‘Laudate Deum’: denunciar o aquecimento global e anunciar a Cristo

Nas redes sociais, a Exortação Apostólica Laudate Deum (LD), lançada no último 4 de outubro, tem recebido tanto uma recepção entusiasmada quanto críticas ásperas, como antes já tinha acontecido com a Encíclica Laudato si’. Papas são sempre polêmicos, mesmo que não queiram. O problema não está neles, mas em seus leitores. Tendemos a gostar quando eles escrevem o que queremos ler e criticar quando escrevem coisas com que não concordamos ou que não entendemos.

Duas críticas interligadas merecem ser comentadas, pois nos dão a oportunidade de entender muitas outras coisas… Muitos acreditam que o Papa não deve escrever sobre questões ecológicas e sobre aquecimento global, pois não são temas referentes à fé. Outros até concedem essa possibilidade, mas acreditam que Francisco é excessivamente “mundano”, mais preocupado com os problemas mundanos do que com a conversão das almas. Dedico esse artigo à primeira crítica e discutirei a segunda num próximo.

Quais são os temas aos quais os Papas se dedicam?

Não há dúvida que a atenção principal dos Papas se foca na relação entre Deus e a pessoa humana, mediada por Cristo e realizada historicamente na Igreja. Mas a caridade cristã impulsiona a Igreja a ocupar-se de tudo aquilo que diz respeito à vida humana. É São João Paulo II que bem explica: “A Igreja é ‘perita em humanidade’, e isso impele-a necessariamente a alargar a sua missão religiosa aos vários campos em que os homens e as mulheres desenvolvem as suas atividades em busca da felicidade, sempre relativa, que é possível neste mundo, em conformidade com a sua dignidade de pessoas […] É por isso que a Igreja tem uma palavra a dizer, hoje como há vinte anos e também no futuro, a respeito da natureza, das condições, das exigências e das finalidades do desenvolvimento autêntico e, de igual modo, a respeito dos obstáculos que o entravam. Ao fazê-lo, a Igreja está a cumprir a missão de evangelizar, porque dá a sua primeira contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem aplicando-a a uma situação concreta” (Sollicitudo rei socialis, SRS 41).

Ora, uma catástrofe climática que pode afetar a humanidade inteira sem dúvida se adequa aos critérios acima. A única razão para um Papa não se deter sobre esse tema é se fosse uma ameaça falsa. Responder a esse questionamento é o primeiro tema desenvolvida na Exortação.

Ninguém mais pode negar o aquecimento global

Hoje, a maioria esmagadora da comunidade científica mundial acredita que o aquecimento global existe e é causado principalmente pela atividade humana. Existem evidencias robustas para isso, enquanto que todas as tentativas de negá-lo ou de dar-lhe outras causas que não a ação humana não apresentam evidências favoráveis sólidas.

Francisco elenca uma série de eventos, que se tornaram muito mais evidentes nesses anos, que o demonstram: “Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afeta a todos” (LD 5). Segundo um estudo das Nações Unidas, os desastres relacionados ao clima aumentaram 83% nos últimos anos – de 3.656 eventos, durante o período de 1980-1999, para 6.681 entre 2000-2019. As grandes inundações mais do que dobraram, o número de tempestades severas aumentou 40% e houve um grande aumento nas secas, incêndios florestais e ondas de calor. E, nos últimos anos, mesmo sem a sofisticação das análises científicas, todos nós estamos vendo essas tragédias acontecerem em nossos noticiários.

“É impossível esconder a coincidência destes fenômenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência […] Os elementos naturais típicos que provocam o aquecimento, como as erupções vulcânicas e outros, não são suficientes para explicar a percentagem e a velocidade das alterações registadas nos últimos decênios” (LD 13-14). O aquecimento global é uma ameaça criada pelos seres humanos e não pode ser resolvida sem mudanças radicais em nosso modo de viver e produzir.

Não é possível, contudo, olhar para a questão climática sem dar-se conta das agudas desigualdades das sociedades humanas. “As emissões per capita nos Estados Unidos são cerca do dobro das dum habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres” (LD 72), observa o Papa, citando um relatório das Nações Unidas. Por outro lado, as catástrofes climáticas quase sempre afetam as populações mais pobres. São elas que habitam os territórios mais sujeitos a inundações e deslizamentos de terra, que perdem o trabalho quando as lavouras são perdidas pela seca…

Apresentando alternativas viáveis

Francisco, nesse novo documento, de forma mais enfática, se reporta a propostas que tem se mostrado cada vez mais necessárias e viáveis nos últimos anos. Não se trata de fazer alarmismo em torno a previsões catastrofistas, mas sim de assumir caminhos viáveis para evitar o pior…

Do ponto de vista prático, o Papa reconhece os méritos das medidas de mitigação, que procuram retirar da atmosfera gases responsáveis pelo aquecimento global – a mais conhecida, de grande importância para o Brasil, é a política de créditos de carbono, onde países e empresas poluidoras financiam a manutenção e expansão das florestas que, com a fotossíntese, “sequestram” o gás carbônico atmosférico. Para a Amazônia, por exemplo, é uma grande alternativa de financiamento para um desenvolvimento socialmente justo e economicamente interessante. Contudo, lembra que essas medidas serão insuficientes sem mudanças mais radicais (LD 57).

