A doutrina social perante os populismos na América Latina: um tema do qual não podemos escapar

O Observatório Socioantropológico Pastoral do CELAM acaba de publicar Democracia y neopopulismos: alternativas para superar la polarización en América Latina. Não se trata de um texto da própria Conferência Episcopal, mas sim de um documento de trabalho para ajudar a reflexão dos bispos e de toda a comunidade católica.

Salta aos olhos a pergunta: por que a Igreja deve se preocupar com um tema tão claramente político, tão problematicamente partidário? A doutrina social católica deixa claro que o amor cristão é muito concreto e nos impele a colaborar na construção do bem comum, que é a razão de ser da política. Nesse caminho, sem envolver-se com opções partidárias, a Igreja reconhece que a democracia é o sistema de governo que mais colabora com o bem comum. Sendo assim, vê com suspeita as tendências populistas que parecem pôr em risco nossas democracias.

Não cabe aqui resumir ou analisar o documento, disponível online, relativamente extenso e passível de críticas como qualquer obra do gênero. Contudo, algumas observações sobre o tema são importantes para o momento político atual que vivemos.

O que é populismo?

O populismo é uma estratégia de chegada ao poder em regimes democráticos. Caracteriza-se pela canalização, por parte de um líder social, da insatisfação e do ressentimento dos pobres e/ou da classe média contra as elites políticas e econômicas. Dos cinco presidentes brasileiros eleitos diretamente depois do regime militar, apenas Fernando Henrique Cardoso não foi criticado por seus adversários como “populista”. Lula e Bolsonaro foram os mais associados ao populismo, mas a crítica também foi aplicada a Collor e Dilma.

A estratégia populista é tão mais eficiente quanto maior o desencanto e a frustração com o desempenho dos políticos, geralmente tidos como interesseiros e corruptos, e a fragilidade da máquina pública em garantir a justiça e o bem-estar da população. Além disso, pode se apresentar como a única viável quando as organizações da sociedade civil e as instâncias democráticas parecem não conseguir construir um sistema político realmente comprometido com o bem comum da população e não com os interesses dos poderosos.

Democracia implica em controle social – e nossa democracia brasileira é fraca. A maioria dos eleitores não acompanha o desempenho dos políticos eleitos e os candidatos mais votados são frequentemente personalidades midiáticas, sem um histórico de engajamento social, ou lideranças comprometidas com esquemas de poder tradicionais. A ineficácia da justiça, quando se trata de condenar e punir corruptos, demonstra a força dos esquemas corporativistas, consolidados no próprio arcabouço legal, que em nome da defesa do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado frequentemente criam condições para acobertar a corrupção. Apesar da insistência das mídias e até da justiça eleitoral, a maioria dos partidos continuam fragmentados, organizados numa perspectiva corporativista e não programática – e estão entre as instâncias consideradas menos confiáveis pela população. Nas eleições atuais, esse desencanto com os políticos e partidos se evidencia na dificuldade da chamada “terceira via”, que é, mais do que um caminho intermediário entre extremismos de esquerda e direita, a defesa das elites políticas institucionalizadas frente às lideranças personalistas de Lula e Bolsonaro.

Uma ameaça à construção democrática

A estratégia populista, com a vinculação direta da massa de eleitores a um líder que promete resolver os problemas gerados pelo fracasso do sistema democrático, pode ser utilizada tanto pela esquerda quanto pela direita. O lado perdedor é sempre a própria democracia, pois o populismo, no fundo, é autoritário. Atrela a mudança a uma determinada liderança pessoal e inibe o fortalecimento político das várias instâncias da sociedade organizada (tidas como ameaças a quem está no poder). Além disso, o governante populista, tendo se viabilizado sem o necessário suporte institucional e com uma base social forte, mas pouco articulada, termina enredado no corporativismo e no clientelismo das elites políticas tradicionais, repetindo esquemas fisiológicos que não consideram o bem comum.

O populismo pressupõe a lógica do “nós contra eles”, de certa forma inevitável em seu discurso, dificultando a construção de consensos necessários à organização da sociedade, ao desenvolvimento social e econômico. Ao culpabilizar o outro por todos os problemas sociais e econômicos, inibe a reflexão crítica e a construção do realmente novo. Implica numa adesão acrítica ao discurso do líder e/ou de seu grupo, associando-se à disseminação de notícias falsas e à deturpação da realidade.

Menos evidente é o perigo que o populismo representa para os próprios valores que pretende defender. Numa sociedade livre e plural, o convencimento é muito mais convincente que a mera imposição. O controle dos meios de comunicação ou da máquina estatal só é realmente eficiente quando articulado com um discurso capaz de convencer a população, em particular os jovens. O populismo, porém, uma vez no poder, imagina que o simples controle social pode garantir os valores que defende. Com isso, no plano cultural, permite a erosão gradual desses valores e inibe a busca construtiva de novos caminhos.

