeiro passo do amor é a acolhida. Nossos jovens vivem numa sociedade que não sabe acolher, por mais que diga o contrário. Corrigi-los é sempre importante, mas só quem acolhe é reconhecido como tendo o direito de corrigir. A correção sem a acolhida não é aceita e tem o efeito contrário. As ideologias são perigosas, mas denunciá-las sem mostrar o amor só serve para gerar mais raiva e ressentimento.

Saber amar é uma capacidade inerente a todo ser humano, não depende dessa ou daquela confissão religiosa. Porém, Cristo – que se entregou à morte por amor a cada um de nós – é o maior mestre de amor que podemos encontrar. Oremos por nossos jovens, pelos que mais sofrem, pelas vítimas da violência, por nós mesmos, que o manto da misericórdia a tudo cubra, consolando-nos na dor, ensinando-nos a viver.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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10 anos com Francisco

Caderno Fé e Cidadania do jornal O São Paulo

‘Não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida’

Marli Pirozelli N. Silva

A encíclica Fratelli tutti e os refugiados e migrantes

Marco Antonio Marques da Silva

A população em situação de rua e a normalização do absurdo

Fernanda Penteado Balera

Desigualdade social

Fabio Gallo Garcia

A missão da Igreja se restringe às almas?

Júlio César de Paula Ribeiro

O nordestino é, antes de tudo, um forte

Pe. Alfredo José Gonçalves, CS

O gás para os descartados

Wagner Balera

O Papa e a glória de Deus

Francisco Borba Ribeiro Neto

O Papa e a glória de Deus

Há muitos anos, assisti um evento teológico internacional onde os palestrantes eram todos meus amigos. Apenas um deles fez uma exposição que realmente me fascinou. Quando fui dar-lhe os parabéns e comentei minha decepção, ele comentou “eles não têm culpa, apenas ainda não perceberam a glória de Deus”. Não era uma frase presunçosa, ele não queria se considerar superior aos demais. Pelo contrário, queria dizer que não era mais inteligente ou brilhante, apenas tinha a graça de perceber uma beleza que os demais (ainda) não tinham percebido.

O episódio me veio à mente ao ler os vários artigos que foram publicados pelos 10 anos de pontificado do Papa Francisco. A imensa maioria era um balanço das reformas que foram ou não realizadas pelo pontífice e dos desafios que ainda o esperam daqui para frente. Para quem ainda não viu estes artigos, recomendo aquele excelente de Angelo Ricordi, em Aleteia. De certa forma, esse tipo de comportamento é o esperado da imprensa, mas, na maioria dos casos, revela aquela mesma falta de percepção da glória que meu amigo via em nossos colegas. Na vida da Igreja, o mais importante é a glória de Deus – e essa glória não pode ser compreendida em função de mudanças que ocorrem ou deixam de ocorrer.

Compreender um papado, seja ele qual for, implica em perceber as particularidades com as quais a glória de Deus acontece. E “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”, como lembra o Catecismo (CIC 294), citando Santo Irineu de Lion. Não quero aqui negar a importância das reformas iniciadas por Francisco, mas apenas salientar que devem ser vistas como consequências e não como avaliações do que vem acontecendo ou deixou de acontecer.

E não podemos deixar de reconhecer seu papel para todo o mundo de hoje… Francisco se tornou a “pedra de tropeço”, o “sinal de contradição” da sociedade de nosso tempo. Suas muitas fotos abraçando e acolhendo os pobres; as imagens do velho solitário, numa Praça de São Pedro vazia, sob um céu escuro e pesado, rezando a Deus por um mundo tomado pela pandemia (27 de março de 2020) são grandes símbolos das agruras e esperanças de nosso tempo. Para nossa humanidade ferida pelos descaminhos da economia global, pela exclusão, pelo preconceito e pelas consequências da COVID, Francisco vem sendo um grande sinal de esperança.

O que Francisco se propôs a fazer?

