O protagonismo da pessoa: ensinamento da Doutrina Social da Igreja

Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da UNIFESP – campus São Paulo e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

Há séculos a filosofia política estabeleceu uma confiança maior no Estado do que na pessoa. Nas vertentes autoritárias, isso justificou muitas das modernas ditaduras. Nas vertentes liberais, levou a uma confiança desmedida nas leis, como se a letra escrita fosse suficiente para criar a justiça na prática. É mais fácil pensar no ser humano como mau, egoísta ou incapaz de bem; e acreditar que toda vez que ele tiver oportunidade desfrutará, usurpará e tornar-se-á lobo do seu irmão. É muito difícil, hoje em dia, pensar que possa não ser assim. Essa visão negativa do ser humano está na origem da confiança no Estado (por vezes, absoluta!) como única garantia do bem e da justiça.

Mas esta não é uma visão cristã. A Doutrina Social da Igreja parte de outra visão antropológica e não abandona a confiança no ser humano como única origem real de mudança. Os cristãos sabem que a solução verdadeira para o bem comum é a religiosidade autentica e o amor ao próximo que brotam do coração do ser humano e não, antes de tudo, do controle do Estado.

É verdade que o mal nasce no coração do ser humano, mas o bem também nasce nesse mesmo coração. Por isso, a Doutrina Social da Igreja tem como ponto de partida a centralidade, unidade e liberdade da pessoa. Diz que devemos partir da pessoa e de suas livres agregações antes que do Estado. É por isso que valoriza, antes de tudo, a família e os corpos sociais intermediários (as associações civis). É absolutamente urgente e fundamental que nós católicos conheçamos e estudemos a Doutrina Social da Igreja. Esta é a nossa melhor contribuição para o país: que os católicos brasileiros ofereçam a todos a sabedoria de sua tradição. Se não o fizermos, quem o fará? Os brasileiros podem estar assim fadados a conhecer (e acreditar) somente em outras visões antropológicas, tão amplamente difundidas nas escolas brasileiras.

O Papa Francisco disse recentemente que o católico precisa se envolver com política e reafirmou que a política é a forma mais alta de caridade. O exercício da política vivida de forma cristã tem como ação o cuidar de todos e não só de si mesmo. Todos sabemos que nossos políticos atuais estão no espectro oposto ao que a tradição cristã entende como real ação política. Mas, e isso também é o fundamento da fé cristã, não podemos nem devemos nos resignar.

Não há nada mais distante de Cristo do que a posição fatalista, negligente ou niilista.Por fim, a Doutrina Social da Igreja diz que o caminho para o bem comum é reforçar a sociedade e não agigantar o Estado (como infelizmente ocorreu no Brasil).“A comunidade política e a sociedade civil, embora reciprocamente coligadas e interdependentes, não são iguais na hierarquia dos fins. A comunidade política está essencialmente a serviço da sociedade civil e, em última análise, das pessoas e dos grupos que a compõem.

A sociedade civil não pode ser considerada um apêndice ou uma variável da comunidade política: pelo contrário, ela tem preeminência” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI  418). E ainda, “o Estado tem o dever de secundar a atividade das empresas, criando condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-a onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise” (CDSI 351). (…) “uma intervenção direta (do Estado) excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparatos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas” (CDSI 354).

Está é a mudança que o Brasil precisa urgentemente.

Jornal O São Paulo, edição 3155, 14 a 20 de junho de 2017.

Veja também: A Igreja diante do mal-estar da sociedade contemporânea      Você tem fome de que? De tempo        Um diálogo necessário  

 

 

Imagem: Ettore e Andromaca, de Giorgio de Chirico (detalhe).

                           

Uma ameaça secular

Marcelo Musa Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila”, para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella. .

