A família diante de nossa fobia às contradições

Poucas coisas nos horrorizam tanto quanto nossas próprias contradições. Sabemos que somos todos pecadores, mas nos parece terrível constatar que não fazemos o bem que queremos, mas sim o mal que não queremos (cf. Ro 7, 19); ou que nosso “eu real” nunca consegue estar à altura do nosso “eu ideal”. Não aceitamos a imperfeição dos demais, que não conseguem (ou pior, nem mesmo desejam) nos amar e respeitar como acreditamos merecer – mas também não aceitamos nossa própria imperfeição, que nos diminui aos nossos próprios olhos e aos olhos dos demais. Às imperfeições dos outros, queremos condenar ou usar como justifica para as nossas próprias. Às nossas imperfeições, queremos negar ou apresentar como responsabilidade de outros.

Diante das frustrações, alguns assumem uma posição autoritária e não querem reconhecer os próprios erros nem se deixarem questionar em seus valores. Outros querem condenar a todos, pois não aceitam que seus problemas são singulares, que nem todos enfrentam as mesmas dificuldades e as mesmas dores. Os autoritários tendem a infernizar a vida daqueles que estão próximos. Os revoltados tendem a desorientar aqueles que os escutam. Necessário salientar que existe uma autoridade que ajuda a crescer e uma revolta que é necessária para mudar o que está errado – mas não estamos nos referindo aqui a essas manifestações quando são benéficas.

No fundo, essas coisas não deveriam nos escandalizar – seja nos outros, seja em nós mesmos. Fazem parte da natureza com a qual Deus nos fez. O escândalo gera raiva e frustração, impede um raciocínio preciso e a tomada de decisões justas. Reconhecer os erros é o primeiro passo para buscar o perdão e caminhar rumo à virtude – mas a dor pela culpa e pelo pecado precisa do unguento da misericórdia, não do aguilhão da raiva (contra si próprio ou contra o outro).

A família é um problema…

Essas reflexões me ocorreram ao ouvir um podcast sobre família que me foi enviado. Nele, uma influencer e um psicólogo discutiam sobre a desnecessidade da família – ou sobre a necessidade de um outro modelo de família, que rompesse totalmente com o atual. Nas falas, iam se amontoando uma série de falhas familiares, algumas bem características de casos específicos, outras mais ou menos gerais (afinal, todas as famílias são formadas por seres humanos falíveis, algumas são muito melhores, outras muito piores, mas nenhuma delas é “perfeita”). A somatória das falhas, deixadas sem solução, apontavam para um inevitável “fracasso” da família tradicional e a necessidade de um modelo alternativo – que não se chegava a esboçar claramente, pois o fato é que todas as “famílias alternativas” que temos por aí são variações do mesmo tema: pai, mãe e filhos.

A questão familiar, em nossa sociedade, contempla duas vertentes: aquela material, que inclui os aspectos econômicos e a organização da vida concreta; e a cultural, que inclui as subjetividades, os valores e a forma de conceber as relações afetivas. As duas são problemáticas e se relacionam. Muitas famílias, por exemplo, sofrem com a desestruturação decorrente da pobreza e da falta de opções para viver com dignidade; outras sofrem por uma concepção individualista ou pelo autoritarismo dos pais; muitas vezes a desorientação afetiva e moral dos filhos decorre da impossibilidade de serem acompanhados pelos pais, forçados pelas condições econômicas a jornadas de trabalho longas e estafantes.

Contudo, quando mídias e redes sociais se põem a questionar a família, o aspecto mais discutido é de natureza afetiva e relacional. O quanto as famílias são responsáveis pelos desajustes que exibimos todos os dias? Os valores transmitidos em seu seio são realmente necessários para nossa realização? Até onde vai o amor verdadeiro e onde começa o autoritarismo sufocante?

… mas ainda é a melhor solução

A família é o primeiro âmbito no qual nos damos conta das relações afetivas que nos cercam e é também o âmbito onde essas relações atingem seu clímax. Nunca antes, em uma sociedade, se teve tanta liberdade para amar quanto temos na nossa. Fazemos questão de dizer que todas as formas de amar são válidas. Mas, diante de toda essa pretensa liberdade, descobrimos estarrecidos que não sabemos amar, que muitas vezes não conseguimos ir além de uma remota intuição do que seja o amor, que muitas vezes nossa única experiência de amor é um buraco aberto em nosso coração – do qual sai um clamor incessante por preenchimento. Nesse contexto, é evidente que a instituição familiar seja dramaticamente questionada o tempo todo.

