‘Laudate Deum’: denunciar o aquecimento global e anunciar a Cristo

Nas redes sociais, a Exortação Apostólica Laudate Deum (LD), lançada no último 4 de outubro, tem recebido tanto uma recepção entusiasmada quanto críticas ásperas, como antes já tinha acontecido com a Encíclica Laudato si’. Papas são sempre polêmicos, mesmo que não queiram. O problema não está neles, mas em seus leitores. Tendemos a gostar quando eles escrevem o que queremos ler e criticar quando escrevem coisas com que não concordamos ou que não entendemos.

Duas críticas interligadas merecem ser comentadas, pois nos dão a oportunidade de entender muitas outras coisas… Muitos acreditam que o Papa não deve escrever sobre questões ecológicas e sobre aquecimento global, pois não são temas referentes à fé. Outros até concedem essa possibilidade, mas acreditam que Francisco é excessivamente “mundano”, mais preocupado com os problemas mundanos do que com a conversão das almas. Dedico esse artigo à primeira crítica e discutirei a segunda num próximo.

Quais são os temas aos quais os Papas se dedicam?

Não há dúvida que a atenção principal dos Papas se foca na relação entre Deus e a pessoa humana, mediada por Cristo e realizada historicamente na Igreja. Mas a caridade cristã impulsiona a Igreja a ocupar-se de tudo aquilo que diz respeito à vida humana. É São João Paulo II que bem explica: “A Igreja é ‘perita em humanidade’, e isso impele-a necessariamente a alargar a sua missão religiosa aos vários campos em que os homens e as mulheres desenvolvem as suas atividades em busca da felicidade, sempre relativa, que é possível neste mundo, em conformidade com a sua dignidade de pessoas […] É por isso que a Igreja tem uma palavra a dizer, hoje como há vinte anos e também no futuro, a respeito da natureza, das condições, das exigências e das finalidades do desenvolvimento autêntico e, de igual modo, a respeito dos obstáculos que o entravam. Ao fazê-lo, a Igreja está a cumprir a missão de evangelizar, porque dá a sua primeira contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem aplicando-a a uma situação concreta” (Sollicitudo rei socialis, SRS 41).

Ora, uma catástrofe climática que pode afetar a humanidade inteira sem dúvida se adequa aos critérios acima. A única razão para um Papa não se deter sobre esse tema é se fosse uma ameaça falsa. Responder a esse questionamento é o primeiro tema desenvolvida na Exortação.

Ninguém mais pode negar o aquecimento global

Hoje, a maioria esmagadora da comunidade científica mundial acredita que o aquecimento global existe e é causado principalmente pela atividade humana. Existem evidencias robustas para isso, enquanto que todas as tentativas de negá-lo ou de dar-lhe outras causas que não a ação humana não apresentam evidências favoráveis sólidas.

Francisco elenca uma série de eventos, que se tornaram muito mais evidentes nesses anos, que o demonstram: “Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afeta a todos” (LD 5). Segundo um estudo das Nações Unidas, os desastres relacionados ao clima aumentaram 83% nos últimos anos – de 3.656 eventos, durante o período de 1980-1999, para 6.681 entre 2000-2019. As grandes inundações mais do que dobraram, o número de tempestades severas aumentou 40% e houve um grande aumento nas secas, incêndios florestais e ondas de calor. E, nos últimos anos, mesmo sem a sofisticação das análises científicas, todos nós estamos vendo essas tragédias acontecerem em nossos noticiários.

“É impossível esconder a coincidência destes fenômenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência […] Os elementos naturais típicos que provocam o aquecimento, como as erupções vulcânicas e outros, não são suficientes para explicar a percentagem e a velocidade das alterações registadas nos últimos decênios” (LD 13-14). O aquecimento global é uma ameaça criada pelos seres humanos e não pode ser resolvida sem mudanças radicais em nosso modo de viver e produzir.

Não é possível, contudo, olhar para a questão climática sem dar-se conta das agudas desigualdades das sociedades humanas. “As emissões per capita nos Estados Unidos são cerca do dobro das dum habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres” (LD 72), observa o Papa, citando um relatório das Nações Unidas. Por outro lado, as catástrofes climáticas quase sempre afetam as populações mais pobres. São elas que habitam os territórios mais sujeitos a inundações e deslizamentos de terra, que perdem o trabalho quando as lavouras são perdidas pela seca…

Apresentando alternativas viáveis

Francisco, nesse novo documento, de forma mais enfática, se reporta a propostas que tem se mostrado cada vez mais necessárias e viáveis nos últimos anos. Não se trata de fazer alarmismo em torno a previsões catastrofistas, mas sim de assumir caminhos viáveis para evitar o pior…

Do ponto de vista prático, o Papa reconhece os méritos das medidas de mitigação, que procuram retirar da atmosfera gases responsáveis pelo aquecimento global – a mais conhecida, de grande importância para o Brasil, é a política de créditos de carbono, onde países e empresas poluidoras financiam a manutenção e expansão das florestas que, com a fotossíntese, “sequestram” o gás carbônico atmosférico. Para a Amazônia, por exemplo, é uma grande alternativa de financiamento para um desenvolvimento socialmente justo e economicamente interessante. Contudo, lembra que essas medidas serão insuficientes sem mudanças mais radicais (LD 57).