Diante das ameaças do aquecimento global, o mundo precisa acelerar a substituição das fontes de energia derivadas da queima de combustíveis fósseis por fontes “limpas” (solar, eólica, hidráulica, biocombustíveis). Não se trata de um caminho utópico ou oposto ao progresso. O aperfeiçoamento e a popularização dos carros elétricos é um bom exemplo da viabilidade dessa substituição. Outro ponto, que poucos de nós sabemos, é que o Brasil já é um líder mundial no uso de fontes “limpas”. As fontes de energia limpas respondem por 83% da produção nacional. Nosso país tem uma das matrizes energéticas mais renováveis do mundo, com 48% de fontes renováveis na matriz energética, enquanto o resto do mundo tem apenas 14%.

Laudate Deum incorpora, nesse sentido, as indicações da Agência Internacional de Energia Renovável (ligada às Nações Unidas). Esse organismo internacional defende que os acordos internacionais devem chegar a propostas eficientes, vinculantes (isso é, que não dependam apenas da boa vontade dos países para serem implementadas) e facilmente monitoráveis (LD 59). O Papa, contudo, reconhece que os encontros internacionais têm ficado aquém das expectativas (LD 44ss). Por isso, defende a necessidade de redesenhar o multilateralismo (que é a cooperação entre os países, buscando o bem comum – e não a imposição de normas por um país ou organismo internacional, como alguns maldosamente imaginam). Francisco acredita que, nesse redesenho, deve crescer a importância e a pressão das organizações sociais, buscando sanar as debilidades dos governos (LD 37).

O que nos cabe?

Como o Papa irá salientar no final do documento, cabe a todos nós, sejamos católicos, professemos outras religiões ou mesmo sejamos ateus, lutar para que as mudanças necessárias aconteçam. É um imperativo moral que transcende as religiões ou as posições políticas. Nas palavras de Francisco: “Na própria consciência e pensando nos filhos que pagarão os danos das minhas ações, coloca-se a questão do sentido: Qual é o sentido da minha vida? Qual é o sentido da minha passagem por esta terra? Qual é, em última análise, o sentido do meu trabalho e do meu compromisso?” (LD 33).

Falando de Deus enquanto se enfrenta o aquecimento global

Muitos, contudo, ainda criticam o Papa Francisco por acreditar que ele se preocupa excessivamente com os temas sociais e políticos, dando pouco espaço para a reflexão religiosa.

Nada mais falso! Particularmente no tema ecológico, percebemos que Francisco, desde a Laudato si’ (LS) encontrou nos temas ecológicos uma possibilidade abençoada de falar sobre Deus e seu amor para as novas gerações, sedentas de sentido e amor para suas vidas. O entusiasmo despertado pela atenção do Papa à ecologia não vem só da importância objetiva do tema, mas da percepção, muitas vezes explicitada até por agnósticos e pessoas de outras religiões, de que o Papa fala de uma ternura, de um amor, que trazem beleza e sentido para os temas ecológicos.

O discurso ecológico de Francisco não é uma estratégia comunicativa, que aborda uma questão para “vender” outra, é a expressão natural de sua vida interior. Isso torna ainda mais verdadeiro e sincero seu discurso – mais cativante para um mundo que carece de Amor e Verdade, mesmo quando não reconhece.

Superar o paradigma tecnocrático

Aprofundando sua reflexão ecológica, Francisco mostra que a degradação ambiental em geral, e o aquecimento global, em especial, estão diretamente ligados ao mau uso do poder econômico e tecnológico, por aqueles que procuram o lucro de forma desenfreada, sem limites, sem respeito pelo bem comum e pela natureza. Francisco adverte que se trata de um problema ético, decisões pessoais a serem tomadas na gestão dos empreendimentos, no uso dos recursos e do poder, grande ou pequeno, que cada um tem em suas mãos.

E aqui o Papa reforça um ponto nem sempre adequadamente trabalhado na recepção da Laudato si’. Trata-se do paradigma tecnocrático: “pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”, passando-se à “ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia” (LD 20). Não se trata, evidentemente, de uma crítica ao uso da tecnologia em si, mas de um modo desmedido de pensar o poder e as ambições pessoais. “Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer” (LD 23).

“Todos nós devemos repensar a questão do poder humano, do seu significado e dos seus limites. Com efeito, o nosso poder aumentou freneticamente em poucos decênios. Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornamos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência […] É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos” (LD 28].

A questão do poder não diz respeito apenas a empresários gananciosos, ideólogos prepotentes ou políticos irresponsáveis. Estamos diante de um fenômeno cultural, uma lógica que incide sobre o modo como cada um de nós vê a realidade e se posiciona. Francisco aprofunda esse tema na Laudato si’ (LS): “um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada” (LS 111).

Citando o teólogo Romano Guardini e São João Paulo II, na Laudato si’, Francisco vincula o paradigma tecnocrático ao antropocentrismo desmesurado: “O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado” (LS 115).