No livro Uma Era Secular, o filósofo Charles Taylor identifica três sentidos da palavra “secular”. O primeiro é o mais comum de separação entre Igreja e Estado consagrado na maioria dos ordenamentos jurídicos em vigor. O segundo é aquele que contempla o fato de que a frequência às igrejas e seus ritos é, hoje, largamente minoritário. O catolicismo pode conviver com ambos, ainda que não sem danos. A invenção do casamento civil, por exemplo, tirou a união entre o homem e a mulher do lugar em que havia sido posta pelo livro do Gênesis e a entregou aos cartórios. Foi só o primeiro passo para o desastre a que se assiste hoje. Os católicos, porém, continuamos a acreditar que o casamento é a união indissolúvel entre um homem e uma mulher. Quanto ao segundo sentido, a validade dos sacramentos não depende de quórum. Não importa quanta gente vá à celebração da eucaristia para que a presença real de Jesus no mundo continue.
Há, porém, um terceiro sentido de “secular”. “Esse se concentraria nas condições de crença, ” escreve Taylor. “A mudança para a secularidade nesse sentido consiste, entre outras coisas, num movimento de uma sociedade em que a crença em Deus não era desafiada e, de fato, não era problemática, para uma em que essa crença é uma opção entre outras. ” Taylor prossegue: “Posso achar inconcebível abandonar minha fé, mas há outras pessoas cujo modo de vida não posso desprezar como depravado, ou cego ou indigno, que não têm fé (ao menos não em Deus, ou no transcendente). A crença em Deus não é mais axiomática. Há alternativas. ”
Essa mudança ameaça o catolicismo por dentro. Quando a crença em Deus passa a ser uma alternativa entre tantas disponíveis aos membros da comunidade que habitamos, é porque essa crença passou a integrar um conjunto logicamente superior que abarca essas alternativas. Se a crença em Deus não é mais axiomática, isto é, se ela não serve mais de fundamento para tudo o que se pensa. Algo tem que ocupar o posto de fundamento para explicar tudo, inclusive, a partir de agora, a crença em Deus. Esse conjunto secular de alternativas de que faz parte a crença em Deus é, para a cultura dominante hoje, o das várias dimensões do ser humano. A crença em Deus seria uma das manifestações possíveis de uma dimensão, digamos, espiritual.

Dessa forma, é possível alguém ser católico e acreditar firmemente que sua alternativa é a melhor ou mesmo a única correta, evitando, assim, o relativismo denunciado pelo papa Bento XVI. Ainda assim, esse católico poderá estar na condição de achar que a sua é a única alternativa correta, mas é uma alternativa, isto é, algo intrinsecamente humano, medido, portanto, pelos mesmos critérios que as demais dimensões da vida humana. Uma vida plena seria aquela vivida numa sociedade justa e honesta, mantida por um trabalho útil, bem-remunerado e satisfatório, com saúde e equilíbrio em todos os papeis a que se é chamado, com a crença em Deus coroando tudo isso.  Ter-se-á perdido de vista, nessa situação, quanto dista da vida neste mundo, por mais perfeita que ela seja, aquilo que a confiança em Deus acarreta. Essa secularização da alternativa cristã tornou opaca a transcendência, única aposta que importa. É quase inadmissível, para um tipo de catolicismo que vai se tornando cada vez mais dominante, a fala de São Paulo, para quem “o viver é Cristo e o morrer é lucro”, escrita há quase dois mil anos em sua epístola aos Filipenses, a ideia ainda ecoava nos versos de Santa Teresa de Ávila, no início da Idade Moderna: “Vivo sem viver em mim/e tão alta vida espero/que morro porque não morro.”

Publicação original: Jornal O São Paulo, edição 3183, 24 a 30 de janeiro de 2018

Veja também: A Igreja diante do ma-estar da sociedade contemporânea      Você tem fome de que? De tempo        Um diálogo necessário  

 

Imagem: Montagem a partir do Cristo de São João da Cruz, de Salvador Dali.

                            

Apreensão de livros com temática LGBT e doutrina social da Igreja

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP .

A ordem do prefeito Marcelo Crivella, para apreensão, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, de obras em quadrinhos com temática LGBT, acabou tendo um efeito totalmente oposto ao desejado por ele. Foi cancelada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e foi alvo de uma crítica duríssima do decano da mesma Corte, Celso de Mello. A imprensa veio em defesa da obra, aconteceram várias manifestações contra o que se qualificou de censura e as vendas dessa edição foram 60% superiores às da anterior.

Independentemente de uma avaliação de princípios, os resultados da iniciativa foram desastrosos para quem pretende combater a ideologia de gênero. Mas essa ordem estaria de acordo com a doutrina social da Igreja?

