Você tem fome de que? De tempo!

Você tem fome de que? De tempo!

Por Ana Lydia Sawaya,  professora de Fisiologia da UNIFESP

 

 

Outro dia na saída de um evento deparei-me com três potinhos onde os participantes tinham que escolher um deles e depositar sementes de feijão para responder à frase colada ao vidro: você tem fome de que? Num dos potinhos estava escrito: de cozinhar (era um evento sobre nutrição), mas estava quase vazio (salvo alguns aficionados…). O que estava cheio até à borda dizia: de tempo!
A grande fome de hoje é a fome de tempo! Mas o tempo é algo de que podemos dispor com a nossa liberdade. Está à nossa mão e ao nosso dispor. Santo Agostinho dizia que o tempo existe no espírito do homem, é uma extensão do nosso espírito. É em nosso espírito que reside a memória do passado, a intuição do presente (o presente do presente) e a espera do futuro. Então ele depende essencialmente da nossa liberdade!
Mas quem roubou o nosso tempo? Por que ele escapou de nossas mãos?
Um escritor do leste europeu, Václav Belohradsk, nos dá uma pista. Ele diz: “Poderíamos sintetizar assim a essência daquilo que nos ameaça: os Estados programam seus cidadãos, as indústrias, seus consumidores, as editoras, seus leitores etc. Toda a sociedade, aos poucos, torna-se algo que o Estado produz” (L’Altra Europa, 1986, apud L. Giussani O eu, o poder, as Obras, São Paulo: Cidade Nova, ,2001). Podíamos acrescentar: a televisão, seus telespectadores, o Facebook ou Istragram, os seus visualizadores.
Somos cada vez mais de-finidos por um poder externo à nossa vontade e que vem de fora. Que pretende determinar nossa fome e nossos desejos, oferecendo desejos que não são realmente satisfatórios ou conforme à medida do nosso coração. Estamos sempre fora de nós mesmos e assim perdemos o TEMPO que é essencialmente nosso. Somos cada vez menos criativos e cada vez mais passivos, vítimas de um tempo que não foi determinado por nós e, por isso, cada vez mais desnorteados e vazios. É comum ouvir de quem trabalha com crianças que sofrem com obesidade, frases do tipo: ‘eu preciso sentir a boca cheia’. Esses profissionais relatam que essa sensação parece preencher o vazio, a tristeza, o tédio e a carência afetiva que as crianças descrevem sentir.
A coisa mais importante a fazer é entender o problema, a armadilha que a sociedade moderna e o poder nos fizeram entrar. E retomar o nosso TEMPO em nossas mãos.  Escolher aquilo que preenche nossas almas e não nossas bocas ou nos iludem com sensações prazerosas momentâneas, mas que incrementam o vazio logo que passam. E o que preenche nossas almas?
A tradição da Igreja, em particular dos monges, nos ensina muitas coisas a esse respeito. Em um livro, extremamente didático O Céu Começa em Você (Petrópolis: Vozes, 1998) A. Grun explica que o primeiro passo é reservar diariamente um tempo (meia hora, por exemplo) para ficar quieto, e aprender a permanecer em si mesmo. Assim quando a turbulência interior que é como uma água em grande movimento (lembra da correria e falta de tempo que agita tudo?) se aquietar, vou começar a enxergar, a entrar no âmago dos meus pensamentos e discerni-los (a agua sem movimento reflete meu verdadeiro rosto). E aos poucos aparecerá quem sou eu, o que realmente desejo, o que me incomoda e o que devo fazer. Os pensamentos e sentimentos maus e os bons virão à tona e poderei trata-los com a oração e iniciar um processo de cura em direção à paz que é o que o nosso coração mais anseia.
Nessa nova condição de vida descobriremos que o tempo se amplia, e aumenta de forma surpreendente; e que temos tempo de fazer tudo o que nos alegra e nos é necessário. Veremos que quem fez o mundo o fez em ordem e não uma desordem. E descobriremos como ensina Santo Agostinho que o tempo, na verdade, é uma dimensão do nosso espírito.
 

 

Publicação original: Jornal O São Paulo, 05 de julho de 2017.

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