Com palavras sintéticas e duras, o Papa encerra a Laudate Deum dizendo: “um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LS 73).

Um caminho de beleza

Mas nem tudo é denúncia e alarme. Aliás, o sucesso da Laudato si’ se deve, em grande parte, na capacidade de Francisco trazer uma palavra de amor e esperança aos temas ecológicos. Sem dúvida, as pessoas honestas hão de reconhecer que o Papa mostrou que, nas questões ambientais, existe uma enorme busca espiritual e, por isso, um espaço privilegiado para se falar de Deus.

Existe um “caminho da beleza”, uma via pulchritudines, no discurso ambiental de Francisco. Uma beleza decorrente do amor e da ternura evocados pelo Papa, quanto fala de Deus e da natureza. “louvai a Deus por todas as suas criaturas: foi este o convite que São Francisco de Assis fez com a sua vida, os seus cânticos e os seus gestos. Retomou assim a proposta dos salmos da Bíblia e reproduziu a sensibilidade de Jesus para com as criaturas de seu Pai: ‘Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles’ (Mt 6, 28-29). ‘Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus’ (Lc 12, 6). Como deixar de admirar esta ternura de Jesus por todos os seres que nos acompanham no nosso caminho?” (LD 1).

Citando a Laudato si’, retoma os fundamentos de uma espiritualidade ecológica plena de fascínio: “O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus» e, por conseguinte, para ser sábios, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações (LS 86). Neste caminho de sabedoria, não aparece irrelevante aos nossos olhos o fato de tantas espécies estarem a desaparecer e a crise climática estar a pôr em perigo a vida de tantos seres […] as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre» (LS 100). O mundo canta um Amor infinito; como não cuidar dele?” (LD 63-65)

A família diante de nossa fobia às contradições

Poucas coisas nos horrorizam tanto quanto nossas próprias contradições. Sabemos que somos todos pecadores, mas nos parece terrível constatar que não fazemos o bem que queremos, mas sim o mal que não queremos (cf. Ro 7, 19); ou que nosso “eu real” nunca consegue estar à altura do nosso “eu ideal”. Não aceitamos a imperfeição dos demais, que não conseguem (ou pior, nem mesmo desejam) nos amar e respeitar como acreditamos merecer – mas também não aceitamos nossa própria imperfeição, que nos diminui aos nossos próprios olhos e aos olhos dos demais. Às imperfeições dos outros, queremos condenar ou usar como justifica para as nossas próprias. Às nossas imperfeições, queremos negar ou apresentar como responsabilidade de outros.

Diante das frustrações, alguns assumem uma posição autoritária e não querem reconhecer os próprios erros nem se deixarem questionar em seus valores. Outros querem condenar a todos, pois não aceitam que seus problemas são singulares, que nem todos enfrentam as mesmas dificuldades e as mesmas dores. Os autoritários tendem a infernizar a vida daqueles que estão próximos. Os revoltados tendem a desorientar aqueles que os escutam. Necessário salientar que existe uma autoridade que ajuda a crescer e uma revolta que é necessária para mudar o que está errado – mas não estamos nos referindo aqui a essas manifestações quando são benéficas.

No fundo, essas coisas não deveriam nos escandalizar – seja nos outros, seja em nós mesmos. Fazem parte da natureza com a qual Deus nos fez. O escândalo gera raiva e frustração, impede um raciocínio preciso e a tomada de decisões justas. Reconhecer os erros é o primeiro passo para buscar o perdão e caminhar rumo à virtude – mas a dor pela culpa e pelo pecado precisa do unguento da misericórdia, não do aguilhão da raiva (contra si próprio ou contra o outro).

A família é um problema…

Essas reflexões me ocorreram ao ouvir um podcast sobre família que me foi enviado. Nele, uma influencer e um psicólogo discutiam sobre a desnecessidade da família – ou sobre a necessidade de um outro modelo de família, que rompesse totalmente com o atual. Nas falas, iam se amontoando uma série de falhas familiares, algumas bem características de casos específicos, outras mais ou menos gerais (afinal, todas as famílias são formadas por seres humanos falíveis, algumas são muito melhores, outras muito piores, mas nenhuma delas é “perfeita”). A somatória das falhas, deixadas sem solução, apontavam para um inevitável “fracasso” da família tradicional e a necessidade de um modelo alternativo – que não se chegava a esboçar claramente, pois o fato é que todas as “famílias alternativas” que temos por aí são variações do mesmo tema: pai, mãe e filhos.

A questão familiar, em nossa sociedade, contempla duas vertentes: aquela material, que inclui os aspectos econômicos e a organização da vida concreta; e a cultural, que inclui as subjetividades, os valores e a forma de conceber as relações afetivas. As duas são problemáticas e se relacionam. Muitas famílias, por exemplo, sofrem com a desestruturação decorrente da pobreza e da falta de opções para viver com dignidade; outras sofrem por uma concepção individualista ou pelo autoritarismo dos pais; muitas vezes a desorientação afetiva e moral dos filhos decorre da impossibilidade de serem acompanhados pelos pais, forçados pelas condições econômicas a jornadas de trabalho longas e estafantes.

