Quando a segurança pública é insegura

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Na favela de Paraisópolis, em São Paulo, na madrugada de domingo, 01 de novembro, 9 jovens morreram pisoteados em meio à debandada geral provocada por uma ação da Policial Militar, que procurava – num “pancadão” com cerca de 5 mil pessoas – capturar dois fugitivos que haviam atirado contra policiais.

A Polícia e sua corregedoria iniciaram investigações para saber o que aconteceu e já se iniciou a guerra de versões entre a população e os policiais envolvidos. Seja qual for o resultado do inquérito, é evidente que a ação no seu com junto foi desastrosa e trágica.

O incidente se torna particularmente emblemático nesse momento em que o governo federal envia ao Congresso um projeto de lei que estabelece excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), conferindo maior autonomia para que polícia e forças armadas atuem de forma violenta quando julgarem que isso é necessário para manter a ordem pública.

A população brasileira – principalmente a de baixa renda – vive entre duas inseguranças, uma causada pela impunidade de criminosos contumazes e assassinos, outra causada pela truculência policial em aglomerações populares ou contra praticantes de pequenos delitos. Conferir maior autonomia para a ação policial não parece ser uma solução, pois o problema não é de força, mas de efetividade.

Diante dessa situação, parece que estamos sempre oscilando entre a ineficácia de uma violência punitivista e a ineficácia de um pacifismo ingênuo. Mas na verdade as coisas não são assim. Existe uma postura humana, que deveria ser de todos os cristãos, mas não só deles, que ajuda a discernir o que é mais adequado nesses momentos.

Papa Francisco apresenta essa posição como um realismo que procura olhar a todos os fatores da realidade, sem se perder em ideologizações, procurando sempre o diálogo e tendo a paciência histórica necessária para acompanhar o desenvolvimento dos processos (cf. Evangelii Gaudium, EG 221-237).

Quando temos essa postura, vemos que, em primeiro lugar, as investigações sobre situações como essas não devem estar centradas em punir culpados, por mais que isso seja necessário. Como acontece em desastres aéreos, as investigações devem procurar entender o conjunto de acontecimentos que levaram à tragédia, para criar protocolos de ação e programas de treinamento que evitem a repetição da catástrofe. A responsabilização de culpados sempre será necessária, mas se torna punitivismo ineficiente sem esse olhar realista sobre a totalidade dos fatores e essa preocupação de desenvolver procedimentos mais adequados para o futuro.

Muitos especialistas têm se dedicado a esse trabalho e muito se sabe. Mas a população pouco conhece de suas conclusões e os políticos, de ambos os lados, frequentemente preferem discursos ideológicos fáceis ao compromisso continuado com a melhora das condições de trabalho e da eficiência das polícias.

Da parte dos governos, é necessário implementar programas de educação e treinamento dos policiais, estabelecer protocolos de atuação mais eficientes em manifestações e aglomerações populares, fornecer equipamentos adequados. Da parte da população, é importante estabelecer um clima de diálogo e apoio às forças de segurança. O mau policial deve ser afastado, mas o bom policial deve ser apoiado e valorizado pela comunidade que atende.

Poucos de nós temos responsabilidade direta na segurança pública, mas todos podemos colaborar para que haja mais segurança sem haver mais violência.

 

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Imagem: Fear 39, de Dan Gonyea, em Flickr.com

Anseio de justiça e segunda instância

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

No debate sobre a prisão dos condenados em segunda instância, sem dúvida há quem esteja interessado na própria impunidade e na dos amigos ou na condenação dos inimigos, mas – em termos proporcionais – esse é um grupo muito pequeno. A grande maioria de nós, ao debater o tema, se move por um real anseio de justiça. Sabemos que, num contexto de injustiça, a dignidade da pessoa humana não se realiza, nem se constrói o bem comum (cf. Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 201-203; Caritas in veritate, CV 6-7).

 

Um contexto de escândalo e indignação

Quando se discute, no Brasil, a aplicação da justiça e as condenações envolvendo as cortes superiores (como STF e STJ), surge espontaneamente uma certa sensação de escândalo. O que significa a justiça e a garantia dos direitos num País onde apenas 15% dos assassinatos são esclarecidos e 41,5% dos presos são provisórios (pessoas, geralmente pobres, ainda não condenadas)? Problemas como esses não são culpa direta das cortes superiores, envolvem todo o sistema brasileiro de justiça e segurança pública, mas deixam a impressão que o acesso às cortes superiores e o debate sobre prisão em segunda instância só interessa a alguns poucos, ricos e poderosos, pois a grande maioria da população não vê seus direitos contemplados.

Além disso, esse debate vem se arrastando a tanto tempo, com tantas idas e vindas, que vai nos deixando uma sensação de insatisfação e indignação, seja qual for seu desfecho. No primeiro julgamento do caso, em fevereiro de 2016, o placar foi de 7 a 4, favorável à prisão em segunda instância. Em outubro de 2019, o placar foi de 6 a 5, contrário a ela. Tudo mudou porque dois ministros mudaram de posição nesse período. Agora se discute se o Legislativo, por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), pode permitir a prisão em segunda instância. Para tanto, bastaria que após a condenação nessa instância, pudessem haver “ações revisionais” e não “recursos” ao STF e ao STJ. As ações revisionais são propostas depois de finalizado o processo, e a culpa reconhecida (permitindo a prisão). Já os recursos são considerados parte do processo e, portanto, o réu ainda não é definitivamente considerado culpado (e não poderia ser preso).

O descontentamento de quem acompanha as discussões nasce dessa impressão inevitável de que um tema importante para o País está sendo decidido segundo casuísmos determinados por opiniões individuais, interesses partidários ou detalhes semânticos. Uma questão que pode afetar 4.895 presos e determinar o futuro do combate à corrupção não poderia ser decidida desse modo (quem quiser, encontrará uma boa explicação dos aspectos jurídicos da questão em artigo de Ives Gandra da Silva Martins, concorde ou não com as conclusões do autor).