Com uma ironia “chestertoniana”, poderíamos dizer que não é ela que falhou, foi o mundo que falhou e continua a esperar dela uma solução. Quanto maior a responsabilidade, maiores as consequências de um fracasso. Um bom governo pode fazer maravilhas pelos cidadãos, mas um mau governo gera catástrofes e desgraças. Sendo tão importante, é natural que a família seja culpada de tantas frustrações e desgraças, mas também é aquela para a qual o mundo olha com maior desejo de realização.

O fato é que as pessoas não querem se desfazer das famílias. Ao contrário, todos querem uma família na qual se realizem. Quem ataca a família, no fundo, ataca um modo de ser família, na esperança de encontrar um outro no qual poderá se adequar. Nenhum Estado, nenhum programa político, encontrou uma proposta mais eficiente e integral para responder a todas as necessidades humanas, de proteção, auxílio, afeição e sentido, do que a família.

O desafio – e isso temos que reconhecer – é superar as muitas dificuldades e criar famílias que, mesmo não sendo perfeitas, possam permitir a realização humana de seus membros.

Antes de discutir ideias, testemunhar o amor

Os problemas materiais das famílias podem ser razoavelmente bem solucionados por políticas públicas bem orientadas, com a ação de gestores eficientes e competentes. Mas, quando as questões atingem o núcleo da existência familiar, que são as relações afetivas e todo o complexo de concepções de si mesmo e valores que derivam dessas relações, as soluções passam a exigir a experiência da acolhida e um justo envolvimento afetivo de quem deseja ajudar.

Quem não faz a experiência de perceber-se amado de forma gratuita não consegue entender o que é o amor, nem amar os outros de forma adequada. É verdade que ideologias e interpretações distorcidas podem piorar muito essa percepção do amor – uma vez que ele, sendo humano, é sempre contraditório. Mas a realidade é sempre maior que a ideia. Por isso, a tradição católica insiste tanto no testemunho.

Uma interpretação belicista, que enfatiza as “guerras culturais”, nos induz a imaginar que as ideias podem se sobrepor à realidade. Mas uma interpretação distorcida só pode prosperar porque explora as contradições do ser humano – e porque nós não conseguimos apresentar a gratuidade do amor e sua capacidade de perdão como uma experiência em ato, algo crível.

Se queremos realmente ajudar as pessoas e o mundo a serem felizes, a encontrarem os valores e a riqueza das famílias, temos que estar dispostos a dar o melhor de nós para amar e acolher o outro. É relativamente fácil solidarizar-se com uma criança pobre e desnutrida, mais difícil com um adolescente que se tronou violento por conta do bullying e da falta de perspectivas, muito mais difícil com um jovem autocentrado que parece sempre ter vivido entre mimos e confortos. Mas não importa a quem Deus nos envia. Somos chamados a testemunhar, para cada um, o amor que já recebemos e tentar, no limite de nossas capacidades e das circunstâncias objetivas, ser um sinal do amor que dá sentido à vida.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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O atentado aos estudantes no Texas e a ação policial no Rio de Janeiro: uma reflexão sobre o horror e o mal

Terça-feira, 24 de maio, foi um dia trágico. No Texas, um jovem assassinou 19 crianças e 2 adultos; 23 pessoas morreram numa ação policial do BOPE nas favelas do Rio de Janeiro. De um lado, uma sociedade que, mesmo sendo rica e desenvolvida, não consegue atender adequadamente pessoas com distúrbios psicológicos, onde o acesso fácil às armas de fogo se tornou uma ameaça à população. De outro, uma sociedade extremamente desigual, onde as populações pobres vivem simultaneamente sob a ameaça e o fascínio do crime organizado, onde a polícia age com truculência e a juventude muitas vezes olha o futuro com desesperança.

O horror do mal e a mensagem cristã

Atentados aparentemente fortuitos, perpetrados por pessoas que nos parecem desiquilibradas, são aparentemente mais comuns em alguns países, como nos Estados Unidos, onde ocorreram 213 tiroteios em massa só em 2022! Os atentados em escolas são mais frequentes naquele país, mas também ocorrem no Brasil. Nos últimos cinco anos, tivemos quatro atentados a escolas: Goiânia (GO) em 2017, Medianeira (PR) em 2018, Suzano (SP) em 2019 e Saudades (SC) em 2021.