 

A necessária proteção aos menores

Estando em sintonia com as famílias e a sociedade, é dever do Estado zelar pelo bom desenvolvimento psicoafetivo e moral de crianças e jovens – e isso implica em um estatuto jurídico adequado com relação a meios de comunicação social, revistas, filmes, etc. (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações educativas sobre o amor humano. Linhas gerais para uma educação sexual, 1983, nº 68).

Não se trata de uma consideração particular da doutrina social da Igreja. As legislações nacionais dos diferentes países sempre contemplam normas para proteger crianças e jovens, que ainda estão formando seu discernimento, de uma exposição inadequada à pornografia e a violência arbitrária.

A ordem do prefeito do Rio de Janeiro apresentava, nessa perspectiva, dois problemas: (1) tinha uma base jurídica falha, que permitiu sua contestação na Suprema Corte; (2) não contava com o necessário respaldo da sociedade, seja por oposição ou simples omissão da maioria.

Muitos argumentarão – com razão – que existe hoje uma hegemonia da ideologia de gênero tanto nas cortes quanto na mídia brasileira. Mas esse é um fato, e diante dele cabe a pergunta “o que fazer?”.

 

Alguns pontos essenciais

Antes de continuar, é importante relembrar três pontos essenciais do magistério católico com relação à temática LGBT, bem expostos no documento “Homem e mulher os criou”: para uma via de diálogo sobre a questão de gender na educação (2019), da Sagrada Congregação para a Educação Católica.

1) A distinção sexual entre masculino e feminino e sua complementariedade afetiva são constitutivas da natureza humana. Nelas se dá a mais plena realização da pessoa.

2) O reconhecimento – evidente na sociedade atual, mas não só nela – de que alguns não vivenciam essa distinção e essa complementariedade não justifica nem sua relativização, nem a discriminação dessas pessoas. Nessa perspectiva, um exemplo de abordagem inequivocamente fiel à ortodoxia católica e aberta à condição homoafetiva é apresentado – na prática – pelo apostolado do Courage.

3) Tendo esses pontos bem definidos, o caminho de superação da ideologia de gênero passa por uma adequada educação afetivo-sexual, que não separe o prazer sexual de uma visão integral do amor, e do diálogo que procura a verdade e o bem do outro.

 

Como dialogar

A mentalidade contemporânea tem uma visão relativista e autocentrada do que seja diálogo. Ele é entendido mais como dois monólogos simultâneos, onde cada um diz o que pensa e depois vai embora sem se incomodar com o outro.

Curiosamente, os primeiros grandes “Diálogos” da filosofia ocidental, aqueles de Platão, mostram uma dinâmica totalmente diversa do relativismo contemporâneo. Seu mestre, Sócrates, partia de um entendimento crítico das ideias do outro, para daí levá-lo à verdade.

De modo similar, o verdadeiro diálogo cristão parte de uma “empatia”, um desejo inicial de conhecer e querer o bem do outro, para que ambos façam uma reflexão compartilhada, onde buscam juntos a verdade.

 

Uma distinção fundamental

Na medida que o educando tem capacidade para entender as argumentações, é nesse diálogo que todo esforço educativo se desenvolve – de forma consciente ou não. Por meio desse diálogo, ele percebe que o educador deseja o seu bem, que valores e normas são para seu pleno desenvolvimento como pessoa e não para limitar sua liberdade.

De modo análogo, nas democracias, a autoridade do Estado é reconhecida na medida em que o governante realiza atos percebidos pela sociedade como voltados ao bem comum e ao desenvolvimento de cada pessoa. Quando não há essa percepção, as ações do governante são vistas como autoritárias – independentemente das boas ou más intenções do proponente.

Essa percepção do que é ou não autoritário, do que é proposto para o bem da pessoa e do que representa apenas limitação a sua liberdade, é um dos principais alimentos da ideologia de gênero. Proposições justas, mas que não souberam ser adequadamente apresentadas aos jovens, foram interpretadas ao longo da história recente como autoritárias e, portanto, ilegítimas. Enquanto isso, outras proposições se fizeram passar por libertadoras e razoáveis – mesmo que não correspondessem à natureza mais profunda do ser humano.