No magistério social católico, o Papa Francisco, por exemplo, sempre condenou veementemente a corrupção (ver, por exemplo, o discurso aos funcionários do Tribunal de Contas italiano e a Meditação Matutina de 17 de junho de 2014). Contudo, num discurso aos juízes do continente americano, condenou tanto a corrupção quanto o “uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais”, que levariam a novas violações de direitos. A posição é a mesma expressa por São João Paulo II na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1998 (ver particularmente o Nº 5). Não se trata de “dar uma no cravo, outra na ferradura”, como diz o ditado popular, mas de reconhecer que o combate à corrupção deve acontecer respeitando-se a justiça. O problema é como fazer isso…

 

Aplicando quatro princípios que nascem da sabedoria cristã

A organização do sistema legal de um País não é competência da doutrina social da Igreja. Nesse sentido, seria inadequada qualquer tentativa de encontrar nela uma resposta à questão da prisão em segunda instância. Contudo, sua sabedoria pode nos ajudar a refletir de forma mais adequada sobre qualquer problema social. Assim, o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (EG), nos apresenta quatro princípios que podem iluminar essa reflexão (cf. EG 221-237).

Francisco lembra que “o todo é maior que a parte” e que “a realidade é mais importante que a ideia”. Juntos, esses princípios nos convidam a sempre analisar as questões procurando observar primeiro o conjunto dos dados reais e objetivos, sem nos deixarmos determinar por casos específicos ou ideias abstratas que não correspondem àquilo que realmente acontece. Ora, se olharmos o conjunto da problemática da prisão em segunda instância veremos que ela nasceu da morosidade dos processos que chegam às cortes superiores, que fazem com que o acesso a essas cortes seja usado para se obter impunidade. Há, por exemplo, casos de assassinos condenados que ficaram soltos até idade avançada e familiares de vítimas que morreram ser ver a justiça ser aplicada porque os réus ficaram à espera do julgamento de todos os seus recursos. Uma situação análoga, talvez menos evidente, é a dos pagamentos de indenizações, precatórios e similares, que são postergados pelas empresas que apresentam recursos seguidos a cortes de mais alta instância. Contudo, este acesso às cortes superiores custa caro e só uns poucos réus têm condições de pagar por ele.

Uma resposta adequada a uma situação tão ampla e complexa não pode ser dada em função apenas dos casos de corrupção julgados pela Lava Jato. Olhar apenas esses casos nos deixa emparedados entre a ânsia punitivista, que mais cedo ou mais tarde castiga tanto culpados quanto inocentes, ou do garantismo formal, que supõe que o respeito aos direitos constitucionais garante da justiça, sem perceber que ele acaba sendo desvirtuado e servindo à impunidade de uns poucos.

A solução, para conciliar preservação de direitos e combate à impunidade, passa pelo aprimoramento dos procedimentos jurídico-legais. Se não se permite a prisão em segunda instância, como definido no momento que esse artigo está sendo escrito, se torna mais urgente ainda que o tempo de tramitação dos processos seja encurtado, que os processos em curso não sejam prescritos por decurso de tempo, etc. Se houver uma nova mudança, que permita a prisão de condenados em segunda instância, o cuidado deverá ser com o risco de processo viciados e condenações injustas.

Para que esse aprimoramento aconteça, “a unidade deve prevalecer sobre o conflito”, como diz outro dos princípios elencados pelo Papa. Poderes constituídos, grupos e organizações sociais devem trabalhar juntos, mantendo um diálogo crítico, que ultrapasse a superficialidade dos conflitos e considere a profunda dignidade do outro (cf. EG 228). Os resultados podem não chegar com a velocidade que desejamos, mas Francisco ainda lembra que “o tempo é maior do que o espaço” – uma construção sólida, ainda que demande paciência e dedicação continua, fará mais pelo bem comum do que respostas imediatistas, contaminadas pela raiva ou por interesses individuais.

 

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Imagem: A justiça, entronizada sob a Sabedoria Divina (Alegoria do Bom e do Mal Governo, de Ambrogio Lorenzetti, em Siena)

A doutrina social da Igreja, o lulismo e o bolsonarismo

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

 

A soltura do ex-presidente Lula gerou uma comoção que lembra, sob certos aspectos, a vitória do presidente Jair Bolsonaro nas últimas eleições. Em ambos os casos, militantes extremados fizeram discursos ufanistas ou catastrofistas, como se aquele fato fosse suficiente para levar o País à salvação ou à perdição. Num momento de grande insatisfação e desilusão com os políticos e os rumos da Nação, é compreensível que esses dois homens públicos passem a representar a esperança ou a catástrofe para uns e outros. Isso não pode levar, contudo, ao endeusamento de um e à demonização do outo. Seria uma idolatria que não corresponde a um espírito cristão e à construção do bem comum.

Nem a fé, nem a doutrina social da Igreja fornecem um manual pronto de ação política. Exigem sempre um exercício pessoal de discernimento. Assim, é natural que existam cristãos com diferentes posturas políticas. O problema não está nas opções partidárias, falíveis como tudo mais que é humano, mas sim em endeusar ou demonizar pessoas e partidos, deixando-se levar por ideologias ou brilhos individuais em vez de buscar o bem comum com realismo e diálogo, tão defendidos pelo Papa Francisco (cf. Evangelii gaudium, EG 34, 84, 231-233, 238-241).

Com certeza existem posturas que condizem mais com o pensamento cristão e outras que condizem menos ou até se contrapõem ao cristianismo e sua visão de pessoa e bem comum. Contudo, perceber quem está mais próximo e quem está mais distante pode não ser tão evidente quanto parece. Podemos entender isso se pensarmos nos cinco princípios irrenunciáveis propostos na Nota Doutrinal sobre Algumas Questões Relativas à Participação e Comportamento dos Católicos na Vida Política (2002): (1) o direito à vida, (2) a proteção e promoção da família, (3) a liberdade – em particular religiosa e de educação, (4) a economia a serviço da pessoa, (5) a construção da paz.

Evidentemente o direito à vida é o mais básico entre todos, mas a vida sofre com muitas ameaças, como o aborto e a eutanásia, mas também a fome, a violência urbana, as guerras, etc. Assim, católicos bem-intencionados, mas partindo de análises opostas da realidade, podem chegar a opções políticas diferentes procurando defender um mesmo princípio.  Os favoráveis às políticas do ministro Paulo Guedes dirão que ele pratica uma economia a serviço da pessoa, porque deseja o desenvolvimento econômico, a geração de empregos e de renda, seus adversários dirão que são políticas contrárias à pessoa, porque irão prejudicar os mais pobres. São polêmicas que não pertencem ao campo da fé, mas que um cristão deve enfrentar se quer comprometer-se com o bem comum. Sem dúvida, alguns estarão numa posição mais justa que os outros, mas a confusão é possível e precisamos nos esforçar sempre para superá-la. Como fazer isso?

