A CNBB já publicou, em 2023, duas notas que se referem diretamente à defesa da vida dos mais fragilizados. Em 18 de janeiro, a Nota “A vida em primeiro lugar” manifestava a reprovação da entidade às iniciativas do governo recém-empossado, como a saída do Brasil da Convenção de Genebra de defesa da vida e a revogação da portaria que determina a comunicação de aborto por estupro às autoridades, apontando para a flexibilização do aborto. Em 22 de janeiro, na figura de sua Comissão Especial de Bioética, emitiu uma “Nota de solidariedade”, condenando a situação desumana em que se encontram os yanomamis e expressando sua solidariedade a eles.
Tristemente, a sociedade brasileira muitas vezes parece ter se dividido entre os que parecem indignados com a potencial flexibilização do aborto, mas não se importam com a situação dos yanomamis, e os indignados com a situação destes indígenas, mas que consideram o aborto “um direito”.
Se analisarmos as muitas declarações dos papas recentes, tanto sobre a questão indígena quanto sobre o aborto, constataremos facilmente que nenhum deles, por mais opostas que possam parecer suas posições, deixaria de se indignar com essas duas situações. Tanto a defesa da vida (uma questão de direitos humanos, que transcende as convicções religiosas) quanto a doutrina social católica devem ser vistas numa perspectiva integral, que supere os partidarismos. Quanto partidarizamos essas questões, invertemos a ordem dos fatores: ao invés dos partidos e forças sociais servirem ao bem comum, são os ideais de construção do bem comum que passam a ser instrumentalizados pelos partidos em sua busca pelo poder hegemônico – e nesta tendência direita e esquerda se equivalem.
Normalmente, três passos nos afastam de uma percepção integral da defesa da vida e nos induzem à partidarização.
A invisibilização dos mais frágeis
Não defendemos a vida dos mais frágeis se não nos damos conta de sua existência. Sua invizibilização pode ser tanto uma estratégia intencional para evitar que nos empenhemos em sua defesa, quanto uma estratégia inconsciente, pela qual nos descomprometemos com uma pauta com a qual não nos identificamos ou com uma bandeira que parece estar hegemonizada pelos nossos adversários políticos.
A humanidade do filho desejado e esperado já é reconhecida tão logo a gravidez é notada, e a criança ainda por nascer desde já é cercada por carinhos e cuidados. Mas, numa gravidez indesejada, causada por um ato violento ou mesmo consensual, para quem defende o aborto como direito, o feto é visto como um amontoado indefinido de células, ser estranho que não é parte do corpo materno nem é um tumor, mas também não é visto como pessoa. Sua humanidade é invisibilizada, para liberar um aborto que poderia parecer monstruoso para a própria mãe, se a criança fosse vista e reconhecida como ser humano.
Com estratégias bem diferentes, se invisibiliza o drama dos povos indígenas. Foi-se o tempo em que eles nem mesmo eram considerados humanos (argumento já rejeitado na Bula Sublimus Dei, de 1537, do Papa Paulo III). Agora, os argumentos são de que a impressa partidarizada distorce as informações, que seus sofrimentos não existem ou estão sendo aumentados pela mídia, que deturpa os fatos.
As justificativas injustificadas
Quando não é possível invisibilizar, se usa argumentos para justificar da omissão ou mesmo o erro. Como dito acima, no caso dos indígenas, se usa os argumentos de que são eles próprios ou as ONGs que não desejam melhorar suas condições de vida, que os indígenas são os culpados de sua pobreza (esquecendo-se que estamos falando de povos que não vivem mais segundo seus costumes e tradições, mas conforme nossa sociedade impôs que vivessem).
Os povos indígenas são parte da Nação brasileira. Como cada um de nós, eles também têm direito a viver segundo suas tradições e procurar um verdadeiro desenvolvimento humano integral. As evidentes dificuldades envolvidas nesse processo devem orientar as ações a serem implementadas, mas não podem justificar a omissão ou coisas piores, como a injustiça e a exclusão social.
Já no caso do aborto, são bem conhecidos os argumentos relativos aos sofrimentos psíquicos da mãe, da falta de condições para cuidar da criança, dos riscos dos abortos clandestinos. Novamente, os problemas são reais e devem orientar tanto as políticas públicas quanto o compromisso solidário dos cristãos, mas não servem como justificativas para a inação ou o descompromisso…
A empatia seletiva e o ego ressentido
A história da civilização ocidental é marcada pelo crescimento da empatia. Ver uma pessoa escravizada foi normal em grande parte da história da humanidade, mas é inadmissível para nós. Torturas e flagelações já foram espetáculos públicos, mas hoje em dia chegamos a duvidar da sanidade mental de alguém que se divirta com essas situações. Os direitos civis eram prerrogativa dos homens ricos e das etnias dominantes (brancos, em nossa civilização ocidental), mas hoje reconhecemos que devem ser partilhados por todos.
Contudo, como diz o ditado popular, o diabo expulso pela porta, entra pela janela. A empatia contemporânea não costuma abrir-se ao perdão, nem aceitar os argumentos do adversário. O ressentimento frequentemente nos cega à condição do outro. O ressentimento contra o “autoritarismo patriarcal branco”, por exemplo, leva à negação de valores que são inerentes à natureza humana e à estigmatização de pessoas que não querem nada mais que o bem de seus filhos e da sociedade. Por outro lado, o rechaço à ideologia de gênero leva a não aceitar o fato de que muitos homossexuais são vítimas de injustiças e discriminações.
Se desejamos mesmo estar perto de Cristo…
Todos dizem querer o diálogo e o bem dos mais fragilizados, mas poucos estão dispostos a realmente dar a mão ao sofredor quando este parece estar no lado oposto do espectro ideológico. Nós também, seres humanos que somos, filhos de nosso tempo, estamos sujeitos a essa tentação de selecionar a quem defendemos – mas ao fazermos isto nos afastamos de Cristo, que amou bons e maus, que se sacrificou tanto pela salvação de seus discípulos quanto de seus algozes.
Escandalizar-se, ficar com raiva ou negar a realidade não nos ajudará a sermos cristãos melhores, nem pessoas mais felizes. Um bom exame de consciência, onde não procuramos nos justificar mas sim reconhecer nossos pecados, ainda é o mais cristão e eficiente antídoto a uma postura de desamor. Quando aprendemos a olhar com sinceridade a nós mesmos e as nossas falhas, também aprendemos a dialogar com os outros e descobrir as contribuições que eles podem nos dar para que nós mesmos nos tornemos melhores… E então teremos a alegria de nos percebermos cada vez mais próximos de Cristo.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia
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