A superação do populismo na doutrina social da Igreja

O termo “populismo” era pouco presente na doutrina social da Igreja até recentemente. Contudo, a valorização das organizações sociais (ou dos “corpos intermédios”, nos termos usados até a publicação do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 356-357), a insistência na participação (CDSI 189ss) e a ênfase da sociedade organizada como contrapeso ao poder tanto do Estado quanto dos mercados (Caritas in veritate, CV 38) indicam claramente uma posição de “simpatia pela democracia” (Centesimus annus, CA 46) e desconfiança em relação ao populismo.

Com um bom senso tipicamente católico, Francisco, na Fratelli tutti observa que líderes populares que conseguem transformar as estruturas injustas são um bem para a sociedade (FT 169). Contudo, podem se revelar muitas vezes como demagogos que enganam o povo, ao invés de servirem ao bem comum (FT 156-162). Ideólogos de direita tendem a ver demagogia populista em qualquer tentativa de aumentar a participação popular e melhorar a distribuição de renda da população. Ideólogos de esquerda tendem a ver demagogia populista em qualquer defesa da ordem social ou dos valores morais tradicionais.

O fato é que a população quer justiça social, condições de vida dignas, respeito a seus valores morais e segurança. Grande parte de nossos problemas de engajamento vem da tendência dos grupos políticos de lutarem por algumas bandeiras e não levarem outras em consideração. É comum se dizer no Brasil que “o povo não sabe votar”. O problema maior, contudo, é que “as elites não sabem governar”, deixando o povo sem opções e entregue a líderes populistas de esquerda ou direita. Governos populistas são, de certa forma, um ponto de passagem no processo de amadurecimento democrático na América Latina. Isso não quer dizer que sejam obrigatórios, mas sua recorrência e duração depende em grande parte da capacidade de políticos e instituições democráticas conseguirem atender a população em suas reivindicações básicas.

A superação dessa situação só poderá acontecer com o aumento da participação; o fortalecimento, em todos os níveis, das organizações sociais e a formação de lideranças políticas cada vez menos personalistas e mais comprometidas com o bem comum. Por outro lado, implica em lideranças sociais realmente empenhadas em escutar a população, reconhecendo tanto suas necessidades quanto seus valores (FT 15-17).

O desenvolvimento humano integral (Populorum progressio, PP 4-21), que abarca todas as dimensões tanto da sociedade quanto da pessoa, e se propõe a chegar a todos, pode ser considerado como o caminho necessário para a superação dos populismos. Sem essa visão integral, as conquistas parciais obtidas em certos setores ou por certas categorias sociais não são suficientes para consolidar o amadurecimento democrático de uma nação.

Francisco Borba Ribeiro Neto

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Os desafios para construir uma família

Não é preciso recorrer a dados estatísticos, análises econômicas ou reflexões sociológicas para perceber que formar uma família é cada vez mais difícil no Brasil. Todos os brasileiros que já têm família, ou que estão tentando constituir uma, experimentam as dificuldades na própria pele. No contexto eclesial, é muito comum se ouvir falar de ideologias contrárias à família. Elas de fato existem e estão disseminadas em nossa sociedade, mas frequentemente os maiores perigos não estão tão evidentes, pois de certa forma já nos acostumamos a eles.

As ameaças no campo socioeconômico

Atualmente, a crise econômica, as dificuldades do mercado de trabalho, os custos crescentes com educação dos filhos e saúde são os maiores desafios para aqueles que estão formando ou desejam começar a formar uma família. Uma parcela muito pequena de brasileiros jovens pode se gabar de uma situação socioeconômica consolidada, sem apertos financeiros, com segurança para o futuro. Os jovens não têm dinheiro para se casar, os pais fazem árduos esforços para garantir o sustento, a educação e a segurança dos filhos e depois não conseguem estar tão perto deles quanto gostariam e deveriam.

Não estamos falando aqui de luxos ou gastos supérfluos. O valor mínimo de uma remuneração justa é aquele que permite que os adultos possam dar a seus filhos uma educação e uma qualidade de vida equivalente àquela que tiveram. É natural que todo adulto queira dar a seus filhos um pouco mais do que recebeu ou pelo menos as mesmas oportunidades que teve na vida. Hoje em dia, frequentemente, mesmo que os pais tenham ganhos satisfatórios, o tempo de deslocamento, o trabalho fora do expediente convencional, a pressão por resultados e a insegurança quanto ao futuro causam um desgaste psicológico e um consumo de energia que dificultam sua presença junto aos filhos.

Com raras exceções, as escolas públicas não se apresentam como opções desejáveis para as famílias. Fora das políticas de quotas, as taxas de ingresso de alunos de escolas públicas em boas universidades são muito baixas. Assim, o custo da escola se tornou um fator limitante para o número de filhos e um fator de desgaste crescente para os pais. O sistema público de saúde também não transmite confiança e os planos de saúde são caríssimos – onerando ainda mais as famílias, particularmente no caso de seus idosos, que utilizam mais esses serviços.