Diante das ameaças do aquecimento global, o mundo precisa acelerar a substituição das fontes de energia derivadas da queima de combustíveis fósseis por fontes “limpas” (solar, eólica, hidráulica, biocombustíveis). Não se trata de um caminho utópico ou oposto ao progresso. O aperfeiçoamento e a popularização dos carros elétricos é um bom exemplo da viabilidade dessa substituição. Outro ponto, que poucos de nós sabemos, é que o Brasil já é um líder mundial no uso de fontes “limpas”. As fontes de energia limpas respondem por 83% da produção nacional. Nosso país tem uma das matrizes energéticas mais renováveis do mundo, com 48% de fontes renováveis na matriz energética, enquanto o resto do mundo tem apenas 14%.

Laudate Deum incorpora, nesse sentido, as indicações da Agência Internacional de Energia Renovável (ligada às Nações Unidas). Esse organismo internacional defende que os acordos internacionais devem chegar a propostas eficientes, vinculantes (isso é, que não dependam apenas da boa vontade dos países para serem implementadas) e facilmente monitoráveis (LD 59). O Papa, contudo, reconhece que os encontros internacionais têm ficado aquém das expectativas (LD 44ss). Por isso, defende a necessidade de redesenhar o multilateralismo (que é a cooperação entre os países, buscando o bem comum – e não a imposição de normas por um país ou organismo internacional, como alguns maldosamente imaginam). Francisco acredita que, nesse redesenho, deve crescer a importância e a pressão das organizações sociais, buscando sanar as debilidades dos governos (LD 37).

O que nos cabe?

Como o Papa irá salientar no final do documento, cabe a todos nós, sejamos católicos, professemos outras religiões ou mesmo sejamos ateus, lutar para que as mudanças necessárias aconteçam. É um imperativo moral que transcende as religiões ou as posições políticas. Nas palavras de Francisco: “Na própria consciência e pensando nos filhos que pagarão os danos das minhas ações, coloca-se a questão do sentido: Qual é o sentido da minha vida? Qual é o sentido da minha passagem por esta terra? Qual é, em última análise, o sentido do meu trabalho e do meu compromisso?” (LD 33).

Falando de Deus enquanto se enfrenta o aquecimento global

Muitos, contudo, ainda criticam o Papa Francisco por acreditar que ele se preocupa excessivamente com os temas sociais e políticos, dando pouco espaço para a reflexão religiosa.

Nada mais falso! Particularmente no tema ecológico, percebemos que Francisco, desde a Laudato si’ (LS) encontrou nos temas ecológicos uma possibilidade abençoada de falar sobre Deus e seu amor para as novas gerações, sedentas de sentido e amor para suas vidas. O entusiasmo despertado pela atenção do Papa à ecologia não vem só da importância objetiva do tema, mas da percepção, muitas vezes explicitada até por agnósticos e pessoas de outras religiões, de que o Papa fala de uma ternura, de um amor, que trazem beleza e sentido para os temas ecológicos.

O discurso ecológico de Francisco não é uma estratégia comunicativa, que aborda uma questão para “vender” outra, é a expressão natural de sua vida interior. Isso torna ainda mais verdadeiro e sincero seu discurso – mais cativante para um mundo que carece de Amor e Verdade, mesmo quando não reconhece.

Superar o paradigma tecnocrático

Aprofundando sua reflexão ecológica, Francisco mostra que a degradação ambiental em geral, e o aquecimento global, em especial, estão diretamente ligados ao mau uso do poder econômico e tecnológico, por aqueles que procuram o lucro de forma desenfreada, sem limites, sem respeito pelo bem comum e pela natureza. Francisco adverte que se trata de um problema ético, decisões pessoais a serem tomadas na gestão dos empreendimentos, no uso dos recursos e do poder, grande ou pequeno, que cada um tem em suas mãos.

E aqui o Papa reforça um ponto nem sempre adequadamente trabalhado na recepção da Laudato si’. Trata-se do paradigma tecnocrático: “pensar como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”, passando-se à “ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia” (LD 20). Não se trata, evidentemente, de uma crítica ao uso da tecnologia em si, mas de um modo desmedido de pensar o poder e as ambições pessoais. “Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer” (LD 23).

“Todos nós devemos repensar a questão do poder humano, do seu significado e dos seus limites. Com efeito, o nosso poder aumentou freneticamente em poucos decênios. Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornamos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência […] É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos” (LD 28].

A questão do poder não diz respeito apenas a empresários gananciosos, ideólogos prepotentes ou políticos irresponsáveis. Estamos diante de um fenômeno cultural, uma lógica que incide sobre o modo como cada um de nós vê a realidade e se posiciona. Francisco aprofunda esse tema na Laudato si’ (LS): “um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada” (LS 111).

Citando o teólogo Romano Guardini e São João Paulo II, na Laudato si’, Francisco vincula o paradigma tecnocrático ao antropocentrismo desmesurado: “O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade. Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi dotado” (LS 115).