Contudo, quando mídias e redes sociais se põem a questionar a família, o aspecto mais discutido é de natureza afetiva e relacional. O quanto as famílias são responsáveis pelos desajustes que exibimos todos os dias? Os valores transmitidos em seu seio são realmente necessários para nossa realização? Até onde vai o amor verdadeiro e onde começa o autoritarismo sufocante?

… mas ainda é a melhor solução

A família é o primeiro âmbito no qual nos damos conta das relações afetivas que nos cercam e é também o âmbito onde essas relações atingem seu clímax. Nunca antes, em uma sociedade, se teve tanta liberdade para amar quanto temos na nossa. Fazemos questão de dizer que todas as formas de amar são válidas. Mas, diante de toda essa pretensa liberdade, descobrimos estarrecidos que não sabemos amar, que muitas vezes não conseguimos ir além de uma remota intuição do que seja o amor, que muitas vezes nossa única experiência de amor é um buraco aberto em nosso coração – do qual sai um clamor incessante por preenchimento. Nesse contexto, é evidente que a instituição familiar seja dramaticamente questionada o tempo todo.

Com uma ironia “chestertoniana”, poderíamos dizer que não é ela que falhou, foi o mundo que falhou e continua a esperar dela uma solução. Quanto maior a responsabilidade, maiores as consequências de um fracasso. Um bom governo pode fazer maravilhas pelos cidadãos, mas um mau governo gera catástrofes e desgraças. Sendo tão importante, é natural que a família seja culpada de tantas frustrações e desgraças, mas também é aquela para a qual o mundo olha com maior desejo de realização.

O fato é que as pessoas não querem se desfazer das famílias. Ao contrário, todos querem uma família na qual se realizem. Quem ataca a família, no fundo, ataca um modo de ser família, na esperança de encontrar um outro no qual poderá se adequar. Nenhum Estado, nenhum programa político, encontrou uma proposta mais eficiente e integral para responder a todas as necessidades humanas, de proteção, auxílio, afeição e sentido, do que a família.

O desafio – e isso temos que reconhecer – é superar as muitas dificuldades e criar famílias que, mesmo não sendo perfeitas, possam permitir a realização humana de seus membros.

Antes de discutir ideias, testemunhar o amor

Os problemas materiais das famílias podem ser razoavelmente bem solucionados por políticas públicas bem orientadas, com a ação de gestores eficientes e competentes. Mas, quando as questões atingem o núcleo da existência familiar, que são as relações afetivas e todo o complexo de concepções de si mesmo e valores que derivam dessas relações, as soluções passam a exigir a experiência da acolhida e um justo envolvimento afetivo de quem deseja ajudar.

Quem não faz a experiência de perceber-se amado de forma gratuita não consegue entender o que é o amor, nem amar os outros de forma adequada. É verdade que ideologias e interpretações distorcidas podem piorar muito essa percepção do amor – uma vez que ele, sendo humano, é sempre contraditório. Mas a realidade é sempre maior que a ideia. Por isso, a tradição católica insiste tanto no testemunho.

Uma interpretação belicista, que enfatiza as “guerras culturais”, nos induz a imaginar que as ideias podem se sobrepor à realidade. Mas uma interpretação distorcida só pode prosperar porque explora as contradições do ser humano – e porque nós não conseguimos apresentar a gratuidade do amor e sua capacidade de perdão como uma experiência em ato, algo crível.

Se queremos realmente ajudar as pessoas e o mundo a serem felizes, a encontrarem os valores e a riqueza das famílias, temos que estar dispostos a dar o melhor de nós para amar e acolher o outro. É relativamente fácil solidarizar-se com uma criança pobre e desnutrida, mais difícil com um adolescente que se tronou violento por conta do bullying e da falta de perspectivas, muito mais difícil com um jovem autocentrado que parece sempre ter vivido entre mimos e confortos. Mas não importa a quem Deus nos envia. Somos chamados a testemunhar, para cada um, o amor que já recebemos e tentar, no limite de nossas capacidades e das circunstâncias objetivas, ser um sinal do amor que dá sentido à vida.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Atentados, suicídios: os jovens diante da violência do mundo

Mais um atentado em escolas brasileiras, este culminando com o assassinato de uma professora por seu aluno de 13 anos, nos obriga a pergunta: o que está acontecendo? A sociedade brasileira nunca foi tão pacífica quanto gostaríamos de supor. Assassinatos por motivos fúteis, violência doméstica, linchamentos sempre aconteceram entre nós – ainda que nem sempre noticiados. Contudo, no período recente, parece que estamos importando de países como os Estados Unidos esta nova praga dos atentados em escolas e universidades. Foram pelo menos 16 atentados nos últimos 20 anos, sendo ao menos sete no último ano.