Por isso, a tentativa de apreensão de livros com temática LGBT acabou sendo reconhecida não como uma ação contra a pornografia voltada a jovens – única razão que poderia justificar a ação – mas sim como um exercício autoritário de censura. Esse não será o caminho que ajudará os jovens a um pleno desenvolvimento de sua afetividade e de sua sexualidade, numa perspectiva integral de pessoa.

 

Veja também: É possível não ser ideológico?      Um diálogo necessário    A formação em doutrina social da Igreja 

Imagem: Pixabay

                           

A formação em doutrina social da Igreja

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP .

O contexto político brasileiro tem feito muitos católicos procurarem novamente orientação na doutrina social da Igreja. Isso é muito bom e positivo, mas traz de volta dois velhos problemas que são (1) a pouca formação da comunidade cristã em doutrina social e (2) a contaminação ideológico-partidária na sua interpretação.

O grande problema dos formadores que trabalham com o tema é a ideia, muito difusa, de que a dificuldade reside na falta de conhecimento teórico da doutrina. De fato, a maior parte dos católicos tem uma visão muito superficial dos conceitos do ensinamento social da Igreja, mas esse não é nosso maior desafio.

Grande parte dos conceitos da doutrina social, como o valor da pessoa e da solidariedade, são naturais para quem tem uma formação cristã. O problema é que reconhecer esses valores não nos permite automaticamente aplicá-los, ainda mais em uma conjuntura polarizada e ideologizada como a nossa.

O esforço formativo que acabamos fazendo é muito centrado no oferecimento da teoria (que parece isenta de comprometimentos ideológicos) e pouco voltado à aplicação prática dos conceitos (um discernimento que estará obrigatoriamente em diálogo com programas partidários e ideologias). Com isso, fazemos como uma autoescola que desse a habilitação para o aluno apenas depois das aulas teóricas, sem necessidade da prática de direção – e, ao perceber que ele não está apto a guiar o carro, aumentasse o número de aulas teóricas ao invés de dar aulas práticas.

A comunidade católica em formação, para poder aplicar a doutrina social da Igreja em seu cotidiano, precisa ser ajudada pelo formador a ter um discernimento cristão sobre as questões práticas. Isso exige o domínio dos conceitos, mas integrando o conteúdo teórico com a reflexão aplicada. À medida que os problemas vão se tornando mais complexos e os questionamentos ideológicos mais agudos, o cristão vai percebendo a necessidade de aprofundar a teoria e descobrindo a importância de ideias que lhe pareciam pouco úteis ou óbvias inicialmente.

O ponto forte da doutrina social da Igreja, se analisada unicamente em seu aspecto de pensamento prático, portanto comparável com as grandes correntes laicas da filosofia política, é sua integralidade – a capacidade de reunir elementos positivos normalmente presentes em diferentes correntes teóricas.

Um exemplo clássico é a combinação de opção pelo pobre e reconhecimento do direito da propriedade privada, temas que dividiram esquerda e direita durante boia parte do século XX, que a colocaram entre as precursoras das ideias de responsabilidade social e de políticas de inclusão – hoje amplamente reconhecidas no mundo laico (cf. Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 171-184).

Por essa combinação de elementos aparentemente díspares nos debates políticos, a doutrina social raras vezes nos dará uma resposta inequívoca a uma pergunta como “em quem devo votar?”. Na aplicação prática de seus conceitos, sempre haverá espaço para conclusões diferentes – o que não quer dizer que todas as posições sejam aceitáveis. Sempre existirão posições totalmente irreconciliáveis com a dignidade da pessoa e o bem comum. Por outro lado, dificilmente uma posição político-partidária será tão perfeita a ponto de não poder ser questionada e melhorada à luz do pensamento social cristão.

Cabe aos líderes eclesiais e formadores buscarem sempre uma posição de equilíbrio, não querendo impingir à comunidade suas próprias preferências partidárias, mas ajudando cada um a aplicar os princípios da doutrina social para um discernimento integral da realidade, que favoreça o diálogo e a descoberta do bem comum.