Peguemos um exemplo, vindo dos Estados Unidos. Lá, os republicanos costumam ser contra e os democratas favoráveis ao aborto. Mas, nos últimos anos, foram os republicanos que mais defenderam as guerras (como a do Iraque), enquanto os democratas tiveram posições mais pacifistas. De que lado um cristão deveria ficar? O exemplo de Russell Kyrk, um dos maiores pensadores católicos norte-americanos, foi emblemático: ele se aproximou dos republicanos, mas nunca deixou de criticá-los quando achou que optavam pela guerra e não pela paz. Devemos optar pela posição que consideramos mais justa, mas estando sempre prontos a criticar os erros de nossos correligionários e reconhecer os acertos de nossos adversários. E esse é um outro problema da adesão e da condenação absolutas a um lado ou outro: perdemos a sensibilidade de fazer esse exercício crítico, fundamental para um diálogo sincero e para a construção do bem comum.

Nesses momentos, sem dúvida difíceis, temos que fazer opções partidárias e escolhas pessoais, mas sem deixar de entender que nossa esperança vem da experiência do encontro com Cristo e que a construção do bem comum é uma tarefa de todos e não de uns poucos, como lembra Bento XVI na encíclica Spe salvi (cf. SS 24, 30-31).

 

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Imagem: Needpix.com

Liberdade, Respeito e Maturidade – um desafio para a sociedade democrática

Gustavo Santos, Doutor em Teoria Política pela Catholic University of America e mestre em Antropologia Social pela Unicamp. Foi Vice-Diretor Presidente e Gerente de Programas na Oficina Municipal – SP e coordenador de projetos na área de formação política para a Fundação Konrad Adenauer no Brasil. Tradutor de obras e artigos de Russel Kirk e revisor técnico de traduções de obras de Eric Voegelin

 

Recentemente, foi posto em evidência o crescimento de uma concepção errônea e perigosa acerca do relacionamento entre o Estado, a sociedade civil e os grupos religiosos, com implicações graves para o direito humano fundamental de liberdade religiosa. Em Recife, PE, um sacerdote católico teve um inquérito civil aberto contra si na Justiça por um promotor público em função de uma homilia na qual ele alertara os fiéis presentes a respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão N. 26, recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que equipara a “homofobia e a transfobia, qualquer que seja a sua forma de manifestação” ao crime de racismo.

Há mais de um erro grave no curso de ação tomado pelo MP. Para começar, a própria AD N. 26 protege ostensivamente – em nome da liberdade religiosa – o direito de pregar e divulgar o pensamento em consonância com a orientação doutrinária e teológica do grupo religioso a que se pertence (desde que não se configure “discurso de ódio”, incitando à discriminação, hostilidade e violência). Em segundo lugar, é impossível ignorar a ironia de que a ação do promotor público exemplifica perfeitamente o tipo de perseguição ou tentativa de “amordaçamento” sobre a qual o sacerdote alertava em seu discurso.

A Doutrina Social da Igreja nos ajuda a remediar esses erros, em total harmonia com o Estado democrático de direito. A Declaração Dignitatis Humanae sobre a Liberdade Religiosa, que o papa Paulo VI promulgou ao final do Concílio Vaticano II, afirma que a “exigência de liberdade na sociedade humana diz respeito principalmente ao que é próprio do espírito, e, antes de mais, ao que se refere ao livre exercício da religião na sociedade.” (DH, n.1) De fato, a liberdade de ação, protegida pelo Estado como consequência direta da dignidade da pessoa humana, nasce no santuário interior mais íntimo que é a consciência humana, e a crença ético-religiosa é a sua origem primeira.

Esta é a base fundamental do Estado laico, ou seja, um regime que, ao não impor pela força uma forma religiosa ao conjunto da população, deixa as pessoas livres para crerem e agirem conforme suas convicções, desde que não infrinjam o direito de seus semelhantes.

A vivência desses direitos, por sua vez, requer maturidade, tolerância e respeito, expressamente no tocante a opiniões contrárias que, referindo-se a temas muito caros a determinados grupos, podem ao manifestar-se causar sentimentos de incompreensão e hostilidade. Assim são, por exemplo, visões antirreligiosas, que parecem menosprezar as crenças mais importantes dos fiéis, ou considerações sobre a moralidade sexual, que tocam em um aspecto íntimo da vida humana, ligado à expressão da afetividade e, hoje em dia, da própria identidade.

Numa sociedade que quer respeitar a liberdade de consciência e de religião, e a liberdade – a elas indissociável – de expressão, a única maneira correta de lidar com essas diferenças passa pelo respeito ao direito de formular e viver as próprias convicções, ainda que as mesmas pareçam irracionais, arbitrárias, ou até mesmo ofensivas. É somente por meio do diálogo franco que será possível encontrar pontos em comum para possibilitar uma convivência harmônica – e não há diálogo sem que aos dialogantes seja garantido manter suas próprias posições!

 

Imagem: Pixnio.com

Netflix, internet, educação cristã e a sexualidade dos adolescentes

O jornal Folha de São Paulo publicou um artigo, do jornalista Leonardo Sanchez, comentando o aumento de situações eróticas e relações sexuais entre adolescentes nas séries de TV (particularmente a cabo) e as pesquisas sobre como essa faixa etária vive a sexualidade na prática. Em linhas gerais, a matéria mostra que essas séries sugerem uma juventude cada vez mais liberada sexualmente e envolvida em relações sexuais menos tradicionais, enquanto as pesquisas indicam que os jovens – em termos globais – estão reduzindo sua atividade sexual e tendo mais tarde sua primeira relação sexual. À primeira vista, portanto, as séries não correspondem ao que está acontecendo na realidade.

Talvez essas séries retratem mais a juventude dos adultos que hoje as produzem do que a vida dos adolescentes atuais. Também existe uma boa chance de que estejam retratando grupos específicos de jovens, onde uma erotização precoce realmente vem se dando, e não o cenário médio da população mundial. No Brasil, na década de ’90, a série de TV Confissões de Adolescente, recebeu uma crítica nessa linha: estaria levando para o resto do Brasil uma problemática que seria típica dos jovens de classe média e alta do Rio de Janeiro e outras grandes cidades brasileiras.