Contudo, os atentados respondem apenas por uma parte do drama. Existe uma regra de não noticiar casos de suicídio, porque a sua divulgação tem o efeito de sugerir ideias suicidas entre outras pessoas. Contudo, a taxa de suicídios entre jovens no Brasil teve um aumento de quase 50% de 2016 a 2021. Seja tentando tirar a vida de outrem, seja tentando tirar a própria vida, estamos assistindo a um aumento vertiginoso da violência entre nossos jovens.

Entre os adultos, o escândalo e o medo gerados por essa situação são compreensíveis – mas pouco ajudam na resolução do problema. Raiva e medo são sempre maus conselheiros, as boas soluções nascem da reflexão serena, do olhar atento e da dedicação às pessoas envolvidas. Quando se trata de violência, a raiva e o medo são ainda mais deletérios, pois pessoas raivosas ou temerosas tendem a ser ainda mais agressivas, insuflando o estado de ânimo que deveriam inibir.

O que está acontecendo?

Tendemos sempre a procurar culpados por tudo de mal que acontece. Com isso, enfraquecemos nossa capacidade de análise e a visão objetiva da realidade. Cada qual tende a culpar aqueles com quem não simpatiza ou os adversários políticos, num comportamento ideológico no qual se revela uma parte do problema, mas se deixa de ver outros.

O fato é que vivemos numa sociedade onde as pessoas tendem a sentir-se cada vez mais ressentidas com a sociedade circundante. Lembrando o título de uma obra de Freud, podemos falar de um “mal-estar na civilização”. A ideia é simples e não precisa ser nenhum freudiano para constatar sua veracidade. Para nos adequarmos à vida em sociedade, temos que aceitar fadigas, pressões e desgostos. Trata-se de uma inevitabilidade com a qual convivemos todos os dias de nossa vida, desde a mais tenra idade.

Quanto mais simples, autoritária e estática é a estrutura social, mais esse “mal-estar” é naturalizado, aceito como normal e reconhecido como inevitável. Numa sociedade complexa, plural, liberal e dinâmica, como é a nossa, diminui a adesão às normas sociais, cujo lado autoritário se torna mais evidente. Por que seguir essa ou aquela norma social, se ela não nos faz mais felizes? Por que se esforçar para alcançar certas metas pessoais, se depois constatamos que elas não nos darão a satisfação prometida? Para que ser “bons cidadãos” se todos os dias vemos esses cidadãos frustrados e acabrunhados, esmagados pelo peso dos compromissos e pelo despotismo dos poderosos, insatisfeitos diante dos prazeres que lhes foram mostrados, mas não foram entregues?

Nossa sociedade vende uma realização que depois não consegue entregar. Somos todos como que forçados a nos apresentarmos como felizes e bem-sucedidos (veja-se as imagens que divulgamos de nós mesmos em nossas redes sociais), mas tão poucos alcançam realmente a felicidade e o sucesso! Tudo isso gera um contexto de ressentimento, depressão e raiva. Não é à toa que as pesquisas indicam que a taxa de pessoas diagnosticadas com depressão na sociedade brasileira subiu cerca de 34% entre 2013 e 2019.

É uma armadilha, um labirinto de difícil saída, montado para as novas gerações – que ouvem cada vez mais promessas de realização, mas são pressionadas a alcançarem um sucesso que não lhes parece factível. Nesse contexto, a explosão da violência se torna cada vez mais provável, podendo ser desencadeada por uma infinidade de “detonadores”, muitos dos quais quase imperceptíveis aos olhos dos demais.

Bullying, famílias disfuncionais e redes sociais

Três fatores são normalmente indicados entre esses “detonadores” de comportamentos agressivos, antissociais ou suicidas. Nos ambientes juvenis, se sobressai o bullying. Jovens diferentes, que não se encaixam nos padrões hegemônicos dentro do grupo social, se tornam vítimas das chacotas, do desprezo e do tão temido cancelamento por parte dos demais. Curiosamente, pessoas que poderiam ser colocadas em extremos opostos do espectro ideológico muitas vezes são vítimas do mesmo bullying. Por exemplo, o cristão que deseja viver sua castidade e o homossexual que deseja liberar sua sexualidade poderão ser igualmente cancelados por não se encaixarem num padrão de heterossexualidade permissiva… As armadilhas do poder são mais sutis do que imaginamos!

O segundo fator frequentemente apontado como desencadeador de comportamentos violentos entre jovens advém dos problemas familiares, como violência doméstica e abandono parental. Contudo, também aqui, é perigoso uma generalização esquemática. Não é que por traz de cada suicida e de cada perpetrador de atentados encontraremos uma família disfuncional. Além disso, muitas vezes os próprios pais são vítimas de más condições de trabalho ou de uma situação de pobreza material e humana que não lhes permite dar a atenção e o cuidado aos filhos que desejariam dar.

Por fim, as redes sociais se tornaram o grande vilão de nossos tempos. Elas permitem que ideologias, exemplos e até instruções sejam difundidas com uma facilidade nunca vista em nossa sociedade. Congregam solitários que nunca teriam se encontrado antes. Criam, no mundo virtual, falsas realidades que podem estimular comportamentos antissociais, ódios e agressões. Em sua abrangência e pluralidade, parecerem incontroláveis para famílias e governos.