Com palavras sintéticas e duras, o Papa encerra a Laudate Deum dizendo: “um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LS 73).

Um caminho de beleza

Mas nem tudo é denúncia e alarme. Aliás, o sucesso da Laudato si’ se deve, em grande parte, na capacidade de Francisco trazer uma palavra de amor e esperança aos temas ecológicos. Sem dúvida, as pessoas honestas hão de reconhecer que o Papa mostrou que, nas questões ambientais, existe uma enorme busca espiritual e, por isso, um espaço privilegiado para se falar de Deus.

Existe um “caminho da beleza”, uma via pulchritudines, no discurso ambiental de Francisco. Uma beleza decorrente do amor e da ternura evocados pelo Papa, quanto fala de Deus e da natureza. “louvai a Deus por todas as suas criaturas: foi este o convite que São Francisco de Assis fez com a sua vida, os seus cânticos e os seus gestos. Retomou assim a proposta dos salmos da Bíblia e reproduziu a sensibilidade de Jesus para com as criaturas de seu Pai: ‘Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles’ (Mt 6, 28-29). ‘Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus’ (Lc 12, 6). Como deixar de admirar esta ternura de Jesus por todos os seres que nos acompanham no nosso caminho?” (LD 1).

Citando a Laudato si’, retoma os fundamentos de uma espiritualidade ecológica plena de fascínio: “O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus» e, por conseguinte, para ser sábios, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações (LS 86). Neste caminho de sabedoria, não aparece irrelevante aos nossos olhos o fato de tantas espécies estarem a desaparecer e a crise climática estar a pôr em perigo a vida de tantos seres […] as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre» (LS 100). O mundo canta um Amor infinito; como não cuidar dele?” (LD 63-65)

O Papa e a glória de Deus

Há muitos anos, assisti um evento teológico internacional onde os palestrantes eram todos meus amigos. Apenas um deles fez uma exposição que realmente me fascinou. Quando fui dar-lhe os parabéns e comentei minha decepção, ele comentou “eles não têm culpa, apenas ainda não perceberam a glória de Deus”. Não era uma frase presunçosa, ele não queria se considerar superior aos demais. Pelo contrário, queria dizer que não era mais inteligente ou brilhante, apenas tinha a graça de perceber uma beleza que os demais (ainda) não tinham percebido.

O episódio me veio à mente ao ler os vários artigos que foram publicados pelos 10 anos de pontificado do Papa Francisco. A imensa maioria era um balanço das reformas que foram ou não realizadas pelo pontífice e dos desafios que ainda o esperam daqui para frente. Para quem ainda não viu estes artigos, recomendo aquele excelente de Angelo Ricordi, em Aleteia. De certa forma, esse tipo de comportamento é o esperado da imprensa, mas, na maioria dos casos, revela aquela mesma falta de percepção da glória que meu amigo via em nossos colegas. Na vida da Igreja, o mais importante é a glória de Deus – e essa glória não pode ser compreendida em função de mudanças que ocorrem ou deixam de ocorrer.

Compreender um papado, seja ele qual for, implica em perceber as particularidades com as quais a glória de Deus acontece. E “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”, como lembra o Catecismo (CIC 294), citando Santo Irineu de Lion. Não quero aqui negar a importância das reformas iniciadas por Francisco, mas apenas salientar que devem ser vistas como consequências e não como avaliações do que vem acontecendo ou deixou de acontecer.

E não podemos deixar de reconhecer seu papel para todo o mundo de hoje… Francisco se tornou a “pedra de tropeço”, o “sinal de contradição” da sociedade de nosso tempo. Suas muitas fotos abraçando e acolhendo os pobres; as imagens do velho solitário, numa Praça de São Pedro vazia, sob um céu escuro e pesado, rezando a Deus por um mundo tomado pela pandemia (27 de março de 2020) são grandes símbolos das agruras e esperanças de nosso tempo. Para nossa humanidade ferida pelos descaminhos da economia global, pela exclusão, pelo preconceito e pelas consequências da COVID, Francisco vem sendo um grande sinal de esperança.

O que Francisco se propôs a fazer?

“Desejo uma Igreja pobre para os pobres” (Evangelium gaudium, EG 198). Desde suas primeiras declarações, desde a escolha de seu nome como papa, Bergoglio deixou claro que esse era o objetivo de seu pontificado. É fato que a pobreza evangélica é um conceito muito mais complexo que a pobreza econômica. Uma Igreja pobre não é tanto materialmente pobre, é — principalmente – uma Igreja que põe tudo o que tem a serviço dos necessitados, que se despe de seu poder para estar próximo dos mais fracos, que não se deixa levar pela arrogância e proclama a Verdade com absoluta humildade. Os pobres de espírito, que herdarão o Reino dos Céus, são mais que pobres materiais, são todos aqueles humildes que se abandonam à Providência divina, sem se importar com os ganhos materiais, mas procurando sempre o bem dos irmãos.