De qualquer forma, a discussão exposta no artigo mostra que a liberação sexual da segunda metade do século XX não levou a um desregramento sexual incontrolável, como temiam alguns. Mesmo que a atividade sexual entre os jovens de hoje seja maior do que no passado, os próprios parecem tender a criar limites e barreiras, a perceber que uma “liberação geral” não seria boa para eles mesmos. Se recuperarmos algumas lições da teologia do corpo, de São João Paulo II, podemos encontrar algumas explicações interessantes para esse fenômeno:

1. Para o ser humano, sexualidade e afetividade estão intimamente ligados. Um “sexo sem compromisso”, mesmo que fisicamente prazeroso, se ressente de alguma coisa a mais, de um comprometimento integral da pessoa. Assim, para o próprio jovem, uma relação sexual precoce, sem o devido envolvimento afetivo, pode parecer inadequada e insegura.

2. A dinâmica do sexo está intimamente ligada ao dom e ao pudor. Os amantes, no ato sexual, doam toda a sua intimidade um ao outro, algo que não deve ser dado a ninguém que não compartilhe – com o devido respeito e valorização – dessa intimidade. O pudor é justamente a salvaguarda desse dom, que não pode ser distribuído de forma inconsequente. Assim, a relação sexual precoce pode aparecer como uma ameaça à intimidade um do outro, mais do que uma exploração positiva de suas potencialidades.

3. Essa compreensão da sexualidade não deve ser uma imposição social, mas uma descoberta da própria pessoa. Por isso, a teologia do corpo não se trata de uma lista de normas a serem seguidas, mas sim um caminho de investigação para que a pessoa descubra o amor e o sexo em sua integralidade. Trata-se de uma pedagogia, que permite ao jovem compreender o que é mais adequado para si sem passar por experiências existenciais que acabariam se tornando frustrantes ou deprimentes.

 

A situação brasileira

Contudo, as poucas pesquisas sobre o tema no Brasil, segundo o mesmo artigo da Folha, indicam que o comportamento sexual dos adolescentes brasileiros segue uma trajetória diversa daquela mundial. Aqui, os jovens têm a primeira relação sexual cada vez mais cedo e parecem ter cada vez mais relações sexuais. Os especialistas, sempre segundo o artigo, creditam esse fato a uma exposição maior de nossos jovens à internet e outros espaços que induziriam a uma erotização cada vez mais precoce.

Essas suposições apoiam a percepção de que os pais devem acompanhar o que os filhos veem, conhecer os ambientes que frequentam e as companhias coma as quais andam. Contudo, algumas lições a mais podem nascer de todas essas observações:

1. Uma sadia educação cristã, que valorize a integração entre afetividade e sexualidade, corresponde realmente à natureza humana e a nosso desejo de realização. Portanto, nossa primeira preocupação deve ser mostrar a beleza do amor, em sua integralidade, e ajudar os jovens a descobrirem o que é mais adequado para eles em sua caminha pessoal.

2. A vida na comunidade cristã, o contato com adultos que vivem um casamento feliz, com outros jovens que não precisam recorrer à erotização e às drogas para serem alegres e externarem sua afetividade, é um poderoso testemunho que ilumina esse processo de descoberta que cada adolescente deve fazer.

 

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

O Sínodo da Amazônia e o compromisso socioambiental numa sociedade polarizada

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Nas redes sociais, entre os partidos políticos e a imprensa, muita gente quis ver o Sínodo para a Amazônia menos como uma reflexão pastoral católica e mais como um grande embate ideológico. A direita procurava afirmar a supremacia do modelo capitalista atual. A esquerda, a necessidade de um desenvolvimento alternativo, ecológico e inclusivo. Os progressistas mais extremados procuravam retomar uma imagem quase disruptiva de Igreja dos pobres, recuperada da segunda metade do século XX. Conservadores igualmente extremados procuravam barrar o que imaginam ser uma assustadora maré reformista, que se estabeleceu com o Papa Francisco.

 

Os extremismos forçam a divisão

O problema não estava no embate entre direita e esquerda, natural na democracia, mas na instrumentalização da reflexão católica, desfigurando suas características próprias e induzindo a própria comunidade à divisão. A questão também não estava em se buscar uma Igreja para os pobres, mote do próprio Papa Francisco, ou da atenção – sempre necessária – para com a fidelidade à mensagem evangélica. Estava numa autorreferencialidade, muitas vezes marcada por polêmicas do passado, que dificultava a construção de um Igreja para os pobres fiel à ortodoxia, induzindo mais uma vez à divisão.

Os grupos que incentivavam a polarização muitas vezes não estavam discutindo tanto os desafios objetivos da região, mas sim posições mais amplas, algumas de cunho teológico, outras de cunho puramente ideológico. Quando, por exemplo, se discutia a relação entre soberania nacional e ação da Igreja, o debate real era entre os interesses da mineração e do agronegócio tradicionais – frequentemente predatórios para com o meio ambiente – e as práticas alternativas apoiadas pelo Terceiro Setor. Era uma discussão carregada de elementos ideológicos, onde as partes estavam motivadas por posicionamentos políticos numa conjuntura global. Quando se discutia a ordenação de homens casados na região, o tema de fundo era o casamento de padres ordenados no resto do mundo… E assim por diante.

 

As polêmicas, quando justas, se resolvem num caminho de comunhão

O Instrumentum Laboris, texto base para as discussões, acabou estimulando a tensão entre os extremistas, mais entre os que estavam fora do Sínodo do que entre os que estavam participando efetivamente dele. Seu conteúdo estava carregado de propostas e abordagens polêmicas, quase como que testando até onde a Igreja Católica poderia ir no pontificado atual. Os temas, é importante dizer, eram pertinentes, correspondiam a solicitações das comunidades ou posicionamentos de teólogos que atuam na região. Se não houvesse questões polêmicas e propostas arrojadas, não haveria por que fazer um Sínodo, os procedimentos cotidianos seriam suficientes para dirimir as dúvidas. Quem comparar o Instrumentum Laboris com o Documento Final, verá que essas questões vão se encaminhando para um justo equilíbrio, onde o respeito à ortodoxia e a abertura para a mudança coexistem. O próprio processo sinodal – com a insubstituível contribuição do Espírito Santo – tende sempre para esse ponto de equilíbrio.

