Previdência

Diálogo com Wagner Balera, professor Titular de Direitos Humanos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; com larga experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Tributário e Previdenciário..

Doutrina social da Igreja e políticas públicas de Previdência Social

O impacto da Previdência Social sobre as contas públicas tornou-se o problema mais emblemático da crise fiscal brasileira atual. A questão tem dois aspectos correlatos. Em primeiro lugar, a população brasileira está envelhecendo rapidamente. Consequentemente, o tempo médio de pagamento de aposentadorias e diminuí o número relativo de contribuintes que pagam o sistema. Entre os muitos sites que procuram sintetizar o problema, pode-se consultar o do INSPER, que explica o problema em gráficos exemplificadores. Em segundo lugar, o Estado brasileiro passa por uma crise fiscal generalizada, que afeta diretamente as contas da previdência.

 

Envelhecimento e políticas públicas de Previdência Social

O envelhecimento da população brasileira e seu impacto sobre a Previdência Social não é “fake news”. Ela está ocorrendo em ritmo acelerado. Em 1980, haviam cerca de 9 trabalhadores em idade ativa para cada idoso em idade de aposentadoria. Hoje, são cerca de 5 adultos para cada idosos. Em 2050, serão apenas cerca de 2 adultos para cada idoso.

Isso é complicado porque nosso sistema público de Previdência Social se baseia na solidariedade intergeneracional, ou seja, a geração que está na ativa sustenta, com suas contribuições, a que está aposentada. Na Previdência Privada, o sistema é de capitalização: a aposentadoria é proporcional ao quanto a pessoa conseguiu poupar enquanto estava ativa e aos lucros que obteve com seus investimentos.

Na Europa, uma alteração demográfica dessa magnitude demorou séculos para ocorrer e foi acompanhada por mudanças tecnológicas radicais e por um grande crescimento econômico, facilitando o processo de acomodação das nações às novas situações. Mesmo assim, o envelhecimento da população hoje é um dos maiores problemas que preocupam as autoridades desses países. Para nós, o problema é ainda maior pelo curto tempo disponível para as adaptações e a profunda crise política e econômica da atualidade. Assim, o impacto dessa mudança para o conjunto da Nação é brutal

Com essa perspectiva demográfica, a reforma da Previdência é fundamental para garantir a capacidade da sociedade como um todo garantir, particularmente via Estado, aposentadorias dignas para a população idosa no futuro.

 

Finanças e políticas públicas de Previdência Social

Mas e hoje, existe um rombo nos gastos da Previdência como é dito pelos defensores da Reforma da Previdência? A questão é complexa porque o resultado é diferente conforme se olha para a legislação ou para a capacidade de pagamento do Estado.

Segundo a Constituição brasileira de 1988 e as legislações complementares, a Previdência faz parte do Sistema de Seguridade Social, que inclui também os serviços de Saúde e Assistência Social. No caso da Previdência, em particular, existem três origens básicas para os recursos usados no pagamento das aposentadorias: as contribuições dos trabalhadores na ativa, a contribuição dos empregadores e uma complementação dada pelo Estado (obtida com os recursos vindos dos impostos e outras taxas públicas). Os recursos para Assistência Social, por definição, devem vir do Estado, pois devem atender às necessidades daqueles que não têm como contribuir suficientemente.

Mas existe um complicador a mais aqui. A legislação permite até 30% de desvinculação das receitas da Seguridade Social. Isso significa que o governo pode, na prática, não só deixar de aportar dinheiro para esse Sistema, como também retirar uma parte dos recursos captados para pagar a Previdência, dando-lhe outras destinações. Numa conjuntura de crise financeira, é justamente isso que ocorre… O governo não só não aporta recursos, como tira legalmente recursos da Previdência.

Um texto que explica didaticamente essa questão foi publicado no jornal Gazeta do Povo, em março de 2017. Apesar de alguns dados estarem desatualizados, as explicações são claras e ainda válidas (ao menos até haver uma reforma da Previdência).