Por outro lado, aqueles pobres a quem se dirige essa Igreja pobre, desejada por Francisco, são – objetivamente – aqueles que sofrem privações materiais, os que são excluídos e descartados em nossas sociedades, os discriminados e os párias – e, nesse sentido, a Igreja desejada por Francisco faz sim uma opção por alguns grupos sociais. Não se trata, como bem lembram as várias discussões sobre a teologia da libertação realizadas nas últimas décadas, de uma opção excludente. Esses pobres não são os únicos amados e desejados por Deus. Mas quem não optar por eles estará se distanciando do coração de Deus…

Vendo sob essa ótica, não há como negar o sucesso do papado de Francisco. A glória de Deus se manifestou claramente nesses 10 anos por meio de um ancião que mostrou ao mundo o que era a bondade, a atenção pelos últimos, a busca por justiça. Quem tem olhos para ver, que veja; quem tem ouvidos para ouvir, que ouça. Os sinais de Deus são sempre discretos, não se impõem à liberdade humana. Cada um de nós pode ver, em Francisco, aquilo que quiser. Quem quiser reduzi-lo a um líder carismático, mas cooptado pelas ideologias, poderá reduzi-lo nessa perspectiva. Quem já se acha tão bom que não precisa se converter ao seu exemplo, poderá agir assim. Quem quiser achá-lo “um cara legal” e seguir pela vida sem se sentir provocado por seu testemunho, também poderá agir assim.

Um caminho que começa com cada um de nós

Com uma clareza que poderia envergonhar muitos pensadores e influenciadores católicos, Barack Obama declarou que “raro é o líder que nos faz querer ser pessoas melhores. Papa Francisco é um desses líderes”. Não desejo aqui fazer uma nova avaliação do pontificado de Francisco, de seus êxitos e desafios, apenas quero me remeter a essa constatação de Obama: a grande importância de Francisco, para cada um de nós, é sua capacidade de nos aproximar mais de Cristo, de favorecer um encontro (ou um reencontro) que muda nossa vida.

Cada um de nós pode se perguntar o quanto nos aproximamos mais de Deus seguindo o exemplo do Papa Francisco. Ao fazermos isso, poderemos ter surpresas curiosas. Talvez aqueles que mais parecem se identificar com seu pensamento tenham sido os menos impactados: imaginaram que já conheciam sua proposta e não se perguntaram em que podiam mudar. Por outro lado, outros que estavam objetivamente distantes podem ter passado por grandes mudanças, terem percebido com mais clareza o significado do amor de Deus por eles e estarem se aproximando cada vez mais de Cristo. O nosso coração é um mistério insondável até para nós mesmos – mas é o espaço de ação preferencial para a graça.

E as reformas da Igreja? Elas sem dúvida têm acontecido. Talvez não do modo e com a velocidade que cada um de nós ou o próprio pontífice gostaríamos. Mas, aqui vale a citação de Madre Tereza de Calcutá, que ele mesmo fez no início de seu pontificado, falando aos jovens no Rio de Janeiro: “Por onde começar? Por cada um de nós, por eu e você”. Independentemente do sucesso maior ou menor de Francisco, ao propor reformas na Igreja, seu êxito se manifesta em primeiro lugar no coração de cada um de nós, no quanto nos deixamos aproximar de Cristo e de nossos irmãos que mais sofrem nessa “década de Francisco”.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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O cansaço com a política

Estamos cansados de política, devemos mesmo refletir sobre esse tema?
Como dialogar sobre política sem dividir nossas comunidades e famílias?

Os períodos eleitorais – e este ainda mais do que os outros – são marcados por debates enervantes e militantes que tentam a toda força convencer os demais. Isso desgasta o animo da maioria das pessoas e leva a um perigoso descompromisso com as questões políticas. Papa Francisco tem isso muito claro e observa:

“Atualmente muitos possuem uma noção má da política, e não se pode ignorar que frequentemente, por trás deste fato, estão os erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia. E, contudo, poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?” (Fratelli tutti, FT 176).

Uma outra tendência, frequente entre nós, é a de optar pela “antipolítica”: acreditar que um líder autoritário, que supostamente resolveria todos os problemas políticos em nosso lugar, seria melhor do que esse desgastante trabalho de participação democrática. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI 189-191) adverte:

“A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros (cf. JOÃO XXIII. Pacem in terris, PT 73-74, 145), mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa (JOÃO PAULO II. Centesimus annus, CA 46). Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha”.

Francisco mostra que a “antipolítica”, a fuga da participação política ou a opção por uma saída autoritária, não é solução – só agrava o problema. A verdadeira solução é lutar por uma “política melhor”. Na Fratelli tutti, observa “Perante tantas formas de política mesquinhas e fixadas no interesse imediato, lembro que a grandeza política se mostra quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação e, mais ainda, num projeto comum para a humanidade presente e futura […] A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes. E só uma política sã poderia conduzir o processo” (FT 178-179).

É um processo que exige paciência, tenacidade, compromisso com o bem comum e com nossa consciência. “A melhor maneira [do mal] dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores” (FT 15). Não conseguiremos um Brasil ideal da noite para o dia, mas podemos – em comunidade – caminhar para um Brasil que vai melhorando pouco a pouco.

Francisco sabe que esse trabalho político pode ser cansativo e duro, porém lembra-nos que “fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído ‘nas margens da vida’. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade” (FT 68). Quando recusamos nosso compromisso com a política, abdicamos de parte de nossa própria humanidade.