Nesse contexto, o perigo é que os desdobramentos deste Sínodo fiquem presos a uns poucos pontos polêmicos e não às respostas integrais, como aconteceu naquele sobre a Família, cuja repercussão pareceu se reduzir a um debate estéril sobre dar ou não a comunhão aos casados em segunda união – um detalhe importante, mas pequeno em relação ao desafio de apoiar a família. Quem ler as chamadas nos jornais dos dias seguintes ao seu encerramento, terá a impressão que a discussão era sobre ordenação de homens casados e diaconato feminino, e não sobre os problemas pastorais e socioambientais dessa extensa parte do mundo. Esses eram pontos polêmicos, em relação aos quais os padres sinodais tomaram posições moderadas: pedem um avanço, mas com reflexões e procedimentos que permitam soluções adequadas tanto à tradição da Igreja quanto às necessidades dos tempos e do lugar.

 

O compromisso socioambiental reafirmado

Visto em seu conjunto, o Documento Final do Sínodo reafirma o compromisso social e ecológico da Igreja na Amazônia, abrindo espaço para novas ações pastorais. O maior foco do texto é com a questão indígena. Num texto com 120 parágrafos numerados, encontramos cerca de 80 vezes as palavras e expressões índios, indígenas e povos ou culturas originais. Como essa atenção para com os índios foi muito criticada no processo de preparação do Sínodo, é importante justificá-la aqui. Em primeiro lugar, essa atenção não nasce de uma preocupação demográfica. A Igreja não se volta aos povos indígenas porque eles são muito numerosos, mas sim porque eles são os mais frágeis na região amazônica. Numa família, os pais amam a todos os filhos, mas têm sempre uma atenção especial para com aqueles que estão mais fragilizados ou sofrendo – e espera-se que os irmãos, inspirados pelo amor que receberam pelos pais, também se voltem para esses mais debilitados.

Além disso, as comunidades indígenas são o maior desafio tanto teológico quanto pastoral para uma evangelização inculturada, isso é, que não se apresenta como dominação cultural, mas como diálogo que permite que a semente do Evangelho brote, de maneira original e fecunda, numa outra sociedade. Nascido no contexto hebreu, difundindo-se depois no mundo helênico, vivendo sempre o ardor missionário, o cristianismo sempre foi uma religião que se inculturava em cada realidade em que chegava. Os relatos e documentos dos missionários mostram que essa não é uma preocupação deste Sínodo, mas uma questão que sempre esteve presente na história da Igreja.

Dois fatores dificultam essa reflexão sobre a inculturação na Amazônia de hoje. O primeiro é a situação de imposição cultural, marginalização e até extinção física em que vivem as populações indígenas. Ao longo da história, os missionários católicos procuraram, na maior parte das vezes, tomar o partido dos povos indígenas, mas temos cada vez mais a percepção da violência cultural e física que exercemos sobre eles, mesmo quando não queremos. O segundo é a crise de valores da própria cultura ocidental, que faz com que duvidemos de nossos valores e da possibilidade de um diálogo construtivo, onde todos sejam enriquecidos e o cristianismo seja assumido como um princípio religioso que valoriza aquilo que existe de mais humano tanto em nossa sociedade quanto na sociedade indígena.

 

Um caminho a construir

Contudo, as reflexões mostraram que não basta dizer “o que fazer”, mas é necessário saber “como fazer”. Nesse sentido, entende-se a proposta de um organismo episcopal regional que acompanhe a efetivação das propostas feitas no Documento. Por exemplo, não basta querer ordenar indígenas casados, o problema é como capacitá-los e apoiá-los em suas comunidades distantes. Não basta querer uma evangelização inculturada, o problema é como fazê-la quando nossa sociedade sufoca as culturas indígenas.

 

Veja também: Encontrar uma posição justa nas polêmicas sobre o Sínodo para a Amazônia     Nem direita nem esquerda, mas sim integral     A doutrina social da Igreja e o realismo nos dados sobre desmatamento     Doutrina social da Igreja e políticas públicas em meio ambiente     Imagem: Ismael Martinez Sanches / Ajuda à Igreja que Sofre.

 

 

Da Venezuela ao Chile… e pelo mundo

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Os violentos protestos que vêm ocorrendo em vários países têm dado mais munição para os embates ideológicos brasileiros. A direita cita a Venezuela, governada pelo “socialismo bolivariano”, recorda as manifestações dos governos de Dilma e Cristina Kirchner; a esquerda, os recentes protestos no Chile, ícone da agenda liberal na América do Sul, e as reações aos “choques neoliberais” na Argentina e no Equador.

 

Não aos esquemas ideológicos, não à violência

Respostas simplistas, que enaltecem um lado do espectro ideológico e condenam o outro, não respondem aos desafios do presente. “Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas […] mas esta promessa ideológica demonstrou-se falsa”, nos lembra Bento XVI. É preciso reconhecer que a realidade não pode ser enfrentada com esquemas ideológicos, palavras de ordem e frases de efeito.

O uso da força, seja por parte dos manifestantes, seja por parte do governo, também não ajuda a resolver os problemas. Uma violência provoca outra, numa espiral cada vez mais perigosa e infrutífera. A solução dos problemas exige reflexão, amor e sabedoria (cf. Caritas in veritate, CV 7-8), exatamente o oposto da raiva e da agressividade. É um recado implícito que essas manifestações dão para os ativistas de nossas redes sociais, cada vez mais dedicados a semear discórdia e condenar os que pensam diferente.

Se olharmos no panorama mundial, veremos que os protestos mais ou menos violentos também vêm acontecendo em países ricos. Podem ser por razões socioeconômicas, como na França; raciais, como nos Estados Unidos; ou políticos, como em Hong Kong.

 

A dignidade aviltada

Se partirmos dos ensinamentos da doutrina social da Igreja, veremos em todos um ponto em comum: a dolorosa sensação de que a dignidade da pessoa humana está sendo aviltada. Não se trata apenas de enfrentar crises econômicas e privações, mas de sentir que os governos não estão levando em consideração as necessidades e expectativas da população, que existe descaso e injustiça, desrespeito aos valores e ao sentido da vida.

A dignidade pessoal é um bem maior, que norteia – de forma implícita ou explícita – as decisões de cada um de nós (ver Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 144ss). Toda vez que os governos não valorizam adequadamente esse valor, seja por qual motivo for, defrontam-se com a resistência popular. Em períodos que demandam grandes sacrifícios sociais, a força dos governos reside justamente em mostrar que os esforços são em prol da dignidade de cada um, que servem à construção de um bem maior, que é para todos.