“Desejo uma Igreja pobre para os pobres” (Evangelium gaudium, EG 198). Desde suas primeiras declarações, desde a escolha de seu nome como papa, Bergoglio deixou claro que esse era o objetivo de seu pontificado. É fato que a pobreza evangélica é um conceito muito mais complexo que a pobreza econômica. Uma Igreja pobre não é tanto materialmente pobre, é — principalmente – uma Igreja que põe tudo o que tem a serviço dos necessitados, que se despe de seu poder para estar próximo dos mais fracos, que não se deixa levar pela arrogância e proclama a Verdade com absoluta humildade. Os pobres de espírito, que herdarão o Reino dos Céus, são mais que pobres materiais, são todos aqueles humildes que se abandonam à Providência divina, sem se importar com os ganhos materiais, mas procurando sempre o bem dos irmãos.

Por outro lado, aqueles pobres a quem se dirige essa Igreja pobre, desejada por Francisco, são – objetivamente – aqueles que sofrem privações materiais, os que são excluídos e descartados em nossas sociedades, os discriminados e os párias – e, nesse sentido, a Igreja desejada por Francisco faz sim uma opção por alguns grupos sociais. Não se trata, como bem lembram as várias discussões sobre a teologia da libertação realizadas nas últimas décadas, de uma opção excludente. Esses pobres não são os únicos amados e desejados por Deus. Mas quem não optar por eles estará se distanciando do coração de Deus…

Vendo sob essa ótica, não há como negar o sucesso do papado de Francisco. A glória de Deus se manifestou claramente nesses 10 anos por meio de um ancião que mostrou ao mundo o que era a bondade, a atenção pelos últimos, a busca por justiça. Quem tem olhos para ver, que veja; quem tem ouvidos para ouvir, que ouça. Os sinais de Deus são sempre discretos, não se impõem à liberdade humana. Cada um de nós pode ver, em Francisco, aquilo que quiser. Quem quiser reduzi-lo a um líder carismático, mas cooptado pelas ideologias, poderá reduzi-lo nessa perspectiva. Quem já se acha tão bom que não precisa se converter ao seu exemplo, poderá agir assim. Quem quiser achá-lo “um cara legal” e seguir pela vida sem se sentir provocado por seu testemunho, também poderá agir assim.

Um caminho que começa com cada um de nós

Com uma clareza que poderia envergonhar muitos pensadores e influenciadores católicos, Barack Obama declarou que “raro é o líder que nos faz querer ser pessoas melhores. Papa Francisco é um desses líderes”. Não desejo aqui fazer uma nova avaliação do pontificado de Francisco, de seus êxitos e desafios, apenas quero me remeter a essa constatação de Obama: a grande importância de Francisco, para cada um de nós, é sua capacidade de nos aproximar mais de Cristo, de favorecer um encontro (ou um reencontro) que muda nossa vida.

Cada um de nós pode se perguntar o quanto nos aproximamos mais de Deus seguindo o exemplo do Papa Francisco. Ao fazermos isso, poderemos ter surpresas curiosas. Talvez aqueles que mais parecem se identificar com seu pensamento tenham sido os menos impactados: imaginaram que já conheciam sua proposta e não se perguntaram em que podiam mudar. Por outro lado, outros que estavam objetivamente distantes podem ter passado por grandes mudanças, terem percebido com mais clareza o significado do amor de Deus por eles e estarem se aproximando cada vez mais de Cristo. O nosso coração é um mistério insondável até para nós mesmos – mas é o espaço de ação preferencial para a graça.

E as reformas da Igreja? Elas sem dúvida têm acontecido. Talvez não do modo e com a velocidade que cada um de nós ou o próprio pontífice gostaríamos. Mas, aqui vale a citação de Madre Tereza de Calcutá, que ele mesmo fez no início de seu pontificado, falando aos jovens no Rio de Janeiro: “Por onde começar? Por cada um de nós, por eu e você”. Independentemente do sucesso maior ou menor de Francisco, ao propor reformas na Igreja, seu êxito se manifesta em primeiro lugar no coração de cada um de nós, no quanto nos deixamos aproximar de Cristo e de nossos irmãos que mais sofrem nessa “década de Francisco”.

Francisco Borba Ribeiro Neto
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Para 2023, nossa esperança está no poder ou no amor?

Aos poucos, à medida que o carnaval se aproxima e as aulas retornam nas escolas, o ano começa a ganhar seus contornos cotidianos “normais” – ainda que muita coisa já tenha acontecido nesse janeiro conturbado… E as sequelas do ano que passou permanecem bem evidentes em muitos de nós. Com relação à política, três tentações podem comprometer nosso estado de espírito.

