Na segunda-Feira da Oitava de Páscoa deste ano, ao rezar o Regina Caeli, o Papa Francisco fez um convite para que todos nós vençamos o medo. Essas palavras não podem deixar de nos remeter àquelas de São João Paulo II, na missa de início de seu pontificado, quando sua exortação “Não tenhais medo” marcou o mundo católico (Aleteia também tem um interessante comentário sobre essa ocasião).
Os ousados correm mais riscos
O temor é um sentimento intrinsicamente ligado a nosso instinto de sobrevivência – e como tal é necessário ao ser humano. Uma criança pequena que não tenha medo das coisas pode parecer encantadora, mas corre muito mais riscos e tem muito mais chance de se acidentar que outra “medrosa”. Ter receio significa reconhecer os próprios limites e agir de forma adequada em função deles.
A ousadia fica bem em filmes de ação, quando o herói quase sempre vence, combinando suas capacidades a uma boa dose de sorte. Pode, contudo, ser até irresponsável, quando alguém compromete a sua segurança e a dos demais com um gesto ousado. Nossa sociedade, que idolatra o êxito, está sempre exaltando a ousadia dos vencedores. Fala-se muito hoje em dia nas startups, pequenas empresas abertas por inovadores, que se tornaram “unicórnios”, isso é, ficaram milionárias em pouquíssimo tempo. Elogia-se a criatividade e a ousadia desses empreendedores, mas raras vezes se fala que apenas um em cada cinco novos negócios costuma ir para a frente – e os que se tornam milionários são tão raros que recebem justamente o nome de unicórnios.
Sob esse ponto de vista, um certo medo é condição para uma atitude prudente. O culto à ousadia faz parte de uma certa ideologia neoliberal que considera normal deixar os que “não dão certo” pelo caminho, enquanto os vencedores ficam com todos os frutos. O receio que refreia a ousadia e orienta a prudência é desejável. Nosso problema surge justamente quando o temor paralisa a ação e nos impede até mesmo de tomar posições sensatas.
Quando o medo domina
O stress, um dos maiores problemas da sociedade atual, tem um componente biológico interessante. Na natureza, um animal que encontra seu predador precisa fugir rápido. Seu medo desencadeia uma série de reações fisiológicas, que aceleram os batimentos cardíacos e aumentam a atividade muscular. Algumas espécies de macacos lançam fezes contra o predador, tentando repeli-lo. Nós, seres humanos, quando nos sentimos intimidados, temos reações fisiológicas semelhantes. Na maioria dos casos, porém, sair fugindo não é uma solução para o problema (muito menos atirar fezes em outras pessoas). Assim, a reação que seria útil na natureza não só se torna inútil na civilização, como – ainda pior – causa um desgaste orgânico que traz mais dificuldades à pessoa.
O medo, dessa forma, deixa de ser um fator de proteção e se torna um problema em nossas vidas. O mundo civilizado não é menos perigoso que a natureza selvagem – só mudam os perigos. Atravessar uma rua movimentada, ir a uma festa noturna e voltar de madrugada, abrir um negócio, lidar com um chefe ou um cliente truculento, mandar os filhos para a escola… Se paramos para pensar, as atividades mais corriqueiras de nosso cotidiano carregam uma certa carga de perigo. Deixar-se dominar por esses perigos paralisa a vida e intoxica a alma.
Tanto a ousadia imprudente quanto o receio descontrolado são danosos. Porém, enquanto a ousadia imprudente costuma ser eufórica e exultante, o temor descontrolado nos angustia e deprime. Os jovens se encantam com a ousadia e têm aversão ao medo. Os políticos demagógicos e os líderes ideológicos costumam se apresentar como ousados, enquanto instilam o receio do outro em nossos corações.
Um obstáculo ao diálogo
O medo do outro é um dos maiores obstáculos ao diálogo e à reflexão. Quando temos receio de uma situação, canalizamos toda a nossa energia e todo o nosso intelecto para fugir do perigo. Não restam recursos para procurar entender o outro ou para discernir racionalmente quais são as verdadeiras dimensões do perigo. Fake news frequentemente exploram nossos temores. Desse modo, se torna mais difícil para nós perceber as inverdades apresentadas.
O medo nos fecha em nossos próprios grupos, que se tornam guetos, “bolhas”, onde nos sentimos seguros porque só reafirmamos ideias consensuais entre nós, todos agimos segundo um mesmo código de conduta, só ouvimos aquilo que queremos ouvir. Onde impera o medo, não existe o diálogo, nem um verdadeiro anúncio missionário. O medo, particularmente das ideologias e das posições políticas, numa sociedade plural e polarizada como a nossa, vem acompanhado pelo ressentimento e pela raiva do outro.
A coragem dos pobres de espírito
Curiosamente, o medo acompanha a riqueza. Imaginamos que quanto mais temos, mais seguros estamos. Em termos muito objetivos, isso é verdade. Mas, em termos subjetivos, frequentemente se dá o inverso. Quem muito tem, muito pode perder – e o receio da perda passa a controlar a alma. Assim, em nossa sociedade, vivemos num contínuo frenesi por segurança material, que nunca é conquistada, pois quanto mais temos, mais percebemos o perigo da perda imprevista, causada por um negócio infeliz, uma demissão imerecida, um acidente ou uma doença inesperada.
Por isso, existe uma coragem que é própria dos “pobres de espírito”, no sentido dado a essa expressão nos Evangelhos. O pobre de espírito é aquele que, mesmo possuindo, sabe que nada é seu, que tudo é graça e que, mesmo na aflição, a graça não haverá de faltar. Sabendo-se limitado, é prudente; mas sabendo-se acompanhado por Deus, não se deixa levar pelo medo.
Um coração aberto ao fascínio pela realidade
A prudência é uma virtude, como lembra o Catecismo da Igreja Católica (CIC 1806), mas o temor descontrolado é um pecado que nasce da falta de confiança em Deus. Numa mentalidade agnóstica, hegemônica em nossos dias, não é de se admirar que as pessoas vivam entre a glorificação de uma ousadia ilusória, até inconsequente, e a dominação dissimulada do medo. Enquanto a ousadia é cantada e louvada, mas praticada por poucos na vida adulta, os receios lançam a muitos na angústia e na insegurança diante da realidade.
O medo não nos permite desfrutar os encantos da vida, o fascínio pela diversidade de dons que o Senhor nos deu, o prazer do encontro sincero com o outro; pois tudo fica obscurecido pela insegurança e pelo ressentimento. O coração amedrontado se enche de aflição e raiva, indecisão e angústia. Não é à toa que os papas nos convidam com tanta insistência ao destemor que nasce da entrega da própria vida a Cristo.
Que possamos ter a mentalidade livre de todo receio que caracteriza os verdadeiros pobres de espírito e construir, para nós e nosso filhos, uma cultura da esperança que não decepciona, onde nossos irmãos e a própria realidade são sinais de amor e fascínio, não de insegurança e medo.
Francisco Borba Ribeiro Neto
(Originalmente publicado em Aleteia)