Contudo, a mera indignação, ainda que justa, não gera o novo. Não basta reivindicar ou protestar, são necessárias alternativas viáveis a serem seguidas. A falta dessas alternativas faz com que a indignação se esgote em convulsões sociais, sem conduzir a uma mudança para melhor.

Nesses momentos, torna-se ainda mais fundamental uma solidariedade atenta às dificuldades dos demais, capaz de uma verdadeira empatia com o outro (ver Evangelii gaudium, EV 59-60). Infelizmente, muitas lideranças parecem ver apenas os problemas econômicos ou suas próprias ideologias, sem considerar as pessoas concretas.

A solidariedade, para encontrar caminhos, precisa da sabedoria que se funda no diálogo – pois ninguém tem sozinho a resposta para todos os problemas sociais.  “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo”, lembrou-nos o Papa Francisco em sua visita ao Brasil.

Finalmente, é necessário valorizar aqueles que já estão gerando soluções novas dentro desses contextos difíceis. Construir com eles, apoiando sua criatividade e seu empreendedorismo, seja na área econômica, seja na social, é o que a doutrina social da Igreja chama de ação subsidiária do Estado, que ajuda (subsidia) a sociedade, sem se impor a ela (CDSI 185ss, CV 57-58)

Sem esses passos, protestos infrutíferos e raivosos serão cada vez mais comuns.

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A cruz é uma experiência sempre provisória

Ana Lydia, professora da UNIFESP, fez doutorado em Nutrição na Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do MIT e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Quando nós sofremos por algum motivo, fazemos quase sempre a experiência enganosa de que este sofrimento parece que nunca vai acabar. Parece que o nosso afundar-se ali naquela dor é definitivo, sem fim. E isso é um sintoma do próprio mal que nos assola, seguramente colocado ali pelo pai das trevas. No entanto, não é assim, pois no mundo que Deus criou e governa, a cruz é invariavelmente uma passagem, uma experiência provisória.

Um bispo italiano, Dom Antonio Bello, em uma de suas homilias quaresmais, escreveu algo lindo e verdadeiro sobre a provisoriedade da cruz: “Na antiga catedral de Molfetta, havia um grande crucifixo de terracota. O pároco, esperando para resolver onde colocá-lo definitivamente, encostou-o na parede da sacristia e colocou um cartão com a inscrição: ‘Localização provisória’. A escrita, que a princípio eu pensei que fosse o título da obra, parecia providencialmente inspirada, ponto de eu implorar ao pároco que não retirasse por qualquer motivo o crucifixo de lá, daquela parede nua, daquela posição precária, com aquele papelão amarelado”.

Localização provisória. Eu acho que não existe uma fórmula melhor para definir a cruz. Minha, sua cruz, não apenas a de Cristo. Coragem, você que sofre pregado em uma cadeira de rodas. Anime-se, você que sente as dores da solidão. Tenha confiança, você que bebe do cálice amargo do abandono. Não se desespere, doce mãe que deu à luz um filho malformado. Não maldiga, irmã, quando você se vê sendo destruída dia após dia por um mal que não perdoa. Seque suas lágrimas, irmão, você que foi esfaqueado pelas costas por aqueles que pensou que eram seus amigos. Não puxe os remos no barco, você que está cansado de lutar e que acumulou decepções sem fim. Não se abata, irmão pobre, se ninguém o ajuda, e as pessoas em vez de pão, o forçam a engolir pedaços de amargura. Não desanime, amigo desafortunado, que em sua vida viu tantos navios partirem, e você sempre permaneceu no chão. Coragem, sua cruz, mesmo se durasse toda uma vida, é sempre “local provisório”. O calvário onde está plantada não é uma área residencial. E o terreno desta colina, onde seu sofrimento é consumido, nunca será vendido como terreno de construção.

O Evangelho nos convida a considerar sempre a natureza provisória da cruz. “Do meio-dia até as três da tarde, a escuridão caiu sobre toda a terra.” Do meio-dia às três da tarde. Aqui estão as margens que delimitam o rio das lágrimas humanas. Do meio-dia às três da tarde.

Só por esse período foi concedido ao Senhor ficar no Gólgota. Fora daquele horário, é proibido estacionar. Após três horas, haverá remoção forçada de todas as cruzes. Uma estada mais longa também será considerada abusiva por Deus. Coragem, irmão que sofre. Há, também, para você a deposição da cruz. Coragem! Daqui a pouco, as trevas logo darão lugar à luz, a terra recuperará suas cores originais e o sol da Páscoa eclodirá entre as nuvens que fogem.

O que mais podemos desejar a todos os que sofrem (e são todos!) é que se lembrem de que a cruz é sempre provisória. Não deixe de avisar a todas as pessoas que você encontrar!

Publicado originalmente no jornal O São Paulo, edição de 16/10/2019.

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A cultura da misericórdia

Marcelo Cypriano Motta, advogado, foi contemplado com a Medalha “São Paulo Apóstolo” 2018 e atua na “Promoção da Cultura da Misericórdia” junto ao Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP

 

Neste início do novo milênio, diante do vasto horizonte pastoral da Igreja, “Partir de Cristo” foi a grande e renovada indicação de S. João Paulo II (cf. Novo millenio ineunte, NMI 29-41), visando “suscitar em nós um dinamismo novo” e permitir avançarmos para águas mais profundas (cf. Lc 5,4 ss.).

 

Partir de Cristo Misericordioso

Partir de Cristo pressupõe um verdadeiro cristocentrismo compreendido desde o próprio Mistério de Cristo, da “economia do mistério” (Ef 3,9), cuja essência é o “desígnio benevolente” do Pai, desígnio de amor e infinita misericórdia (cf. Ef 1,9). Partir de Cristo significa, em primeiro lugar, contemplar esse mistério no coração traspassado do Crucificado, do qual jorram sangue e água (cf. Jo 19,34 ss.), pois é “a partir desse olhar contemplativo que o cristão encontra o caminho do seu viver e amar” (cf. Bento XVI, Deus caritas est, DCE 12).

O Papa Francisco declarou esperar um “Pentecostes teológico”, no qual, antes de tudo, deve-se partir do Evangelho da misericórdia, da “centralidade da misericórdia”, vez que “a teologia depois da Veritatis gaudium é querigmática, uma teologia do discernimento, da misericórdia…” (Discurso de 21 de junho de 2019).