 

Veja também: É possível não ser ideológico?      Um diálogo necessário     Nem direita, nem esquerda, mas sim integral

                           

A Igreja diante do mal-estar da sociedade contemporânea

Ivanaldo Santos, doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

 

Sigmund Freud, em “O mal-estar na civilização”, popularizou a ideia de  que existe um mal-estar que povoa a mente humana, que angustia a sociedade e o indivíduo. Para ele, esse mal-estar não tem exatamente uma cura, mas é fruto das tensas relações entre a consciência e o inconsciente, entre a busca pela realização pessoal e as forças socioculturais. Nessa perspectiva, o ser humano está mergulhado, ao longo da história, dentro do mal-estar, que se manifestou, por exemplo, na queda do império romano, na revolução francesa, nas crises econômicas e nas duas grandes guerras mundiais do século XX.

Numa leitura cristã da tese freudiana, pode-se afirmar que esse mal- -estar foi iniciado com a queda do ser humano do paraíso e vai ser concluído apenas no final dos tempos, quando o Reino de Deus será plenificado de forma que “Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” (Ap 21,4).

O mal-estar, descrito por Freud, manifestou-se com força nas primeiras décadas do século XXI, marcadas por ameaças de guerras nucleares, pela nova guerra fria, por guerras comerciais, pela formação de blocos ideológicos e econômicos, pela crise dos refugiados, pelo crescimento do terrorismo e dos cartéis de drogas, pelo populismo, por novas ditaduras e muito mais. O Brasil não fica de fora desse mal-estar. É um país afetado, desde 2013, por ondas de protestos populares nas ruas, por crises políticas e institucionais, pelo impeachment de uma presidente da República e, nos últimos dias, pela greve dos caminhoneiros – que paralisou e ameaçou levar o País ao caos. Parece que o País se transformou numa espécie de microcosmo do mal-estar presente no século XXI.

Diante do mal-estar que cresce – com ares de caos – no século XXI, qual o papel da Igreja, enquanto “caminho da salvação” (At 16,17)?

Se levarmos em conta a tese freudiana, o mal-estar é algo inerente à natureza humana. O ser humano, a cada século, tem uma crise, uma angústia que, por razões diversas, precisa de algum tipo de encaminhamento. Mas, no século XXI, de um lado, o ser humano possui armas e tecnologia suficiente para se autodestruir e destruir toda e qualquer vida na Terra e, do outro lado, a missão da Igreja é anunciar e ajudar a construir o “novo homem” (Ef 2,15), um modelo civilizatório em que não haverá mais o mal-estar, mas sim um ambiente de superação dos conflitos, das angústias, do sofrimento, da dor e da morte.

Diante do mal-estar presente na sociedade contemporânea, do qual o Brasil é um grande exemplo, a Igreja é tentada a tomar partido, a ser mais uma ideologia, a ser mais uma instituição humana a anunciar caminhos fáceis para o ser humano. É bom recordar que o fascismo, nas décadas de 1930 e 1940, parecia um caminho de salvação fácil para o homem.

No mundo contemporâneo, incluindo a recente e angustiante experiência vivida pelo Brasil, a Igreja não deve aceitar o rótulo, o papel de mera instituição ideológica, de mero palanque político. A Igreja está a serviço de Deus e da humanidade e não de partidos ou ideologias políticas. Deve também ser caminho para “desfazer a inimizade” (At 16,17) entre os seres humanos, entre as instituições, entre os grupos políticos e demais organizações sociais. É preciso ter consciência que o mal-estar, descrito por Freud, só terá fim quando uma instituição tiver a coragem de dizer que os seres humanos são filhos de Deus e que, por isso, são iguais e têm responsabilidades compartilhadas e integrais. O ser humano está destinado ao Reino de Deus, mas é missão da Igreja ajudar a construí-lo. Para isso, a Igreja precisa ser caminho de unidade, caminho de renovação para todos os indivíduos e todos os grupos socioculturais.

Publicação original: Jornal O São Paulo, 27 de Junho de 2018

Foto: Edvard Munch, Entardecer em Karl  Johan Street (1892), pixelsniper, flickr

As políticas públicas à luz do amor

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

 

“O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem” (BENTO XVI, Deus caritas est, DCE 28). Muitas vezes, quando dizemos, corretamente, que as políticas públicas são uma responsabilidade do Estado, nos esquecemos dessa verdade tão simples quanto profunda: as pessoas necessitam de amor e não haverá plena justiça sem amor.