O que fazer?

Soluções nascidas do desespero e da raiva são pouco eficientes. Aumentar o policiamento ostensivo nas escolas, impor uma disciplina mais rígida colocar detectores de metais são alternativas que podem até ser necessárias em alguns casos – mas não são respostas efetivas para o problema. Quem impedirá o agressor de atacar seus colegas e professores na rua? E os jovens que se suicidam em casa? Eles também são filhos de Deus e vítimas dessa situação generalizada.

O controle das redes sociais é uma necessidade de nossos tempos. A liberdade não é a mesma coisa que o direito de propagar o mal entre os influenciáveis. Contudo, o fato é que há muitas tentativas e poucos resultados realmente eficiente. A complexidade da questão pode ser vista nas discussões sobre a censura do Estado e a responsabilização das chamadas big techs, proprietárias das redes. Acompanhar o que os jovens estão vendo é, sem dúvida, uma das muitas responsabilidades dos pais, mas temos que ser realistas: como pais que trabalham por 8 a 10 horas diárias poderão fazer esse controle? E nem todos, na verdade muito poucos, tem a alternativa de deixar de trabalhar ou ter um emprego de só meio período para poder estar mais perto dos jovens.

Um passo fundamental – e talvez não tão difícil – é garantir assistência psicológica para professores, estudantes e até policiais. O corpo docente deve estar capacitado para perceber quando jovens estão em situações frágeis e/ou perigosas e ter para onde encaminhá-los. A polícia tem que saber o que fazer quando recebe uma denúncia ou constata uma situação violenta numa escola (no caso do assassinato da professora, o menor já havia sido inclusive denunciado para a polícia).

Saber amar

Diante dessa situação, existe uma tarefa que compete a todos nós: aprendermos a amar mais os jovens. Evidentemente isso vale em primeiro lugar para os pais, mas também a professores, sacerdotes, influenciadores e até chefes e empregadores. Os jovens precisam ser amados, mas o amor precisa ser verdadeiro e sábio. Amores possessivos, que sufocam os jovens com expectativas traçadas por outros, ou permissivos, que pecam pela falta de orientação, não ajudam. O exemplo dos adultos é fundamental – mas o primeiro exemplo é o de que somos felizes amando (e, muitas vezes, temos um longo caminho pessoal, pois não somos felizes, nem sabemos amar).

O primeiro passo do amor é a acolhida. Nossos jovens vivem numa sociedade que não sabe acolher, por mais que diga o contrário. Corrigi-los é sempre importante, mas só quem acolhe é reconhecido como tendo o direito de corrigir. A correção sem a acolhida não é aceita e tem o efeito contrário. As ideologias são perigosas, mas denunciá-las sem mostrar o amor só serve para gerar mais raiva e ressentimento.

Saber amar é uma capacidade inerente a todo ser humano, não depende dessa ou daquela confissão religiosa. Porém, Cristo – que se entregou à morte por amor a cada um de nós – é o maior mestre de amor que podemos encontrar. Oremos por nossos jovens, pelos que mais sofrem, pelas vítimas da violência, por nós mesmos, que o manto da misericórdia a tudo cubra, consolando-nos na dor, ensinando-nos a viver.

Francisco Borba Ribeiro Neto
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10 anos com Francisco

Caderno Fé e Cidadania do jornal O São Paulo

‘Não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida’

Marli Pirozelli N. Silva

A encíclica Fratelli tutti e os refugiados e migrantes

Marco Antonio Marques da Silva

A população em situação de rua e a normalização do absurdo

Fernanda Penteado Balera

Desigualdade social

Fabio Gallo Garcia

A missão da Igreja se restringe às almas?

Júlio César de Paula Ribeiro

O nordestino é, antes de tudo, um forte

Pe. Alfredo José Gonçalves, CS

O gás para os descartados

Wagner Balera

O Papa e a glória de Deus

Francisco Borba Ribeiro Neto

O Papa e a glória de Deus

Há muitos anos, assisti um evento teológico internacional onde os palestrantes eram todos meus amigos. Apenas um deles fez uma exposição que realmente me fascinou. Quando fui dar-lhe os parabéns e comentei minha decepção, ele comentou “eles não têm culpa, apenas ainda não perceberam a glória de Deus”. Não era uma frase presunçosa, ele não queria se considerar superior aos demais. Pelo contrário, queria dizer que não era mais inteligente ou brilhante, apenas tinha a graça de perceber uma beleza que os demais (ainda) não tinham percebido.

O episódio me veio à mente ao ler os vários artigos que foram publicados pelos 10 anos de pontificado do Papa Francisco. A imensa maioria era um balanço das reformas que foram ou não realizadas pelo pontífice e dos desafios que ainda o esperam daqui para frente. Para quem ainda não viu estes artigos, recomendo aquele excelente de Angelo Ricordi, em Aleteia. De certa forma, esse tipo de comportamento é o esperado da imprensa, mas, na maioria dos casos, revela aquela mesma falta de percepção da glória que meu amigo via em nossos colegas. Na vida da Igreja, o mais importante é a glória de Deus – e essa glória não pode ser compreendida em função de mudanças que ocorrem ou deixam de ocorrer.