Mas isso não resolve o problema da polarização agressiva e sectária que ameaça dividir nossas famílias e comunidades. Diante desse fato, podemos elencar sete comportamentos que nos ajudam a manter um diálogo aberto e quando chegou o momento de realmente calar-se:

1) Estar sempre pronto a compreender as razões mais profundas das escolhas e posicionamentos do outro. Ninguém quer o mal para si e para aqueles que ama. Toda opção inadequada é o resultado de uma cadeia de conclusões errôneas a partir de um desejo justo de bem. Quando compreendemos as razões pelas quais cada um escolheu a determinada posição, torna-se muito mais fácil desenvolver o diálogo e chegar ao consenso.

2) Procurar não só os erros, mas principalmente os acertos que existem nos argumentos do outro – e aceitar aquilo em que ele está certo, mesmo que parcialmente.

3) Nunca menosprezar o outro ou as pessoas que ele segue. O menosprezo causa ressentimento e dificulta que tanto nós quanto os outros reconheçamos erros e acertos mútuos.

4) Evitar difundir fake news. Normalmente, uma busca rápida usando a ideia central com a palavra “fake” já direciona para um site confiável e especializado em checagem de informações. Os veículos de comunicação também podem errar, mas possuem um nome a zelar e mecanismos de apuração interna que diminuem o risco de informações descabidas.

5) Informar-se, procurando sempre o maior número de informações possíveis sobre a situação. É útil, em especial, consultar bons sites com posições e opiniões diferentes das nossas, para obter dados que normalmente não receberíamos.

6) Não propagar discursos de ódio e raiva. Diante dos descalabros atuais, os comunicadores sociais aprenderam que, quanto mais agressivos forem, mais seguidores conseguem, mas essa prática acaba por ofender os demais e impedir que façamos uma análise serena e racional dos acontecimentos.

7) Não ser insistente: se um grupo nas redes sociais solicita que não se enviem mensagens com temas políticos ou polêmicos, se um amigo ou parente se recusa a continuar um diálogo ou se torna agressivo, é melhor respeitar o contexto. O diálogo deve ser estabelecido entre os que estão dispostos a ele.

Cultura, secularismo e evangelização na ótica do Papa Francisco

As palavras sobre cultura, secularismo e evangelização ditas pelo Papa Francisco, em sua viagem ao Canadá, no discurso às autoridades civis com os representantes das populações indígenas, e na homilia das Vésperas com os bispos e padres, são particularmente esclarecedoras de seu modo de atuar.

A religiosidade, a solidariedade, a capacidade de resistência e de esperança de um povo, para Francisco, estão diretamente vinculadas a sua identidade cultural. Interessante notar que essa é uma posição claramente compartilhada por São João Paulo II. É natural que, para eles, a evangelização tem que ser um processo de inculturação e não de imposição cultural.

Abrir-se ao novo

Na Querida Amazônia (QA 62ss), Francisco se detém nas questões ligadas à inculturação do Evangelho. Quando um povo acolhe o Evangelho, não se repete a cultura do evangelizador, mas se cria uma nova identidade cultural, fruto da ação do Espírito na cultura daquele povo. Por isso “é necessário aceitar corajosamente a novidade do Espírito capaz de criar sempre algo de novo” (QA 69).

O secularismo atual, a tendência de eliminar a consciência de Deus na vida cotidiana, cancelando o direito de expressão pública dos cristãos, é a antítese da inculturação do Evangelho. Francisco observa, nas Vésperas rezadas no Canadá, que esse secularismo pode gerar um olhar negativo, que “nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de ‘armadura’ para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: ‘O mundo é mau, reina o pecado’ [… mas Deus] encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo”.

Assim como a inculturação do Evangelho, também o enfrentamento do secularismo implica numa imaginação criativa, que se abre ao novo. Francisco continua: “o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspeto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral”.

Uma realidade que nos pede humildade

O caso canadense é particularmente doloroso para os católicos, pois aconteceu num período relativamente recente e não respeitou princípios de valorização da cultura e das relações familiares que já eram seguidos no trabalho missionário na América Latina desde o período colonial.

Reconhecer o erro e pedir perdão publicamente não deveria ser um problema para os cristãos. A humildade e a contrição de coração sempre foram valores para nós. As tristes consequências dos escândalos de pedofilia mostram na prática o tamanho do erro de uma mentalidade que procurava minimizar e esconder os erros dos católicos. A humildade de pedir perdão não é submissão às coerções do poder, mas liberdade de quem sabe que é a misericórdia de Deus que salva cada um de nós e o mundo.

“Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”. Essas palavras de Francisco, em seu discurso, não são um questionamento ao anúncio evangélico, mas devem abrir nossos olhos para o perigo, sempre presente, de querermos nos adequar “mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

O Papa não se restringe ao pedido de perdão. Lança um questionamento fundamental em nossos dias: o cancelamento cultural, que lê seletivamente a realidade, vendo os pecados dos cristãos, mas não reconhecendo a contribuição da fé, não é uma forma atual de “colonização cultural” – que acaba desenraizando a cultura popular e deixando os seres humanos mais à mercê do poder?