Em nossas sociedades, no passado, a assistência social e a promoção humana eram tarefas das comunidades cristãs, antes de serem assumidas pelo Estado moderno. Santas Casas, escolas paroquiais, asilos e orfanatos são todas obras que nasceram como “obras de caridade” da comunidade cristã e que cumpriam (e ainda cumprem) funções hoje englobadas pelas políticas públicas a cargo do Estado.

Ao longo dos séculos, nossa compreensão dos problemas sociais e das estratégias para sua superação cresceu muito. Medicina, pedagogia, serviço sociai e tantos outras áreas conexas permitem trabalhos muito mais eficientes de promoção humana. O Estado, ao assumir as tarefas consignadas hoje em dia como políticas públicas, ratificou o compromisso da universalização do atendimento e estabeleceu novos marcos para os direitos humanos. A profissionalização dos serviços trouxe ganhos evidentes em relação ao amadorismo que vigorava nas instituições do passado.

Tudo isso é muito bom, mas voltemos ao dizeres de Bento XVI: não há ordenamento estatal justo sem o amor. Muitas organizações eficientes do Terceiro Setor atestam, na prática, que a dedicação nascida do amor às pessoas traz novos ganhos de eficiência e supera os limites nascidos da burocratização e da politização dos serviços, mesmo nas modernas condições de trabalho social.

O amor não se tornou desnecessário, mas ganhou novos desafios, como a superação da ineficiência decorrente do amadorismo, da despolitização do assistencialismo e da ideologização do trabalho politizado. Ao mesmo tempo, o crescimento das iniciativas de voluntariado e das organizações do Terceiro Setor mostra que não só os assistidos que tem necessidade desse amor socialmente engajado, também aqueles que não estão em situação de carência precisam praticar esse amor para superar “uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada” (FRANCISCO, Evangelii gaudium, EG 1).

Organizar e garantir políticas públicas eficientes são tarefas do Estado e a população brasileira tem que estar atenta para que sejam cumpridas o melhor possível, mesmo com a crise financeira e de governança que temos enfrentado em todos os níveis. Contudo, essas políticas não são responsabilidade exclusiva do Estado. À luz do amor, todos somos responsáveis por elas, seja cobrando os governos para que cumpram suas funções, seja colaborando em obras sociais bem orientadas e estruturadas.

Quando a Campanha da Fraternidade nos convida a olhar as políticas públicas, não faz uma ideologização da caridade (que seria sua instrumentalização a um projeto de poder), mas sim nos ajuda a compreender o vínculo obrigatório entre a caridade e a construção do bem comum.

 

Publicação original: Jornal O São Paulo, 20 março 2019

Foto: O Bom Samaritano, Michele Abastante, Wickmedia

Um diálogo necessário

Klaus Brüschke, membro do Movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova e articulista da revista Cidade Nova.

 

Na conjuntura atual, muito polarizada, creio ser não só interessante como também urgente, particularmente para a comunidade católica – mas não só para ela – a existência de espaços de diálogo para a análise da situação à luz do Ensinamento da Igreja. Trata-se de um enorme desafio, pois não estamos habituados a fazer isso de maneira plural, sem nos limitarmos a considerações sobre princípios gerais ou interpretarmos o Magistério segundo nossas perspectivas pessoais.

Tais espaços deveriam, portanto, permitir não apenas a exposição de várias possibilidades de leitura da realidade, mas servir também ao discernimento do que estamos vivendo e ao testemunho desse processo dialógico.

Esses espaços poderiam, em certo sentido, atender às Diretrizes da Ação Evangelizadora recentemente aprovadas pela CNBB, constituindo, dentro de seus limites e especificidades, “pequenas comunidades eclesiais virtuais missionárias”, vivendo em espírito de comunhão e partilha, na medida que esse meio consente, onde as pessoas “estão unidas no nome de Jesus” (cf. Mt 18,20).

