Cultura, secularismo e evangelização na ótica do Papa Francisco

As palavras sobre cultura, secularismo e evangelização ditas pelo Papa Francisco, em sua viagem ao Canadá, no discurso às autoridades civis com os representantes das populações indígenas, e na homilia das Vésperas com os bispos e padres, são particularmente esclarecedoras de seu modo de atuar.

A religiosidade, a solidariedade, a capacidade de resistência e de esperança de um povo, para Francisco, estão diretamente vinculadas a sua identidade cultural. Interessante notar que essa é uma posição claramente compartilhada por São João Paulo II. É natural que, para eles, a evangelização tem que ser um processo de inculturação e não de imposição cultural.

Abrir-se ao novo

Na Querida Amazônia (QA 62ss), Francisco se detém nas questões ligadas à inculturação do Evangelho. Quando um povo acolhe o Evangelho, não se repete a cultura do evangelizador, mas se cria uma nova identidade cultural, fruto da ação do Espírito na cultura daquele povo. Por isso “é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre algo de novo” (QA 69).

O secularismo atual, a tendência de eliminar a consciência de Deus na vida cotidiana, cancelando o direito de expressão pública dos cristãos, é a antítese da inculturação do Evangelho. Francisco observa, nas Vésperas rezadas no Canadá, que esse secularismo pode gerar um olhar negativo, que “nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de ‘armadura’ para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: ‘O mundo é mau, reina o pecado’ [… mas Deus] encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo”.

Assim como a inculturação do Evangelho, também o enfrentamento do secularismo implica numa imaginação criativa, que se abre ao novo. Francisco continua: “o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspeto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral”.

Uma realidade que nos pede humildade

O caso canadense é particularmente doloroso para os católicos, pois aconteceu num período relativamente recente e não respeitou princípios de valorização da cultura e das relações familiares que já eram seguidos no trabalho missionário na América Latina desde o período colonial.

Reconhecer o erro e pedir perdão publicamente não deveria ser um problema para os cristãos. A humildade e a contrição de coração sempre foram valores para nós. As tristes consequências dos escândalos de pedofilia mostram na prática o tamanho do erro de uma mentalidade que procurava minimizar e esconder os erros dos católicos. A humildade de pedir perdão não é submissão às coerções do poder, mas liberdade de quem sabe que é a misericórdia de Deus que salva cada um de nós e o mundo.

“Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”. Essas palavras de Francisco, em seu discurso, não são um questionamento ao anúncio evangélico, mas devem abrir nossos olhos para o perigo, sempre presente, de querermos nos adequar “mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

O Papa não se restringe ao pedido de perdão. Lança um questionamento fundamental em nossos dias: o cancelamento cultural, que lê seletivamente a realidade, vendo os pecados dos cristãos, mas não reconhecendo a contribuição da fé, não é uma forma atual de “colonização cultural” – que acaba desenraizando a cultura popular e deixando os seres humanos mais à mercê do poder?

Em busca de novos caminhos

O ressentimento e o ódio não poderão construir um futuro melhor, seja para as vítimas dos erros do passado, seja para aquelas dos erros do presente. Citando, no discurso acima, a escritora judia-húngara Edith Bruck, o Papa lembra que “a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar”.

A construção de uma cultura mais humana, que respeite o passado, mas abra um caminho para o futuro — continua o Papa — passa por não se entregar aos partidarismos e “recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim como, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens”.

Para superar o secularismo, é preciso renovar o anúncio evangélico, levando “aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé”, nas palavras do Papa durante a homília de Vésperas. Para tanto, Francisco lembra três desafios: (1) fazer Jesus conhecido, pois “nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio”; (2) dar um testemunho credível, no qual “é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras”, (3) construir a fraternidade, “viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum”.

Não seguirmos o espírito do secularismo

Por fim, nas Vésperas, o Papa lança uma advertência: “Não nos esqueçamos de que só podemos enfrentar esses desafios com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus”.

Francisco aponta um caminho, o mundo laico tem se encantado com ele. Cabe a nós, católicos, compreender o seu exemplo, para nos convertermos ao que o Espírito nos pede nesse momento e podermos ser sinal claro para nossos irmãos.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Imagem a partir de foto de Ross Dunn (Flickr) e pintura de Benjamin West

Evangelizar é preciso

Há muitos anos, quando o tema religião e política não estava tão polêmico como hoje, perguntei a um amigo, militante político ateu, muito consciente e comprometido, qual seria – na visão dele – a principal contribuição que a Igreja poderia dar para a sociedade brasileira. Para minha surpresa, respondeu “converter o povo”. Explicou-me que percebia como as pessoas tinham necessidade de uma resposta religiosa para os problemas da vida e que, quando o que ele chamava de religiões sérias e bem-intencionadas, não conseguiam dar essas respostas, o povo acabava aderindo aos mercadores da fé, que se aproveitavam das expectativas e da ingenuidade dos fiéis, com consequências políticas que ele previa serem catastróficas.