Quem viu seu candidato vencer, está tentado a uma euforia desproporcional, como se os governos pudessem resolver os problemas do mundo e como se tudo fosse andar bem só porque nosso candidato ganhou. No extremo oposto, quem viu o político em quem depositava esperança perder, tende a uma depressão e uma raiva desproporcionais, como se o mundo fosse acabar porque o opositor venceu. Também temos uma tendência intermediária, uma certa “sabedoria” cética (que de sábia pouco tem) que considera que todos são iguais, como se o resultado da eleição não fosse influenciar a história.

Ora, o fato da eleição ter sido vencida por um ou outro candidato fará muita diferença em nosso futuro. Contudo, é verdade que nenhum eleito garantirá por si só o bem comum ou nos levará a uma catástrofe irremediável. Cada governante tem méritos e defeitos, em qualquer caso devemos estar atentos para apoiar os acertos e combater os erros. Valendo-nos do sábio conselho de Santo Inácio de Loyola, temos que agir como se tudo dependesse de nós, mas sabendo que tudo depende de Deus. Essa postura nos traz o justo equilíbrio para não desanimarmos nem nos descomprometermos, ao mesmo tempo que vivemos confiantes na ação de Deus.

 

A ilusão do poder

Estas situações acontecem principalmente pela tentação de depositar nossa esperança no poder. Citando as reflexões de Romano Guardini, na Laudato si’, o Papa Francisco observa: “Tende-se a crer que ‘toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores’ (GUARDINI, R. O fim dos tempos modernos. Brasília: Ed. Monergismo, 2021)” (LS 105).

A palavra poder tem duas acepções básicas: capacidade (o poder de fazer as coisas) e dominação (o poder sobre os demais). Tendemos a crer que as coisas vão mal simplesmente porque nossos adversários têm poder/dominação e que elas irão bem quando nossos correligionários passarem a ter esse poder. Mas, na verdade, as coisas são muito mais complicadas.

Para começar o poder/dominação não garante o poder/capacidade. Por exemplo, nenhum governante, por mais poderoso que fosse, teve capacidade de evitar que seu país sofresse as consequências da pandemia de Covid ou não fosse afetado pela crise financeira internacional de 2008. Os fenômenos naturais, a vida econômica, as relações internacionais e o próprio coração do ser humano não obedecem docilmente à dominação. Quanto mais tentamos forçá-los, ao invés de nos valermos da capacidade que vem do conhecimento e da sabedoria, mais erros cometemos.

Além disso, o poder/dominação corrompe. Todos os governantes que se perpetuaram no tempo e que adquiriram grande poder enfrentaram cada vez mais problemas de corrupção e mau uso de sua autoridade – por parte deles mesmos e/ou de seus correligionários. Entre as lições mais importantes das ciências políticas modernas estão a necessidade de um equilíbrio de forças no Estado (os chamados três poderes) e a positividade da alternância de governo entre grupos diferentes.

 

A confiança no amor

Para os cristãos, o problema mais profundo dessa crença no poder é a perda da capacidade de amar. Em um trecho famoso, C.G. Jung considera que “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina há falta de amor”. A frase está no contexto da teoria psicanalítica, mas se tornou muito conhecida porque reflete uma grande verdade sobre o ser humano. Quem se sente oprimido, não se sente amado. Quem insiste em dominar, perde a capacidade de amar.

Podemos observar como a confiança e a luta pelo poder nos últimos anos tornou nossa sociedade mais ressentida e raivosa, como nosso coração se endureceu muitas vezes, como muitas amizades ficaram mais difíceis. Muitas vezes, em nome da defesa de valores cristãos, nos afastamos do maior valor cristão, que é o amor gratuito para com o outro – a caridade.

Quem não se descobre amado por Deus não é capaz de ter uma verdadeira esperança. Precisa se apegar às ilusões da força ou do pensamento positivo. Quem confia no poder humano, na sua capacidade de dominação, não é capaz de perceber o amor de Deus se movendo nas entranhas da realidade. Ao cedermos à ilusão do poder, caímos numa espiral crescente de crença na dominação e descrença em Deus e seu amor.

Que 2023 se revele, para todos nós, para o Brasil e para o mundo, um tempo de crescimento no amor e de libertação da idolatria ao poder.