Diante desses episódios, a pessoa de fé não consegue deixar de repetir a pergunta de Bento XVI no Campo Nazista de Extermínio de Judeus em Auschwitz-Birkenau: “Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?”. Para os diretamente envolvidos nas tragédias, palavras de consolo pouco adiantam. A solidariedade mais efetiva frequentemente se dá pela oração e, em alguns momentos, por um acontecimento inesperado no qual se vislumbra com mais clareza a presença da própria Misericórdia.

No Catecismo da Igreja Católica, encontramos uma interessante citação de Santo Agostinho: “Deus todo-poderoso […] nunca permitiria que qualquer mal existisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso e bom para do próprio mal, fazer surgir o bem” (CIC 311). Vivemos nossa fé na esperança dessa revelação da bondade última de Deus, alicerçados num Acontecimento que de alguma forma já se faz presente entre nós, dando força para o presente e perspectiva para o futuro (cf. BENTO XVI. Spe salvi, SS 7-9).

Entender o mal, para saber que caminhos seguir

Ataques a escolas e atentados em locais públicos parecem ser cada vez mais frequentes. Em parte, isso se deve a condições propícias para a divulgação desse tipo de crime. São acontecimentos relativamente raros, mas de grande impacto midiático. A divulgação dos casos, dando notoriedade aos assassinos, e um certo incentivo a atos de violência nas redes sociais e em certos âmbitos da internet criaram um clima que estimula certas pessoas a realizarem tais atos. Isso não quer dizer que se tornam assassinas só por isso, mas esses estímulos podem induzir a manifestação de um comportamento agressivo.

O adensamento populacional e a forma de vida moderna reduziram em muito as oportunidades de encontro e os espaços de convivência. Em meio à multidão, estamos muito mais solitários que nossos antepassados em suas aldeias e comunidades. O anonimato e a aparente irrelevância pessoal acompanham a solidão. Ao mesmo tempo, os ideais de autonomia e autorrealização criaram como que uma obrigação de sucesso e diferenciação, particularmente entre os jovens. Ser um “looser” (perdedor) é a maior desgraça que pode acontecer a um deles.

Diante dessa contradição, da sensação de ser irrelevante, “descartável”, frente à necessidade de se tornar reconhecido e importante para ser amado e valorizado, passam a pulular na sociedade comportamentos extravagantes e grupos de desajustados. Campanhas de ressentimento e ódio nas redes sociais estimulam mais ainda a violência.

Os estudos mostram que os perpetradores de ataques a escolas frequentemente eram jovens tímidos e inseguros, com dificuldade para fazer amigos e sujeitos ao bullying por parte dos colegas. Frequentemente vem de contextos familiares “disfuncionais”, com pais violentos ou ausentes, traumas de infância, inaptidões ou marginalização social. São jovens que quase sempre têm dificuldade de encontrar um sentido e uma esperança na vida. Se julgam incapacitados de terem uma vida normal e procuram culpados para sua condição, podendo atribuir essa culpa a pessoas sem relação com sua história de vida. Importante observar a maioria dos jovens com esse perfil não se torna um assassino violento. Tomarão outra direção na vida e superarão, ao menos em parte, seus problemas.

Como enfrentar o mal?

Como poderemos nos proteger do mal? Como proteger aqueles que amamos? Essa é uma das perguntas mais fundamentais que todos ser humano faz ao longo de sua vida. Programas de saúde, seguradoras e empresas de segurança patrimonial existem e proliferam justamente por causa disso. Mas, conforme lembram os Salmos, quem confia nas próprias forças e nos recursos humanos para garantir sua segurança está se iludindo (cf. Sl 20, 31, 84). Essa não é uma afirmação derrotista, mas um sadio realismo que nos liberta de nossos próprios limites. Aquele que confia verdadeiramente no Senhor não se imobiliza diante dos desafios, mas pode analisá-los com mais tranquilidade e enfrentar as tragédias – quando ocorrem – com mais esperança.

Famílias bem formadas, em condições de acompanhar a vida dos filhos, e um ambiente sadio para crianças e jovens são as melhores defesas contra esses atentados. Mesmo isso não cria uma garantia que essas tragédias não acontecerão em nossos lares ou nossa comunidade. Alguns dos assassinos, nesses ataques a escolas, vinham de famílias consideradas bem formadas e viviam num ambiente sadio. Porém, o investimento nas famílias e no ambiente em que vivem os jovens, quando bem-feito, sempre ajudará a construir um mundo melhor.