Meu amigo, mesmo não tendo fé, percebeu com grande clareza o significado da religião na vida das pessoas. Rezo para que ele encontre a Cristo nas tantas voltas de sua vida. Enquanto isso, gostaria de salientar duas implicações de sua resposta, que me parecem particularmente importantes para nós.

Todos os seres humanos têm a exigência de Deus em seu coração

Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, em Introdução ao cristianismo (Loyola, 2005), considera que ateus e crentes têm em comum os momentos de dúvida. Por mais fé que tenhamos, sempre existe aquele momento de provação em que nos perguntamos “será que Deus existe mesmo?”. Os ateus também têm momentos em que se perguntam “e se Deus existir de fato?”. As perguntas últimas, a ânsia pelo infinito e pela eternidade, a busca de um amor totalizante e realmente libertador estão inscritas no coração de todo ser humano – quer ele as desenvolva, quer não. Por isso as igrejas são um bem público e, potencialmente, servem a toda a população.

No século XX, a ideologia secularista teve uma grande difusão, chegando a entrar dentro da Igreja. Considerava que essas questões seriam resolvidas pela filosofia e pela ciência, de tal forma que nas populações escolarizadas a religião perderia sua função. Nessa perspectiva, muitos imaginaram que a função social do cristianismo, no futuro, seria apenas a de exortar o povo a uma libertação política ou ao respeito a valores morais fundamentais. O tempo passou e a ânsia por Deus continua viva no coração das pessoas, agora talvez até mais dramática, pois temos que reconhecer que as pregações das grandes religiões têm tido muita dificuldade de responder às novas perguntas e dúvidas que lhes tem sido dirigidas.

Tanto a conversão quanto o abandono da fé dependem da resposta adequada que a religião consegue dar em momentos críticos de nossa vida, como na morte, na doença, no desemprego, na educação de um filho problemático, na relação com um marido bêbado, ou mesmo de êxtase e maravilhamento, como acontece com aqueles que iniciaram sua conversão ao entrar numa igreja, assistir uma missa ou contemplar a beleza do céu.

Ao nos apresentar o amor de Deus, a religião nos liberta do medo do mal e da morte, nos dá a confiança necessária para enfrentar as dificuldades e os desafios da vida, gera a gratidão que nos torna comprometidos com o bem e dispostos a nos sacrificarmos por nossos irmãos. O anúncio desse amor é a mensagem fundamental que a pessoa religiosa deve levar ao mundo – a mensagem que meu amigo, mesmo mantendo-se ateu, reconhecia como necessária ao mundo.

O encontro com Cristo deve abranger todas as dimensões da vida

Muitas vezes nos tornamos vítimas de um debate inadequado sobre a importância da espiritualidade, da moralidade e do compromisso social no anúncio cristão. Uns são acusados de espiritualistas, outros de moralistas e outros de politiqueiros, em função de qual aspecto enfatizam mais em seu testemunho e em sua comunicação do cristianismo aos demais.

É verdade que algumas pessoas se fixam num aspecto do cristianismo e tendem a esquecer os demais, mas devemos ter claro que uma nova evangelização, adequada aos nossos tempos, tem que ser integral, assumindo todas as dimensões do ser humano. “Sou homem: nada do que é humano me é estranho”, a frase do poeta latino Terêncio, não pode ser considerada específica para os cristãos – vale para todos os seres humanos e, de fato, foi considerada lema por pessoas das mais diferentes correntes de pensamento. Contudo, não seria adequado um anúncio cristão que não estivesse imbuída desse espírito.

O grande desafio do anúncio e do testemunho evangelizadores é superarmos os particularismos que são inerentes a nosso temperamento. Cada um de nós, humanos que somos, tendemos a sublinhar alguns aspectos do nosso encontro com Cristo, em detrimento a outros. Alguns de nós, por exemplo, são mais apegados à liturgia, outros ao compromisso social; uns sentem mais necessidade da vivência comunitária, outros preferem um encontro mais privado com Deus… Nossa forma de viver e anunciar, contudo, deve abranger todas as dimensões de nossa vida. Aquelas dimensões que nos são mais distantes devem, inclusive, receber maior atenção de nossa parte, para não serem ignoradas.

A vivência de um cristianismo integral nos obriga ao exercício tanto da caridade quanto do discernimento, nos ajudando a enfrentar os desafios morais, culturais e políticos de nosso tempo, anunciando de forma efetiva o Evangelho.

Nas palavras de Francisco

Em Querida Amazonia, Francisco expressa bem essa questão:

“Como cristãos […] embora queiramos empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida nova […] A autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica. Seria triste se recebessem de nós um código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico, aquele grito missionário que visa o coração e dá sentido a todo o resto […] Eles têm direito ao anúncio do Evangelho, sobretudo àquele primeiro anúncio que se chama querigma e […] é o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado na nossa vida” (QA 62-64).

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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