 

Francisco Borba Ribeiro Neto

 

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Cultura, secularismo e evangelização na ótica do Papa Francisco

As palavras sobre cultura, secularismo e evangelização ditas pelo Papa Francisco, em sua viagem ao Canadá, no discurso às autoridades civis com os representantes das populações indígenas, e na homilia das Vésperas com os bispos e padres, são particularmente esclarecedoras de seu modo de atuar.

A religiosidade, a solidariedade, a capacidade de resistência e de esperança de um povo, para Francisco, estão diretamente vinculadas a sua identidade cultural. Interessante notar que essa é uma posição claramente compartilhada por São João Paulo II. É natural que, para eles, a evangelização tem que ser um processo de inculturação e não de imposição cultural.

Abrir-se ao novo

Na Querida Amazônia (QA 62ss), Francisco se detém nas questões ligadas à inculturação do Evangelho. Quando um povo acolhe o Evangelho, não se repete a cultura do evangelizador, mas se cria uma nova identidade cultural, fruto da ação do Espírito na cultura daquele povo. Por isso “é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre algo de novo” (QA 69).

O secularismo atual, a tendência de eliminar a consciência de Deus na vida cotidiana, cancelando o direito de expressão pública dos cristãos, é a antítese da inculturação do Evangelho. Francisco observa, nas Vésperas rezadas no Canadá, que esse secularismo pode gerar um olhar negativo, que “nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de ‘armadura’ para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: ‘O mundo é mau, reina o pecado’ [… mas Deus] encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo”.

Assim como a inculturação do Evangelho, também o enfrentamento do secularismo implica numa imaginação criativa, que se abre ao novo. Francisco continua: “o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspeto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral”.

Uma realidade que nos pede humildade

O caso canadense é particularmente doloroso para os católicos, pois aconteceu num período relativamente recente e não respeitou princípios de valorização da cultura e das relações familiares que já eram seguidos no trabalho missionário na América Latina desde o período colonial.

Reconhecer o erro e pedir perdão publicamente não deveria ser um problema para os cristãos. A humildade e a contrição de coração sempre foram valores para nós. As tristes consequências dos escândalos de pedofilia mostram na prática o tamanho do erro de uma mentalidade que procurava minimizar e esconder os erros dos católicos. A humildade de pedir perdão não é submissão às coerções do poder, mas liberdade de quem sabe que é a misericórdia de Deus que salva cada um de nós e o mundo.

“Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”. Essas palavras de Francisco, em seu discurso, não são um questionamento ao anúncio evangélico, mas devem abrir nossos olhos para o perigo, sempre presente, de querermos nos adequar “mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

O Papa não se restringe ao pedido de perdão. Lança um questionamento fundamental em nossos dias: o cancelamento cultural, que lê seletivamente a realidade, vendo os pecados dos cristãos, mas não reconhecendo a contribuição da fé, não é uma forma atual de “colonização cultural” – que acaba desenraizando a cultura popular e deixando os seres humanos mais à mercê do poder?

Em busca de novos caminhos

O ressentimento e o ódio não poderão construir um futuro melhor, seja para as vítimas dos erros do passado, seja para aquelas dos erros do presente. Citando, no discurso acima, a escritora judia-húngara Edith Bruck, o Papa lembra que “a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar”.

A construção de uma cultura mais humana, que respeite o passado, mas abra um caminho para o futuro — continua o Papa — passa por não se entregar aos partidarismos e “recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim como, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens”.

Para superar o secularismo, é preciso renovar o anúncio evangélico, levando “aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé”, nas palavras do Papa durante a homília de Vésperas. Para tanto, Francisco lembra três desafios: (1) fazer Jesus conhecido, pois “nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio”; (2) dar um testemunho credível, no qual “é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras”, (3) construir a fraternidade, “viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum”.

Não seguirmos o espírito do secularismo

Por fim, nas Vésperas, o Papa lança uma advertência: “Não nos esqueçamos de que só podemos enfrentar esses desafios com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus”.

Francisco aponta um caminho, o mundo laico tem se encantado com ele. Cabe a nós, católicos, compreender o seu exemplo, para nos convertermos ao que o Espírito nos pede nesse momento e podermos ser sinal claro para nossos irmãos.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Imagem a partir de foto de Ross Dunn (Flickr) e pintura de Benjamin West