Um olhar mais amplo sobre a segurança pública

As diferenças entre as duas realidades, do atentado no Texas e das mortes no Rio de Janeiro, ajudam a compreender que não se pode conquistar a segurança pública apostando na violência, seja pela truculência policial, seja pela ilusória garantia de autodefesa carregando armas. Nossa segurança é o fruto do “desenvolvimento humano integral”, que alcança todas as pessoas, em todas as dimensões de sua vida. Melhoria das condições socioeconômicas, acolhida tanto material quanto afetiva dos jovens, educação aos valores, maior eficiência da polícia e do sistema judiciário, recuperação e reinserção dos criminosos – são muitos aspectos da questão, todos agindo em conjunto.

O debate sobre o porte de armas, independentemente do direito de cada um de nós à autodefesa, tende a ocultar a necessidade de uma ação eficaz do Estado para garantir a segurança. A ênfase nos condicionamentos socioeconômicos muitas vezes oculta tanto a importância da liberdade e da responsabilidade pessoal, quanto as dificuldades enfrentadas pelos agentes da lei. Necessitamos de uma visão integral do problema, que considere todos seus aspectos, iluminados pela justiça e pelo amor.

Encontrar soluções para os problemas de segurança pública não é tarefa da Igreja. Contudo, como observou Bento XVI, a Igreja não pode deixar de se interessar por esta temática, uma vez que a busca da justiça e a promoção da civilização do amor constituem aspectos essenciais da sua missão de proclamar o Evangelho de Jesus Cristo.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Os desafios para construir uma família

Não é preciso recorrer a dados estatísticos, análises econômicas ou reflexões sociológicas para perceber que formar uma família é cada vez mais difícil no Brasil. Todos os brasileiros que já têm família, ou que estão tentando constituir uma, experimentam as dificuldades na própria pele. No contexto eclesial, é muito comum se ouvir falar de ideologias contrárias à família. Elas de fato existem e estão disseminadas em nossa sociedade, mas frequentemente os maiores perigos não estão tão evidentes, pois de certa forma já nos acostumamos a eles.

As ameaças no campo socioeconômico

Atualmente, a crise econômica, as dificuldades do mercado de trabalho, os custos crescentes com educação dos filhos e saúde são os maiores desafios para aqueles que estão formando ou desejam começar a formar uma família. Uma parcela muito pequena de brasileiros jovens pode se gabar de uma situação socioeconômica consolidada, sem apertos financeiros, com segurança para o futuro. Os jovens não têm dinheiro para se casar, os pais fazem árduos esforços para garantir o sustento, a educação e a segurança dos filhos e depois não conseguem estar tão perto deles quanto gostariam e deveriam.

Não estamos falando aqui de luxos ou gastos supérfluos. O valor mínimo de uma remuneração justa é aquele que permite que os adultos possam dar a seus filhos uma educação e uma qualidade de vida equivalente àquela que tiveram. É natural que todo adulto queira dar a seus filhos um pouco mais do que recebeu ou pelo menos as mesmas oportunidades que teve na vida. Hoje em dia, frequentemente, mesmo que os pais tenham ganhos satisfatórios, o tempo de deslocamento, o trabalho fora do expediente convencional, a pressão por resultados e a insegurança quanto ao futuro causam um desgaste psicológico e um consumo de energia que dificultam sua presença junto aos filhos.

Com raras exceções, as escolas públicas não se apresentam como opções desejáveis para as famílias. Fora das políticas de quotas, as taxas de ingresso de alunos de escolas públicas em boas universidades são muito baixas. Assim, o custo da escola se tornou um fator limitante para o número de filhos e um fator de desgaste crescente para os pais. O sistema público de saúde também não transmite confiança e os planos de saúde são caríssimos – onerando ainda mais as famílias, particularmente no caso de seus idosos, que utilizam mais esses serviços.

O desafio ideológico

Além disso, as ideologias dominantes em nossa sociedade não facilitam uma justa compreensão do que deve ser uma família. Fala-se muito na ideologia de gênero, mas muitas outras concepções ideológicas, ainda mais entranhadas em nosso subconsciente, ameaçam a família. O individualismo e a idolatria à autonomia pessoal, o materialismo e a busca do êxito profissional a qualquer custo, a cultura do descarte refletida nas relações interpessoais são, provavelmente, as maiores ameaças culturais à formação da família em nossa sociedade.