Compreender um papado, seja ele qual for, implica em perceber as particularidades com as quais a glória de Deus acontece. E “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”, como lembra o Catecismo (CIC 294), citando Santo Irineu de Lion. Não quero aqui negar a importância das reformas iniciadas por Francisco, mas apenas salientar que devem ser vistas como consequências e não como avaliações do que vem acontecendo ou deixou de acontecer.

E não podemos deixar de reconhecer seu papel para todo o mundo de hoje… Francisco se tornou a “pedra de tropeço”, o “sinal de contradição” da sociedade de nosso tempo. Suas muitas fotos abraçando e acolhendo os pobres; as imagens do velho solitário, numa Praça de São Pedro vazia, sob um céu escuro e pesado, rezando a Deus por um mundo tomado pela pandemia (27 de março de 2020) são grandes símbolos das agruras e esperanças de nosso tempo. Para nossa humanidade ferida pelos descaminhos da economia global, pela exclusão, pelo preconceito e pelas consequências da COVID, Francisco vem sendo um grande sinal de esperança.

O que Francisco se propôs a fazer?

“Desejo uma Igreja pobre para os pobres” (Evangelium gaudium, EG 198). Desde suas primeiras declarações, desde a escolha de seu nome como papa, Bergoglio deixou claro que esse era o objetivo de seu pontificado. É fato que a pobreza evangélica é um conceito muito mais complexo que a pobreza econômica. Uma Igreja pobre não é tanto materialmente pobre, é — principalmente – uma Igreja que põe tudo o que tem a serviço dos necessitados, que se despe de seu poder para estar próximo dos mais fracos, que não se deixa levar pela arrogância e proclama a Verdade com absoluta humildade. Os pobres de espírito, que herdarão o Reino dos Céus, são mais que pobres materiais, são todos aqueles humildes que se abandonam à Providência divina, sem se importar com os ganhos materiais, mas procurando sempre o bem dos irmãos.

Por outro lado, aqueles pobres a quem se dirige essa Igreja pobre, desejada por Francisco, são – objetivamente – aqueles que sofrem privações materiais, os que são excluídos e descartados em nossas sociedades, os discriminados e os párias – e, nesse sentido, a Igreja desejada por Francisco faz sim uma opção por alguns grupos sociais. Não se trata, como bem lembram as várias discussões sobre a teologia da libertação realizadas nas últimas décadas, de uma opção excludente. Esses pobres não são os únicos amados e desejados por Deus. Mas quem não optar por eles estará se distanciando do coração de Deus…

Vendo sob essa ótica, não há como negar o sucesso do papado de Francisco. A glória de Deus se manifestou claramente nesses 10 anos por meio de um ancião que mostrou ao mundo o que era a bondade, a atenção pelos últimos, a busca por justiça. Quem tem olhos para ver, que veja; quem tem ouvidos para ouvir, que ouça. Os sinais de Deus são sempre discretos, não se impõem à liberdade humana. Cada um de nós pode ver, em Francisco, aquilo que quiser. Quem quiser reduzi-lo a um líder carismático, mas cooptado pelas ideologias, poderá reduzi-lo nessa perspectiva. Quem já se acha tão bom que não precisa se converter ao seu exemplo, poderá agir assim. Quem quiser achá-lo “um cara legal” e seguir pela vida sem se sentir provocado por seu testemunho, também poderá agir assim.

Um caminho que começa com cada um de nós

Com uma clareza que poderia envergonhar muitos pensadores e influenciadores católicos, Barack Obama declarou que “raro é o líder que nos faz querer ser pessoas melhores. Papa Francisco é um desses líderes”. Não desejo aqui fazer uma nova avaliação do pontificado de Francisco, de seus êxitos e desafios, apenas quero me remeter a essa constatação de Obama: a grande importância de Francisco, para cada um de nós, é sua capacidade de nos aproximar mais de Cristo, de favorecer um encontro (ou um reencontro) que muda nossa vida.

Cada um de nós pode se perguntar o quanto nos aproximamos mais de Deus seguindo o exemplo do Papa Francisco. Ao fazermos isso, poderemos ter surpresas curiosas. Talvez aqueles que mais parecem se identificar com seu pensamento tenham sido os menos impactados: imaginaram que já conheciam sua proposta e não se perguntaram em que podiam mudar. Por outro lado, outros que estavam objetivamente distantes podem ter passado por grandes mudanças, terem percebido com mais clareza o significado do amor de Deus por eles e estarem se aproximando cada vez mais de Cristo. O nosso coração é um mistério insondável até para nós mesmos – mas é o espaço de ação preferencial para a graça.