 

Equidade e políticas públicas de Previdência Social

Outro aspecto problemático da Previdência Social no Brasil é apresentar uma tendência concentradora de renda. Tem sido muito divulgado que os servidores públicos, por terem um regime de aposentadoria diferente dos trabalhadores do setor privado, podem se aposentar recebendo seu salário integral – ou parte considerável deste. No setor privado, existe um teto para o valor pago às aposentadorias.

Hoje, a aposentadoria média paga aos cerca de 723 mil servidores públicos aposentados é de R$ 9.179,00, dos quais apenas R$ 3.590,00 são cobertos pelas contribuições dos funcionários na ativa (lembremo-nos que a nossa Previdência se baseia na solidariedade intergeracional). Já os cerca de 34,5 milhões de aposentados do setor privado ganham em média R$ 1.200,00, dos quais R$ 759,00 são cobertos pelos servidores na ativa.

Nesse quadro, o sistema de aposentadorias se torna um dos fatores que concentra renda no Brasil, contribuindo para uma das questões de justiça social mais graves do Brasil. Além disso, essa concentração de renda fere os princípios que estão na base da criação dos sistemas públicos de previdência em todo mundo, que é o de promover a equidade na sociedade.

Contudo, dois aspectos devem ser levados em conta quando se fala nas diferenças de remuneração entre servidores públicos e do setor privado. O primeiro é que a maioria dos aposentados do setor público não ganham altos salários, tendo remuneração próxima à dos trabalhadores do setor privado. Ao se falar dos aposentados do setor público em geral, se camufla as desigualdades salariais dentro do próprio setor.

O outro aspecto é que as aposentadorias elevadas foram ganhas dentro da lei, por conta de legislações que raras vezes foram feitas por esses aposentados que estão se valendo delas. Trata-se de “direitos adquiridos” e como tal precisam ser consideradas.

 

Doutrina social da Igreja e políticas públicas de Previdência Social

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja [CDSI], 2004) reforça a ideia, que podemos até considerar de bom senso, que o governo deve ser responsável no uso do dinheiro público, tendo em vistas o bem comum (CDSI 355). Assim como na análise do tema das finanças públicas, também no caso da Previdência Pública se torna fundamental olhar o problema com realismo.

Diante da dinâmica demográfica, com seus desafios tanto humanos quanto econômicos, somos chamados a uma postura de realismo, aliada a uma verdadeira preocupação humanista (cf. BENTO XVI. Caritas in veritate, 2009, CV 21), visando o desenvolvimento integral das pessoas e da sociedade como um todo. Não é possível negar ideologicamente a existência dos problemas, mas as soluções não podem ser tomadas com uma espécie de miopia economicista, que vê apenas a solução contábil sem se preocupar com a questão humana.

O mesmo realismo envolve a questão dos direitos reconhecidos por lei e os recursos financeiros disponíveis do Estado. Não reconhecer os limites objetivos existentes levará a um agravamento dos desequilíbrios financeiros, que acabará por penalizar, cedo ou tarde, os mais pobres e dependentes dos recursos públicos. Atender aos deveres da justiça e da solidariedade, numa situação de crise financeira, é difícil e fatalmente implicará em sacrifícios, mas isso não pode se tornar uma desculpa para se atropelar direitos e necessidades das pessoas – particularmente dos mais pobres.

Todos os últimos pontífices lembraram a opção preferencial pelos pobres como exigência da doutrina social da Igreja (cf. JOÃO PAULO II. Centesimus annus, 1991, CA 11; BENTO XVI. Discurso na Sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, 13 de maio de 2007, FRANCISCO. Evangelii Gaudium, 2013, EG 197-201). Numa questão social tão difícil, mas com um alcance tão grande para a população, como é a Previdência Social, não é possível deixar de levar em conta as necessidades dos mais pobres e de equidade na organização das políticas públicas (CDSI 303).

Pergunta

Na situação brasileira atual, como devemos pensar a política previdenciária, levando em conta o realismo, a justiça, a solidariedade e a equidade?

 

 

 

 

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