As famílias se desenvolvem como espaço de educação ao dom de si e à gratuidade. São tão mais felizes quanto mais seus membros estão atentos às necessidades e desejos uns dos outros e se esforçam pelo bem dos demais. Aprendemos a amar e compreendemos o valor do outro olhando, em primeiro lugar, aos esforços e sacrifícios que nossos pais fazem por nós. Por mais que os noivos se queiram bem, é na doação continua, no perdão mútuo, nas alegrias e dores compartilhadas que aprendem – ao longo de uma vida – a grandeza e a felicidade do amor. Mas o individualismo e o desejo de autonomia fazem com que cada membro da família pense nos outros como funcionais a si, em vez de se pensar como responsável pelo bem dos outros.

Sendo feita por seres humanos falíveis, toda família é cheia de erros e acertos. Quando cada um está atento e se sente, ao menos em parte, responsável pela felicidade dos demais, os erros tendem a ser perdoados e os acertos, a alegrar e encher de gratidão. Quando cada um está centrado em si mesmo, cobrando a própria felicidade dos demais, os erros se tornam insuportáveis, os acertos nada mais que obrigações e a vida familiar se torna infernal.

Ainda que os desafios socioeconômicos sejam objetivos, o materialismo hedonista que domina em nossos dias multiplica nossas necessidades, nos tornando insaciáveis. O sucesso profissional, a ostentação material, os lazeres caros parecem ser quase uma obrigação. O espaço familiar e as relações interpessoais recheadas de gratuidade são os primeiros sacrifícios imolados nos altares dessa idolatria ao êxito mundano. O pior é que não nos damos conta quando somos doutrinados nessa nova religião. Absorvemos essa mentalidade ao vermos propagandas onde personagens elegantes, em ambientes sofisticados, parecem se realizar consumindo produtos caros. A multiplicamos ao distribuir selfies e fotos onde nós mesmos nos apresentamos como vivenciando essas situações, mesmo que isso seja apenas o “flash” de um instante. Ensinamos nossos filhos a seguirem essa idolatria quando lhes dizemos que devem estudar e se esforçar para “se darem bem na vida” – uma admoestação justa, mas que é ressignificada nesse contexto cultural em que vivemos.

Um trabalho político e comunitário

Os obstáculos socioeconômicos à formação das famílias podem ser superados, em parte, com o esforço individual e algumas condições favoráveis. As soluções exclusivamente particulares, contudo, não constroem o bem comum e tendem a gerar outros problemas – como os pais que ganham bem, mas não têm tempo para acompanhar o crescimento dos filhos. Nesse campo, a dedicação pessoal deve ser amparada e recompensada por políticas públicas adequadas. Não se trata do assistencialismo do Estado, como muitas pensam, pois até o chamado Estado mínimo neoliberal depende de decisões e compromissos políticos assumidos por toda a sociedade.

Remunerações justas, horários de trabalho adequados, transportes eficientes, escolas públicas de qualidade, bons serviços de saúde são todos fatores que podem melhorar a qualidade de vida das famílias e ajudá-las. Já existem empresas que procuram se apresentar como “amigas das famílias”, para desse modo conseguir funcionários mais motivados e preparados. Tais empresas precisam, contudo, de políticas trabalhistas que apoiem seu compromisso com a família, ou correm o risco de perderem competitividade em comparação a outras. É todo um conjunto de fatores que depende, de uma forma ou de outra, de decisões políticas adequadas. Family talks, por exemplo, é uma organização voltada à proteção da família, através da atuação junto ao governo e à opinião pública. Em seu site podem ser vistos vários exemplos de ações, tanto no campo governamental quanto no empresarial, para apoiar as famílias.

Já no campo ideológico, leis e regulamentações estatais, mesmo que necessárias em muitos casos, são pouco efetivas. Mentalidades são formadas por convencimento, não por coação. Nesse campo, a ação dos influenciadores e das mídias sociais é particularmente poderoso. Mas é aqui, também, que o trabalho de nossas comunidades se faz mais efetivo e necessário. O testemunho dos mais sábios, a solidariedade nas dificuldades, os ambientes sadios para a convivência dos jovens são os grandes instrumentos que a comunidade cristã tem para enfrentar as ideologias contrárias à família.