E as reformas da Igreja? Elas sem dúvida têm acontecido. Talvez não do modo e com a velocidade que cada um de nós ou o próprio pontífice gostaríamos. Mas, aqui vale a citação de Madre Tereza de Calcutá, que ele mesmo fez no início de seu pontificado, falando aos jovens no Rio de Janeiro: “Por onde começar? Por cada um de nós, por eu e você”. Independentemente do sucesso maior ou menor de Francisco, ao propor reformas na Igreja, seu êxito se manifesta em primeiro lugar no coração de cada um de nós, no quanto nos deixamos aproximar de Cristo e de nossos irmãos que mais sofrem nessa “década de Francisco”.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Para 2023, nossa esperança está no poder ou no amor?

Aos poucos, à medida que o carnaval se aproxima e as aulas retornam nas escolas, o ano começa a ganhar seus contornos cotidianos “normais” – ainda que muita coisa já tenha acontecido nesse janeiro conturbado… E as sequelas do ano que passou permanecem bem evidentes em muitos de nós. Com relação à política, três tentações podem comprometer nosso estado de espírito.

Quem viu seu candidato vencer, está tentado a uma euforia desproporcional, como se os governos pudessem resolver os problemas do mundo e como se tudo fosse andar bem só porque nosso candidato ganhou. No extremo oposto, quem viu o político em quem depositava esperança perder, tende a uma depressão e uma raiva desproporcionais, como se o mundo fosse acabar porque o opositor venceu. Também temos uma tendência intermediária, uma certa “sabedoria” cética (que de sábia pouco tem) que considera que todos são iguais, como se o resultado da eleição não fosse influenciar a história.

Ora, o fato da eleição ter sido vencida por um ou outro candidato fará muita diferença em nosso futuro. Contudo, é verdade que nenhum eleito garantirá por si só o bem comum ou nos levará a uma catástrofe irremediável. Cada governante tem méritos e defeitos, em qualquer caso devemos estar atentos para apoiar os acertos e combater os erros. Valendo-nos do sábio conselho de Santo Inácio de Loyola, temos que agir como se tudo dependesse de nós, mas sabendo que tudo depende de Deus. Essa postura nos traz o justo equilíbrio para não desanimarmos nem nos descomprometermos, ao mesmo tempo que vivemos confiantes na ação de Deus.

 

A ilusão do poder

Estas situações acontecem principalmente pela tentação de depositar nossa esperança no poder. Citando as reflexões de Romano Guardini, na Laudato si’, o Papa Francisco observa: “Tende-se a crer que ‘toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores’ (GUARDINI, R. O fim dos tempos modernos. Brasília: Ed. Monergismo, 2021)” (LS 105).

A palavra poder tem duas acepções básicas: capacidade (o poder de fazer as coisas) e dominação (o poder sobre os demais). Tendemos a crer que as coisas vão mal simplesmente porque nossos adversários têm poder/dominação e que elas irão bem quando nossos correligionários passarem a ter esse poder. Mas, na verdade, as coisas são muito mais complicadas.

Para começar o poder/dominação não garante o poder/capacidade. Por exemplo, nenhum governante, por mais poderoso que fosse, teve capacidade de evitar que seu país sofresse as consequências da pandemia de Covid ou não fosse afetado pela crise financeira internacional de 2008. Os fenômenos naturais, a vida econômica, as relações internacionais e o próprio coração do ser humano não obedecem docilmente à dominação. Quanto mais tentamos forçá-los, ao invés de nos valermos da capacidade que vem do conhecimento e da sabedoria, mais erros cometemos.

Além disso, o poder/dominação corrompe. Todos os governantes que se perpetuaram no tempo e que adquiriram grande poder enfrentaram cada vez mais problemas de corrupção e mau uso de sua autoridade – por parte deles mesmos e/ou de seus correligionários. Entre as lições mais importantes das ciências políticas modernas estão a necessidade de um equilíbrio de forças no Estado (os chamados três poderes) e a positividade da alternância de governo entre grupos diferentes.

 

A confiança no amor

Para os cristãos, o problema mais profundo dessa crença no poder é a perda da capacidade de amar. Em um trecho famoso, C.G. Jung considera que “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina há falta de amor”. A frase está no contexto da teoria psicanalítica, mas se tornou muito conhecida porque reflete uma grande verdade sobre o ser humano. Quem se sente oprimido, não se sente amado. Quem insiste em dominar, perde a capacidade de amar.

Podemos observar como a confiança e a luta pelo poder nos últimos anos tornou nossa sociedade mais ressentida e raivosa, como nosso coração se endureceu muitas vezes, como muitas amizades ficaram mais difíceis. Muitas vezes, em nome da defesa de valores cristãos, nos afastamos do maior valor cristão, que é o amor gratuito para com o outro – a caridade.

Quem não se descobre amado por Deus não é capaz de ter uma verdadeira esperança. Precisa se apegar às ilusões da força ou do pensamento positivo. Quem confia no poder humano, na sua capacidade de dominação, não é capaz de perceber o amor de Deus se movendo nas entranhas da realidade. Ao cedermos à ilusão do poder, caímos numa espiral crescente de crença na dominação e descrença em Deus e seu amor.

Que 2023 se revele, para todos nós, para o Brasil e para o mundo, um tempo de crescimento no amor e de libertação da idolatria ao poder.

 

Francisco Borba Ribeiro Neto

 

Publicado originalmente em Aleteia

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