Em busca de novos caminhos

O ressentimento e o ódio não poderão construir um futuro melhor, seja para as vítimas dos erros do passado, seja para aquelas dos erros do presente. Citando, no discurso acima, a escritora judia-húngara Edith Bruck, o Papa lembra que “a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar”.

A construção de uma cultura mais humana, que respeite o passado, mas abra um caminho para o futuro — continua o Papa — passa por não se entregar aos partidarismos e “recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim como, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens”.

Para superar o secularismo, é preciso renovar o anúncio evangélico, levando “aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé”, nas palavras do Papa durante a homília de Vésperas. Para tanto, Francisco lembra três desafios: (1) fazer Jesus conhecido, pois “nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio”; (2) dar um testemunho credível, no qual “é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras”, (3) construir a fraternidade, “viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum”.

Não seguirmos o espírito do secularismo

Por fim, nas Vésperas, o Papa lança uma advertência: “Não nos esqueçamos de que só podemos enfrentar esses desafios com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus”.

Francisco aponta um caminho, o mundo laico tem se encantado com ele. Cabe a nós, católicos, compreender o seu exemplo, para nos convertermos ao que o Espírito nos pede nesse momento e podermos ser sinal claro para nossos irmãos.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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Imagem a partir de foto de Ross Dunn (Flickr) e pintura de Benjamin West

A doutrina social perante os populismos na América Latina: um tema do qual não podemos escapar

O Observatório Socioantropológico Pastoral do CELAM acaba de publicar Democracia y neopopulismos: alternativas para superar la polarización en América Latina. Não se trata de um texto da própria Conferência Episcopal, mas sim de um documento de trabalho para ajudar a reflexão dos bispos e de toda a comunidade católica.

Salta aos olhos a pergunta: por que a Igreja deve se preocupar com um tema tão claramente político, tão problematicamente partidário? A doutrina social católica deixa claro que o amor cristão é muito concreto e nos impele a colaborar na construção do bem comum, que é a razão de ser da política. Nesse caminho, sem envolver-se com opções partidárias, a Igreja reconhece que a democracia é o sistema de governo que mais colabora com o bem comum. Sendo assim, vê com suspeita as tendências populistas que parecem pôr em risco nossas democracias.

Não cabe aqui resumir ou analisar o documento, disponível online, relativamente extenso e passível de críticas como qualquer obra do gênero. Contudo, algumas observações sobre o tema são importantes para o momento político atual que vivemos.

O que é populismo?

O populismo é uma estratégia de chegada ao poder em regimes democráticos. Caracteriza-se pela canalização, por parte de um líder social, da insatisfação e do ressentimento dos pobres e/ou da classe média contra as elites políticas e econômicas. Dos cinco presidentes brasileiros eleitos diretamente depois do regime militar, apenas Fernando Henrique Cardoso não foi criticado por seus adversários como “populista”. Lula e Bolsonaro foram os mais associados ao populismo, mas a crítica também foi aplicada a Collor e Dilma.

A estratégia populista é tão mais eficiente quanto maior o desencanto e a frustração com o desempenho dos políticos, geralmente tidos como interesseiros e corruptos, e a fragilidade da máquina pública em garantir a justiça e o bem-estar da população. Além disso, pode se apresentar como a única viável quando as organizações da sociedade civil e as instâncias democráticas parecem não conseguir construir um sistema político realmente comprometido com o bem comum da população e não com os interesses dos poderosos.

Democracia implica em controle social – e nossa democracia brasileira é fraca. A maioria dos eleitores não acompanha o desempenho dos políticos eleitos e os candidatos mais votados são frequentemente personalidades midiáticas, sem um histórico de engajamento social, ou lideranças comprometidas com esquemas de poder tradicionais. A ineficácia da justiça, quando se trata de condenar e punir corruptos, demonstra a força dos esquemas corporativistas, consolidados no próprio arcabouço legal, que em nome da defesa do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado frequentemente criam condições para acobertar a corrupção. Apesar da insistência das mídias e até da justiça eleitoral, a maioria dos partidos continuam fragmentados, organizados numa perspectiva corporativista e não programática – e estão entre as instâncias consideradas menos confiáveis pela população. Nas eleições atuais, esse desencanto com os políticos e partidos se evidencia na dificuldade da chamada “terceira via”, que é, mais do que um caminho intermediário entre extremismos de esquerda e direita, a defesa das elites políticas institucionalizadas frente às lideranças personalistas de Lula e Bolsonaro.

Uma ameaça à construção democrática

A estratégia populista, com a vinculação direta da massa de eleitores a um líder que promete resolver os problemas gerados pelo fracasso do sistema democrático, pode ser utilizada tanto pela esquerda quanto pela direita. O lado perdedor é sempre a própria democracia, pois o populismo, no fundo, é autoritário. Atrela a mudança a uma determinada liderança pessoal e inibe o fortalecimento político das várias instâncias da sociedade organizada (tidas como ameaças a quem está no poder). Além disso, o governante populista, tendo se viabilizado sem o necessário suporte institucional e com uma base social forte, mas pouco articulada, termina enredado no corporativismo e no clientelismo das elites políticas tradicionais, repetindo esquemas fisiológicos que não consideram o bem comum.