Por diálogo entende-se aqui não somente uma exposição recíproca e educada de diferentes pontos de vista, mas uma metodologia de “escuta” profunda e atenta recíproca. O Papa Francisco insiste em que escutemos. Fala em escutar a Palavra e também escutar o outro (Discurso aos representantes da sociedade civil, Paraguai, 11 de julho de 2015). Nesses espaços, cada um haveria de escutar a Palavra (ao escrever) e escutar o outro (ao ler seu texto). Isso significa despojar-se de pré-conceitos, procurando não só entender o mais profundamente possível o que o outro quis dizer, mas também o porquê de ele dizer aquilo.

Nesse caminho, cabe ter clareza de que não possuímos a verdade – quando muito, ela nos possui. E essa distinção não vem de nenhum autor “relativista” atual, mas do próprio Papa Bento XVI (cf. BENTO XVI. Discurso à Cúria Romana na apresentação de votos natalícios. Vaticano, 21 de dezembro de 2012). O relativismo, paradoxalmente, é a “verdade” pessoal tornada absoluta. O Papa Francisco, ao falar em diálogo, diz que devemos ter abertura, saber que nosso pensamento é incompleto, nossa verdade é aberta (cf. Entrevista ao padre Antonio Spadaro, 19 de agosto de 2013). A verdade que compreendemos é relativa a um absoluto, que é Deus, a Verdade. Gosto da expressão “verdade relacional”, a verdade que descobrimos, discernimos, aprofundamentos juntos, na relação – implicando aqui todo o esforço “coletivo” de nos aproximarmos da verdade e de suas interpretações.

O Papa Francisco, certa vez, usou o termo parresia, referindo-se à franqueza, a “coragem e a sinceridade ao dar testemunho” (cf. Discurso em no Encontro com a Comunidade dos Focolares, 10 de maio de 2018). No pressuposto da mútua e contínua caridade, a franqueza não só pode ser praticada, como é um dever: dizer tudo o que se pensa, oferecendo-o com humildade como uma dádiva.

Por outro lado, quando aplicamos as Escrituras, a Tradição e o Evangelho nas realidades humanas concretas, realizamos uma “interpretação”. E a “interpretação” é sempre limitada com relação à ideia. Assim, é preciso ter a tranquilidade de saber que nossas compreensões são cultural e historicamente colocadas e, portanto, em constante processo. Não se pode ter a pretensão, nessas análises, de afirmar coisas definitivas.

Mantendo esse espírito, é preciso captar os “sinais dos tempos”, também mediante a escuta de outras vozes com as quais talvez não compartilhemos completamente os pressupostos e as análises. Certamente também essas vozes podem ser portadoras de exigências autênticas ou mesmo de “sementes da verdade”, possibilitando pontes de diálogo (cf. SÃO JOÃO PAULO II, Discurso no encontro com o mundo da cultura, Cuba, 23 de janeiro de 1998).

Espaços assim constituídos terão sempre duas dimensões: uma ad intra, no sentido de oferecer aos cristãos subsídios para sua reflexão e atuação como “sal da terra e luz do mundo”; outra, ad extra, no sentido de um espaço de diálogo com outros homens e outras mulheres da sociedade que igualmente compartilham inquietações e esperanças numa sociedade mais fraterna.

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É possível não ser ideológico?

Formação e ensino da doutrina social da Igreja


Foto: John Lloyd, Flickr.com

É possível não ser ideológico?

Por Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Na atual polarização da sociedade, quase todos acusam e/ou são acusados de ideológicos. Muitos consideram, num ceticismo relativista, que não é possível não ser partidário – e, portanto, ideológico – nos temas polêmicos. Será que é mesmo impossível superar as ideologias?

O pensamento social católico identifica a ideologia com uma visão reduzida da pessoa e da realidade. Neste sentido, todos somos mais ou menos ideológicos, pois só Deus pode ver o mundo em sua totalidade, sem nenhuma redução. Nós, seres humanos, sempre teremos uma visão reduzida das coisas. A ideologia é como que um “´pecado original” da inteligência.