Francisco Borba Ribeiro Neto
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Doutrina social da Igreja e homeschooling

Muitos cristãos têm dúvidas sobre a validade do homeschooling, o ensino domiciliar, no qual as crianças recebem a formação escolar em casa. Em primeiro lugar, é preciso entender que essa é uma questão de opção pedagógica, que envolve questões específicas sobre as quais a doutrina social da Igreja não se posiciona. Contudo, ela pode dar algumas contribuições que orientem a reflexão dos pais sobre o assunto.

Educar os filhos, partindo de seus valores, é uma responsabilidade e um direito das famílias, que deve ser respeitado e garantido pelo Estado (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 238-243). Não pode ser uma tarefa exclusiva da família, pois outras instâncias da sociedade sempre estarão envolvidas na formação dos jovens. É inevitável que isso ocorra e a escola deve ser a primeira parceira dos pais no processo educativo. Quando a família e a escola vêm a faltar, total ou parcialmente, a criança se forma “na rua” ou sob a influência descontrolada das mídias sociais, levando frequentemente a péssimos resultados.

Idealmente, famílias e escola deveriam fazer parte de uma única comunidade educativa, que se apoia mutuamente na tarefa de educar os jovens. Nessa situação ideal, mesmo as diferenças entre pais e professores não se tornam uma objeção, mas sim uma ajuda à formação dos estudantes, que aprendem a conviver e discernir diante da pluralidade de posições da sociedade atual. Contudo, pode acontecer das escolas disponíveis ensinarem ideologias e valores contrários à fé cristã. Nesse caso, “cada família juntamente com outras, possivelmente mediante formas associativas, deve com todas as forças e com sabedoria ajudar os jovens a não se afastarem da fé” (Familiaris Consortio, FC 40).

O homeschooling é uma modalidade válida dos pais buscarem educar os filhos segundo seus valores. Cabe ao Estado, seguindo o princípio da subsidiariedade, garantir as condições para que ele seja praticado. Deve, por exemplo, oferecer exames periódicos para que os jovens possam receber os graus equivalentes aos do ensino escolar formal. Como a sociabilização é uma dimensão indispensável ao desenvolvimento da criança, é preferível que os pais se reúnam para que seus filhos possam interagir com outras crianças e outros adultos ao longo de sua formação, mesmo estudando em casa. Além disso, é importante considerar que o ensino domiciliar é uma iniciativa extrema e que muitas outras opções podem ser praticadas para garantir que os filhos compartilhem os valores da família, mesmo num contexto majoritariamente contrário a esses valores.

Em síntese, na educação dos filhos, deve prevalecer a responsabilidade e a liberdade da família e dos próprios jovens.

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A família no Oscar 2022

Para muita gente, a grande decepção do Oscar 2022 foi o prêmio de melhor filme ter ido para “No Ritmo do Coração”, sobre uma família de surdos, ao invés de “Ataque dos Cães”, sobre os conflitos entre um fazendeiro violento, com tendências homossexuais reprimidas, e a nova esposa do seu irmão, com um filho adolescente. As premiações do Oscar não refletem objetivamente o nível artístico de uma obra, dependem de fatores que vão do gosto médio dos votantes na premiação ao poder econômico e político dos estúdios. O crítico de cinema de um grande jornal brasileiro, fazendo eco ao que muita gente deve ter pensado, escreveu que a vitória do melodrama sobre a família de surdos em detrimento do filme que retratava um “cowboy gay”, mostra, na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, “o poderio de seus membros mais tradicionais — isto é, homens brancos, velhos e heterossexuais”.

Pode até ser verdade, mas não deixa de também ser verdade que no Oscar 2022 os dramas (fictícios ou reais) de famílias ocuparam uma posição central. Longe das polêmicas, o ganhador de melhor animação, “Encanto”, também versava sobre os problemas de uma família colombiana extensa (aquela que inclui avós, tios, primos). “Ataque dos Cães” não deixava de ser um filme sobre famílias e os traumas que acontecem dentro delas. O filme que levou o Oscar de melhor ator, “King Richard”, narrava a história do pai das campeãs de tênis Serena e Vênus Willians. O melhor roteiro foi para “Belfast”, reminiscências da infância e da vida familiar de Kenneth Branagh, numa cidade convulsionada por conflitos sociais. No maior acontecimento da noite, o ator Will Smith estapeou o apresentador Cris Rock, por uma piada que considerou ofensiva a sua esposa. Logo depois, declarou “estou parecendo o pai doido […] mas o amor leva você a fazer coisas loucas”… Independentemente do erro de seu ato violento, foi aplaudido (pela declaração de amor à esposa, não pelo gesto agressivo contra o apresentador– é bom termos claro).