O populismo pressupõe a lógica do “nós contra eles”, de certa forma inevitável em seu discurso, dificultando a construção de consensos necessários à organização da sociedade, ao desenvolvimento social e econômico. Ao culpabilizar o outro por todos os problemas sociais e econômicos, inibe a reflexão crítica e a construção do realmente novo. Implica numa adesão acrítica ao discurso do líder e/ou de seu grupo, associando-se à disseminação de notícias falsas e à deturpação da realidade.

Menos evidente é o perigo que o populismo representa para os próprios valores que pretende defender. Numa sociedade livre e plural, o convencimento é muito mais convincente que a mera imposição. O controle dos meios de comunicação ou da máquina estatal só é realmente eficiente quando articulado com um discurso capaz de convencer a população, em particular os jovens. O populismo, porém, uma vez no poder, imagina que o simples controle social pode garantir os valores que defende. Com isso, no plano cultural, permite a erosão gradual desses valores e inibe a busca construtiva de novos caminhos.

A superação do populismo na doutrina social da Igreja

O termo “populismo” era pouco presente na doutrina social da Igreja até recentemente. Contudo, a valorização das organizações sociais (ou dos “corpos intermédios”, nos termos usados até a publicação do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 356-357), a insistência na participação (CDSI 189ss) e a ênfase da sociedade organizada como contrapeso ao poder tanto do Estado quanto dos mercados (Caritas in veritate, CV 38) indicam claramente uma posição de “simpatia pela democracia” (Centesimus annus, CA 46) e desconfiança em relação ao populismo.

Com um bom senso tipicamente católico, Francisco, na Fratelli tutti observa que líderes populares que conseguem transformar as estruturas injustas são um bem para a sociedade (FT 169). Contudo, podem se revelar muitas vezes como demagogos que enganam o povo, ao invés de servirem ao bem comum (FT 156-162). Ideólogos de direita tendem a ver demagogia populista em qualquer tentativa de aumentar a participação popular e melhorar a distribuição de renda da população. Ideólogos de esquerda tendem a ver demagogia populista em qualquer defesa da ordem social ou dos valores morais tradicionais.

O fato é que a população quer justiça social, condições de vida dignas, respeito a seus valores morais e segurança. Grande parte de nossos problemas de engajamento vem da tendência dos grupos políticos de lutarem por algumas bandeiras e não levarem outras em consideração. É comum se dizer no Brasil que “o povo não sabe votar”. O problema maior, contudo, é que “as elites não sabem governar”, deixando o povo sem opções e entregue a líderes populistas de esquerda ou direita. Governos populistas são, de certa forma, um ponto de passagem no processo de amadurecimento democrático na América Latina. Isso não quer dizer que sejam obrigatórios, mas sua recorrência e duração depende em grande parte da capacidade de políticos e instituições democráticas conseguirem atender a população em suas reivindicações básicas.

A superação dessa situação só poderá acontecer com o aumento da participação; o fortalecimento, em todos os níveis, das organizações sociais e a formação de lideranças políticas cada vez menos personalistas e mais comprometidas com o bem comum. Por outro lado, implica em lideranças sociais realmente empenhadas em escutar a população, reconhecendo tanto suas necessidades quanto seus valores (FT 15-17).

O desenvolvimento humano integral (Populorum progressio, PP 4-21), que abarca todas as dimensões tanto da sociedade quanto da pessoa, e se propõe a chegar a todos, pode ser considerado como o caminho necessário para a superação dos populismos. Sem essa visão integral, as conquistas parciais obtidas em certos setores ou por certas categorias sociais não são suficientes para consolidar o amadurecimento democrático de uma nação.

Francisco Borba Ribeiro Neto

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O que o Documento de Aparecida diz para cada um de nós?

Em 2007, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) realizou a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, com o lema “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida” e que resultou no Documento de Aparecida. O então Cardeal Jorge Mário Bergoglio presidiu a comissão de redação do texto e seu conteúdo tem um vínculo amplamente reconhecido com o pontificado de Francisco. Em 2021, a pedido do Papa, o CELAM iniciou uma ampla retomada continental desse Documento, que culminou num texto, recém-lançado, intitulado “Nossas dívidas com Aparecida: balanço 15 anos depois”.

Como essas reflexões podem ser úteis para cada um de nós? Um dos erros mais comuns, no estudo dos documentos eclesiais, é fazer uma leitura seletiva, onde procuramos as passagens que confirmam nossas ideias prévias e deixamos de lado os trechos que não se adequam a nossos pensamentos. Outro erro comum é fazer uma reflexão genérica, de caráter teológico e sociológico, que não incide em nossa vida. Em oposição a essas duas posturas, aquela justa é a de perguntarmo-nos “o que Deus quer me dizer com esse texto?” – pois, na verdade, nada que diga respeito à Igreja tem sentido se não passar pela conversão de nossos corações.