Isso só pode acontecer mediante a via de sempre do cristocentrismo, isto é, do mistério de Cristo como um desígnio eterno de misericórdia: “De fato, o ‘Original’ que à sagrada doutrina importa conhecer antes de tudo e, portanto, o primeiro objeto de interesse teológico, é o Crucificado glorioso predestinado desde sempre, e, portanto, sua vida com seus acontecimentos, nos quais ocorre a manifestação detalhada do eterno plano gerado e motivado pela divina misericórdia. Neste sentido, a teologia cristã é originalmente crística” (BIFFI, I, Um método infalível para renovar a teologia. L’Osservatore Romano, 27 de julho de 2010).

Mas como no tempo da Igreja toda a economia da salvação é uma economia sacramental, também a economia da misericórdia exige uma abordagem teológico-litúrgica. Bento XVI, em seu Discurso inaugural da V Conferência de Aparecida, afirmou: “Só da Eucaristia brotará a civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe para que, além de ser o continente da Esperança, seja também o continente do Amor!”. Para ele, “transformar-se em amor é a única adoração verdadeira” (Opera Omnia, Teologia della Liturgia, vol. XI, p. 58, LEV, 2010), uma humanidade que, transformada em amor, é uma glorificação viva de Deus, o culto verdadeiro que Deus espera. O homem vivo – isto é, que se tornou glória para Deus – é ele mesmo adoração, sacrifício.

É uma compreensão cristocêntrica, que se dá em três níveis ou três passos:  mistério, celebração e vida (cultura). A partir dessa fórmula podemos igualmente dizer que uma cultura da misericórdia brota da Eucaristia, até porque o Documento de Aparecida caminha sempre no sentido da transfiguração da cultura. Na verdade, é a “cultura” que está em situação escatológica, portanto, a anelada civilização do amor, que se coloca como a meta da Doutrina Social da Igreja, depende, obrigatoriamente, do florescimento de uma cultura da misericórdia, se quisermos ser coerentes com tudo o que foi exposto acima.

Para que amadureça como cultura, essa percepção cristocêntrica da misericórdia precisa articular-se – metodologicamente – como experiência vivida do Mistério (o tempo), momentos litúrgicos (o culto) e construção de mentalidades e ações concretas no mundo (a cultura). Assim caminhamos para cada vez mais “Partir de Cristo Misericordioso”.

 

A perspectiva da Misericórdia

Em que propriamente deve consistir uma perspectiva da misericórdia que possa auxiliar e orientar a construção de uma cultura da misericórdia na Igreja e no mundo, desde o coração do Evangelho? Santa Teresa do Menino Jesus nos oferece uma sublime indicação: “A mim, Ele deu sua infinita Misericórdia e é através dela que contemplo e adoro as outras perfeições divinas!…” (Manuscrito A, Obras Completas, p. 162, Paulus, 2002; os grifos são do original). Esse olhar de Terezinha faz iluminar a centralidade da misericórdia no mistério da nossa fé pascal e eucarística, nas nossas celebrações sacramentais, na vida que se torna glória para Deus e na oração, ou seja, no mistério acreditado, celebrado e vivido (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2558).

A transversalidade da misericórdia como que constitui a perspectiva, por excelência, a guiar e promover a tarefa da nova evangelização. Com efeito, abre-se para a Igreja no “início do novo milênio” uma perspectiva temporal, relativa ao tempo da misericórdia, já que o mistério pascal – interpretado por São João Paulo II como mistério da divina misericórdia (cf. Dives in misericordia, 7) – “está situado no centro do mistério do tempo” (NMI 35); portanto, torna-se inexorável que a Igreja “em saída” se oriente, em primeiro lugar, pela perspectiva do tempo da misericórdia. Isto em conexão com o culto da misericórdia na oitava da Páscoa (lex orandi, lex credendi): “A misericórdia divina! Eis o dom pascal que a Igreja recebe de Cristo ressuscitado e oferece à Igreja no alvorecer do terceiro milênio” (São João Paulo II, Homilia no Domingo da Divina Misericórdia, 22 de abril de 2001).

Jesus Cristo misericordioso é o caminho para a construção de um novo humanismo cristão mediante a categoria teológica “cultura” privilegiada pelo Concílio Vaticano II (GS 55), o que constitui a cultura da misericórdia. Esta não é um sucedâneo da civilização do amor e sim o meio de realizá-la. Por isso, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, na sua Conclusão (CDSI 575-583), “Por uma Civilização do Amor”, afirma ser necessário “tornar a partir da fé em Cristo”, por meio de “uma firme esperança”, para “tornar a sociedade mais humana” (no plano econômico, político, cultural), pois “somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos ‘misericórdia’), é capaz de restituir o homem a si próprio”. Assim, uma Igreja “em saída” é chamada a adotar a perspectiva da misericórdia em sua tríplice dimensão – mistério, celebração e vida.

Nos desafios cotidianos, misericórdia não é comiseração que mais humilha do que ampara o sofredor, nem assistencialismo que retira o protagonismo do assistido, laxismo ou relativismo que obliteram a verdade. Trata-se de uma posição de amor sincero, que reconhece as necessidades, os limites e os erros tanto nossos quanto dos outros, se comprometendo com o bem de cada um. Onde existe sofrimento, material, psicológico ou espiritual; conflito ou violência, ali falta a misericórdia, ali ela fará a diferença. Vivemos num mundo carente da consciência da misericórdia!

O amor misericordioso, ao inspirar uma vida de autodoação e no plano natural exigir a justiça, só encontra sua plena realização na referência a Deus, e assim como começamos, também podemos terminar, à imitação do Compêndio, com a Doutora da Igreja: “Ao entardecer desta vida, comparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que contabilizeis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos Vossos olhos. Quero, portanto, revestir-me da Vossa justiça e receber do Vosso amor a posse eterna de Vós mesmo…” (CDSI 583).