O desafio ideológico

Além disso, as ideologias dominantes em nossa sociedade não facilitam uma justa compreensão do que deve ser uma família. Fala-se muito na ideologia de gênero, mas muitas outras concepções ideológicas, ainda mais entranhadas em nosso subconsciente, ameaçam a família. O individualismo e a idolatria à autonomia pessoal, o materialismo e a busca do êxito profissional a qualquer custo, a cultura do descarte refletida nas relações interpessoais são, provavelmente, as maiores ameaças culturais à formação da família em nossa sociedade.

As famílias se desenvolvem como espaço de educação ao dom de si e à gratuidade. São tão mais felizes quanto mais seus membros estão atentos às necessidades e desejos uns dos outros e se esforçam pelo bem dos demais. Aprendemos a amar e compreendemos o valor do outro olhando, em primeiro lugar, aos esforços e sacrifícios que nossos pais fazem por nós. Por mais que os noivos se queiram bem, é na doação continua, no perdão mútuo, nas alegrias e dores compartilhadas que aprendem – ao longo de uma vida – a grandeza e a felicidade do amor. Mas o individualismo e o desejo de autonomia fazem com que cada membro da família pense nos outros como funcionais a si, em vez de se pensar como responsável pelo bem dos outros.

Sendo feita por seres humanos falíveis, toda família é cheia de erros e acertos. Quando cada um está atento e se sente, ao menos em parte, responsável pela felicidade dos demais, os erros tendem a ser perdoados e os acertos, a alegrar e encher de gratidão. Quando cada um está centrado em si mesmo, cobrando a própria felicidade dos demais, os erros se tornam insuportáveis, os acertos nada mais que obrigações e a vida familiar se torna infernal.

Ainda que os desafios socioeconômicos sejam objetivos, o materialismo hedonista que domina em nossos dias multiplica nossas necessidades, nos tornando insaciáveis. O sucesso profissional, a ostentação material, os lazeres caros parecem ser quase uma obrigação. O espaço familiar e as relações interpessoais recheadas de gratuidade são os primeiros sacrifícios imolados nos altares dessa idolatria ao êxito mundano. O pior é que não nos damos conta quando somos doutrinados nessa nova religião. Absorvemos essa mentalidade ao vermos propagandas onde personagens elegantes, em ambientes sofisticados, parecem se realizar consumindo produtos caros. A multiplicamos ao distribuir selfies e fotos onde nós mesmos nos apresentamos como vivenciando essas situações, mesmo que isso seja apenas o “flash” de um instante. Ensinamos nossos filhos a seguirem essa idolatria quando lhes dizemos que devem estudar e se esforçar para “se darem bem na vida” – uma admoestação justa, mas que é ressignificada nesse contexto cultural em que vivemos.

Um trabalho político e comunitário

Os obstáculos socioeconômicos à formação das famílias podem ser superados, em parte, com o esforço individual e algumas condições favoráveis. As soluções exclusivamente particulares, contudo, não constroem o bem comum e tendem a gerar outros problemas – como os pais que ganham bem, mas não têm tempo para acompanhar o crescimento dos filhos. Nesse campo, a dedicação pessoal deve ser amparada e recompensada por políticas públicas adequadas. Não se trata do assistencialismo do Estado, como muitas pensam, pois até o chamado Estado mínimo neoliberal depende de decisões e compromissos políticos assumidos por toda a sociedade.

Remunerações justas, horários de trabalho adequados, transportes eficientes, escolas públicas de qualidade, bons serviços de saúde são todos fatores que podem melhorar a qualidade de vida das famílias e ajudá-las. Já existem empresas que procuram se apresentar como “amigas das famílias”, para desse modo conseguir funcionários mais motivados e preparados. Tais empresas precisam, contudo, de políticas trabalhistas que apoiem seu compromisso com a família, ou correm o risco de perderem competitividade em comparação a outras. É todo um conjunto de fatores que depende, de uma forma ou de outra, de decisões políticas adequadas. Family talks, por exemplo, é uma organização voltada à proteção da família, através da atuação junto ao governo e à opinião pública. Em seu site podem ser vistos vários exemplos de ações, tanto no campo governamental quanto no empresarial, para apoiar as famílias.

Já no campo ideológico, leis e regulamentações estatais, mesmo que necessárias em muitos casos, são pouco efetivas. Mentalidades são formadas por convencimento, não por coação. Nesse campo, a ação dos influenciadores e das mídias sociais é particularmente poderoso. Mas é aqui, também, que o trabalho de nossas comunidades se faz mais efetivo e necessário. O testemunho dos mais sábios, a solidariedade nas dificuldades, os ambientes sadios para a convivência dos jovens são os grandes instrumentos que a comunidade cristã tem para enfrentar as ideologias contrárias à família.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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