Depois do amor romântico, quantos temas renderam mais histórias à literatura e ao cinema que os dramas familiares? Imaginadas quase como ideais ou demonizadas como causa de todas as infelicidades, as famílias são motivo de inspiração e de reflexão artística, científica e filosófica, assim como são fundamentais para a vida social. Ouvimos falar muito das tentativas de destruir a família, mas talvez o mais frequente – nesses casos – não seja exatamente o desejo de “destruir a família”, e sim a tentativa de propor arranjos familiares alternativos (que podem acabar se revelando piores que os originais) em situações nas quais aquele tradicional naufragou. Por isso, mais do que discursos apologéticos, precisamos perceber e anunciar que, não importa as condições e os fracassos, as pessoas continuam ansiando por encontrar a felicidade no seio de uma família.

 

Famílias não são perfeitas

Justamente por ser tão decisiva na formação de uma pessoa, a família está tão sujeita a ataques e críticas. Errar é humano, todos nós erramos, geralmente por falhas das quais só nos damos conta mais tarde e não por má intenção consciente, mas os erros que acontecem nos lares, particularmente durante a formação dos jovens, costumam deixar mágoas e ressentimentos que perduram por toda a vida. A experiência do perdão é natural no seio familiar, mas nem sempre garante que os problemas sejam superados. Tudo isso cria um ambiente fértil para a produção artística, mas também frágil para a convivência humana.

Antigamente, a força da tradição e a autoridade dos mais velhos escondiam a dor e o peso dos fracassos familiares. Eles aconteciam, deixavam profundas feridas no coração das pessoas, mas a instituição família permanecia resguardada das críticas. Aos poucos, as obras de arte, os estudos científicos e a crescente autonomia dos indivíduos foram tornando a sociedade mais consciente dos problemas da família. Infelizmente, isso gerou também uma tendência de “jogar a criança fora com a água suja”. Temos muito mais condições de entender as dificuldades potenciais das famílias e encontrar caminhos para vencê-las, mas, em grande parte das situações, a sociedade foi levada a tentar se livrar da família, ao invés de melhorá-la.

 

Mesmo imperfeitas, as famílias podem nos fazer felizes

Escandalizarmo-nos e vociferarmos pelas ideologias contrárias às famílias não ajuda muito na construção de mais e melhores famílias. Para defender a família, temos que partir do ponto no qual as aspirações mais profundas do coração humano se encontram com a proposta de construção de famílias estáveis e felizes. Muitos imaginam que esse seja um ideal irrealizável. Mesmo entre nós, costumamos ouvir que as famílias só são possíveis pela graça de Deus – o que sem dúvida é verdade, mas no sentido que Ele nos permite construir famílias felizes e não no sentido de que Ele nos permite suportar um calvário inevitável. Outras vezes, não nos apercebemos que nossos elogios à família podem ser até ofensivos para pessoas que carregam profundas mágoas por seus problemas familiares.

Alguns defensores da família agem como o rei que, ao receber a notícia de que seus exércitos tinham sido derrotados na guerra, mandou matar o emissário que trazia as más novas. Se reconhecemos que uma família feliz corresponde aos maiores anseios do coração humano, temos que reconhecer também as muitas falhas que acontecem na convivência familiar, aceitá-las e procurar caminhos de sua superação, não dizer que os problemas não existem ou são apresentados por pessoas mal-intencionadas, que não querem o bem das famílias e das pessoas.

A arte afirma a importância da família mesmo quando a questiona, nos cabe fazer sempre um “exame de consciência”, para saber quais desses questionamentos se aplicam a nossas famílias e às famílias daqueles que amamos, procurando uma conversão que nos permitirá superar os problemas. A partir daí, construiremos lares mais felizes para nós mesmos e nos tornaremos verdadeiros anunciadores da importância e da possibilidade de construção da família em nossa sociedade.

Francisco Borba Ribeiro Neto