 

Artigos originalmente publicados no jornal O São Paulo, em 14/08/2019 e 05/09/2019

Foto: Lawrence Jackson

Encontrar uma posição justa nas polêmicas sobre o Sínodo para a Amazônia

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Embates políticos, com pouca relação com a doutrina cristã, fizeram deste Sínodo dos Bispos, Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, um dos mais polêmicos da Igreja Católica nos últimos tempos. Em primeiro lugar, cabe a pergunta: o que a Igreja realmente deseja com o Sínodo da Amazônia? Diante das polêmicas suscitadas, vale a pena retomar um artigo de Dom Odilo P. Scherer, cardeal de São Paulo: a Igreja sempre se dedicou ao bem dos povos da Amazônia, ela não veio para a região para explorar suas riquezas, mas sim trazendo recursos materiais e humanos para o bem da população; ela se preocupa com o bem-estar de seus povos e com a conservação de seu ecossistema, mas apoia a soberania e a autodeterminação das nações que ocupam essa ampla região.

No próprio seio da Igreja, o Instrumentum laboris, documento inicial que deve orientar os debates, tem sido muito atacado. Seu conteúdo é cheio de pontos polêmicos. Ora, isso não desabona o Sínodo. Pelo contrário, mostra o quanto ele é necessário, até para dirimir questões teológicas e pastorais. É preciso lembrar que esse é apenas um texto inicial com as questões a serem debatidas. O real conteúdo do Sínodo será apresentado num Documento Final, entregue ao papa, que provavelmente escreverá uma Exortação Apostólica, ponto de chegada da reflexão.

 

Diante das polêmicas, qual é a justa postura de cada católico?

Existe um grupo que, evidentemente, é chamado a participar ativamente nos debates. São bispos, teólogos, agentes de pastoral e outros diretamente envolvidos com o trabalho da Igreja na Amazônia ou com a reflexão católica contemporânea. A maioria dos blogueiros, youtubers e editorialistas das mídias digitais e impressas não se encaixa nessa categoria. Na maioria das vezes, são eles próprios ideólogos – de esquerda ou de direita, pouco importa aqui – procurando se aproveitar do Sínodo para impressionar seguidores.

Nesse contexto, alimentar-se de polêmicas não nos ajuda. Cada coisa que acontece no mundo, mais ainda quando envolve a Igreja, é um convite que Deus faz a nossa conversão. Ele nos convida – também no Sínodo para a Amazônia – a nos convertemos, a compreender melhor qual é nossa missão e nossa realização no mundo. A primeira pergunta não é “Quem está certo e quem está errado?”, menos ainda “Será que os bispos vão seguir a Fulano ou Ciclano?”, pois tais questões nos fecham em nós mesmos e nas posições partidárias que já compartilhávamos de antemão, nos afastando de Deus. A primeira pergunta é “O que Deus quer me mostrar nesse Sínodo? Como essa reunião pode ajudar minha conversão?”. Esse passo é a fonte do discernimento que nos permitirá inclusive entender o que está certo ou errado nas polêmicas…

Isso não significa que não possamos ter nossas posições e opiniões. O problema é que, sem o encontro cada vez maior com Cristo, sem a sua luz iluminando nosso discernimento, nossas posições e opiniões são apenas isso: ideias humanas tão sujeitas a polêmicas e oposições quanto quaisquer outras. Sem uma comunhão com Deus, Um ideólogo pode muito bem usar qualquer grande santo ou pensador da história do cristianismo para nos afastar de Cristo, basta saber manipular e recortar os textos originais, desfigurando-os.

Posto isso, dois critérios simples nos ajudam a localizarmo-nos nesses debates. Primeiro, quem só ataca ou só elogia dificilmente estará inteiramente certo. Qualquer reflexão inicial terá acertos e erros e as pessoas realmente comprometidas com o Bem serão respeitosas com todas as posições e procurarão valorizar o que deve ser valorizado e condenar o que deve ser condenado, venha de onde vier. Em segundo lugar, uma reflexão eclesial não é um debate partidário ou ideológico. Os cristãos, conforme seu grau de envolvimento e suas atribuições, se reúnem para rezar pelo Sínodo, apresentam suas reflexões, respeitando a posição dos demais e procurando a unidade. Transformar o Sínodo numa campanha com atos de ataque a quem pensa diferente não corresponde ao modo cristão de colaborar com esse momento.

 

Entender as polêmicas

No fundo da maioria dos debates existem duas questões, uma de caráter mais socioeconômico e político, outra mais pastoral e cultural: (1) qual o melhor modelo de desenvolvimento para a Amazônia? (2) como realizar um esforço missionário que respeite as culturas e gere uma verdadeira integração fraterna entre os povos?

Ainda que a questão socioeconômica e política não seja uma atribuição específica da Igreja, ela tem deixado claro, por uma obrigação de caridade, seu posicionamento por um “desenvolvimento humano integral”, que alcança todos os seres humanos, em todas as suas dimensões, conforme a expressão consagrada por São Paulo VI (Populorum progressio, PP 14). A “ecologia integral” do Papa Francisco se insere nesse contexto. Por outro lado, a solidariedade internacional, que não elimina em nada uma justa autonomia das nações, é um instrumento privilegiado para se obter esse desenvolvimento integral, como lembrou Bento XVI na Caritas in veritate (cf. Capítulos III e IV). As polêmicas dizem respeito, na verdade, à identificação dos melhores caminhos para se chegar ao desenvolvimento integral, considerando as peculiaridades do ecossistema e das populações amazônicas.

Do ponto de vista cultural, o desenvolvimento da antropologia cultural e a compreensão dos direitos de todos os povos lançaram grandes desafios ao trabalho missionário. O cristianismo não quer ser uma imposição cultural aos povos evangelizados, mas sim “inculturar-se”, isso é, assumir as culturas originais de cada povo, realizando-se de forma particular em cada uma delas. Isso não elimina a existência de valores universais (como a vida e a família), mas implica que cada povo se aproprie desses valores de uma forma própria sua. Quanto mais nossa sensibilidade cultural se desenvolve, quanto mais percebemos as suscetibilidades e as violências que impomos uns aos outros, mais exigente se torna esse esforço de inculturação do Evangelho. O problema se torna maior porque a nossa sociedade laica se questiona cada vez mais sobre seus próprios valores, valorizando as culturas antes menosprezadas como primitivas.

Essas duas questões dão o pano de fundo das reações políticas ao Sínodo sobre a Amazônia. Ninguém sabe, de antemão, para onde os “ventos do Espírito” soprarão nessa reflexão, mas cada um de nós, a seu modo, é convidado a se converter mais a Cristo em meio a essa caminhada.

 

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Imagem: Ismael Martinez Sanches / Ajuda à Igreja que Sofre.