O discipulado missionário

O ponto de partida do Documento de Aparecida – bem como de toda trajetória religiosa do Papa Francisco – é, sem dúvida alguma, o encontro com Cristo. A pessoa apaixonada espelha, em tudo que faz, a sua paixão. O discípulo, diz Francisco, é aquele que “permanece” com o Senhor, que se deixa guiar por Ele. Não uma postura moralista ou discernimento meramente intelectual, mas um “estar junto”, uma companhia afetiva que ilumina a caminhada.

Esta paixão, este permanecer, é (ou deveria ser) nosso modo de sermos discípulos de Jesus, um dos eixos fundamentais das reflexões de Aparecida. Discursando aos bispos latino-americanos durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro (2013), Francisco propôs critérios que bem poderiam orientar um “exame de consciência” de cada um de nós sobre como vivemos esse discipulado. Em primeiro lugar, o discipulado é “missionário”. Essa paixão por Cristo não nos fecha em nós mesmos, numa postura intimista, mas é vivida indo-se ao encontro do irmão, se ocupando de suas necessidades, comunicando a ele a alegria que vivemos. Quem se fecha em si mesmo, ainda que com boas justificativas, como excesso de trabalho ou saúde precária, não vive plenamente esse “discipulado missionário” – mas, se nos propusermos a tal, Deus nos ajuda a superar qualquer dificuldade e realizar o seguimento a Cristo e o encontro com os irmãos. Nesse discurso aos bispos, o Papa ainda adverte tanto contra as reduções sociologizantes quanto às intimistas (que chamou “ideologização psicológica”) da fé, alerta contra o intelectualismo dos “católicos iluminados” e o desejo de uma “restauração” de disciplinas e valores – que podem até ser justos, mas acabam se confundindo com uma dinâmica meramente humana.

Para que todos tenham vida

O lema de Aparecida, “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que Nele nossos povos tenham vida”, reafirma a centralidade de Cristo tanto em nossa caminhada humana – é Nele, não em riquezas, prazeres ou ideologias, que temos a vida – quanto na promoção humana, pois o discípulo missionário não pode estar alheio a tudo aquilo que diminui e avilta a vida de nossos povos.

As condições de pobreza material e as injustiças sociais estão entre os maiores desafios a nosso discernimento cristão. Ninguém, em sã consciência, poderá duvidar que tanto a vida terrena de Jesus quanto a atuação histórica da Igreja estão marcadas pelo compromisso para com os mais pobres e fragilizados, sempre na busca da realização da justiça e do amor. Contudo, as formas pelas quais a justiça se realizará e a pobreza será superada são questões polêmicas, carregadas de visões ideológicas e politizações. Muitos cristãos se negam a enfrentar esses problemas, outros abraçam uma posição ideológica que lhes parece conveniente e até instrumentalizam a mensagem cristã para se sentirem legitimados. Nenhuma dessas posições é possível para aquele que deseja viver como um “discípulo missionário”. Somos convidados a enfrentar o risco da ideologização, o aborrecimento causado pelos discursos sectários, as dificuldades e o cansaço do trabalho comprometido com a realização do bem comum.

Um olhar que nasce da fé e da oração

Mas como superar a ameaça da ideologização da fé? No discurso acima citado, Francisco lembra dois aspectos importantes das reflexões em Aparecida, que muitas vezes são perdidas por serem dadas por “óbvias”. Em primeiro lugar, a importância da “oração com o Povo de Deus”, pois os bispos não apenas tinham sua rotina de orações, mas também estavam perto do Santuário e da movimentação e oração dos peregrinos que o visitavam. Depois, lembra que não existe um “ver” neutro, toda compreensão da realidade se dá a partir de um quadro referencial. Então, se pergunta Bergoglio, “com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo”.

Não existe discernimento cristão sem oração – e a oração não é intimista, é um ato íntimo, mas que se conecta a toda a comunidade cristã. Essa postura orante, “em saída”, não determinada apenas por nossos sofrimentos e aspirações, não é óbvia e pode exigir um grande trabalho de conversão de cada um de nós. Por outro lado, nesses tempos de incertezas morais, batalhas ideológicas e polarização política, poder ver o mundo com os olhos de Cristo deveria ser um dos nossos esforços mais importantes.

A Introdução e o primeiro capítulo do Documento de Aparecida são particularmente instrutivos do que seja esse olhar a que se refere o Papa Francisco. Ao retomarem, em rápidas pinceladas, a caminhada da Igreja em nosso continente, os bispos recordam as “luzes e sombras” dessa história, feita por seres humanos e sujeita às nossas contradições e pecados, mas nunca perdem de vista a gratidão e a alegria pelos dons recebidos. Como iriamos ver mais tarde nos vários escritos do Papa Francisco, o Documento nos mostra um olhar cristão que é sempre humilde, nunca triunfante, sempre repleto de fascínio e gratidão pelo amor e pela beleza dos dons recebidos.

Esses capítulos, que podem até parecer óbvios e formais, apontam para uma postura diante da realidade carregada de fascínio pela beleza, cheia de alegria e gratidão pelos dons recebidos, permanentemente comprometida com o bem dos irmãos. É um modo cativante de viver a fé, mais do que suficiente para justificar a retomada do Documento. Como dizem os bispos, citando Bento XVI:

“Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Nº 12).

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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