Contudo, como nos lembra o Papa Francisco, todos nós somos pecadores, mas nem por isso precisamos nos tornar corruptos, isso é, nos conformarmos e até gostar do pecado (cf. O nome de Deus é misericórdia, São Paulo: Ed. Planeta, 2016). Nunca estaremos totalmente isentos de ideologias, mas podemos escolher um caminho que nos aproxima da verdade ou nos conformarmos a elas, nos tornando seus propagadores.

Um caminho intelectual para superar as ideologias, enquanto visões reduzidas da realidade que são, passa naturalmente por procurar o conhecimento integral da realidade. Podemos apreender apenas parte da realidade, mas se nos contentamos com uma parcela, sem procurar a totalidade, nos tornamos ideológicos. Quando procuramos a integralidade, mesmo que nunca a alcancemos totalmente, vamos nos aproximando da verdade.

Na luta contra as ideologias, o maior perigo é se considerar livre delas. Aquele que se considera sem ideologia deixa de ter a vigilância necessária para perceber quando o pensamento ideológico passa a dominar o seu discernimento.

O esforço sincero de diálogo com quem pensa diferente, por outro lado, é o melhor antidoto contra as ideologias. Contudo, esse diálogo deve ser sincero: procurar entender as razões do outro e não simplesmente ficar procurando seus erros. Não conseguimos dialogar se vemos o cisco no olho do outro, sem perceber a trave no nosso (cf. Mt 7, 5).

Assim, todos que defendem o diálogo como caminho para solucionar os problemas da sociedade, consideram que compreender o outro é o primeiro passo diante das polêmicas. Mas esse esforço para compreender o outro poder se tornar ele mesmo ideológico, pois não vemos o outro como ele realmente é, mas sim com uma visão preconceituosa que fizemos dele.

Por traz de toda ideologia influente existe um desejo de bondade e beleza, que foi adulterado, mas é a causa do êxito daquela proposta. Quando procuramos conhecer como esse desejo se manifesta no outro, superamos os nossos preconceitos e o relativismo hegemônico, nos aproximamos da verdade e nos afastamos das ideologias.

Esse caminho não é específico do cristão. Todos que desejam o bem do outro e da sociedade, podem e devem trilhá-lo. Contudo, o cristão tem uma força a mais para empreendê-lo: a segurança e a liberdade dos que se descobrem amados por Deus.

A insegurança e o medo, as necessidades e a luta pelo poder, nos afastam tanto da busca pela verdade quanto da proximidade com o irmão. Quando inseguros e angustiados, em tudo vemos perigos e ameaças.

Aquele que “espera e confia no Senhor” (Sl 37), pois encontrou o seu amor em Cristo, tem a liberdade de procurar a verdade, sem medo e tranquilo diante das ameaças do mundo, pois sabe que a bondade de Deus determina seu futuro e daqueles que ama.

Por isso, superar as ideologias depende também de um caminho ascético de encontro com Cristo.

Veja também:

Doutrina social da Igreja, políticas públicas e ideologia

Nem direita nem esquerda, mas sim integral

 

Imagem: The False Mirror, por Paul Hudson (Filckr.com)

A doutrina social e o realismo nos dados sobre desmatamento

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

 

Um conjunto de declarações (e algumas ações) do governo fizeram da divulgação de dados ambientais um dos assuntos mais debatidos recentemente na mídia brasileira. A doutrina social da Igreja pode nos ajudar a ter um discernimento sobre essa questão?

O magistério católico, desde Paulo VI, se posiciona em favor da causa ambiental (veja aqui). Assim, a ecologia integral da Laudato si’ (LS, 2015) não pode ser considerada uma “derrapada ideológica” do magistério recente, mas sim o amadurecimento de uma tradição.

 

Realismo e sinceridade

Contudo, como todo tema de interesse social, o debate ambiental é polêmico e ideologicamente contaminado. O próprio Papa Francisco reconhece que “às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é selecionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles políticos, econômicos ou ideológicos” (LS 135).

Essa observação já traz em si um início de resposta para a questão. Temos que procurar sempre as informações completas, tanto aquelas que nos agradam quanto aquelas com as quais inicialmente não concordaríamos. Não se pode ocultar ou negar os dados que nos contrariam, mas precisamos sempre situá-los no contexto mais amplo, para não “comprar gato por lebre”. É isso que devemos entender por um “olhar integral”, realista e não ideológico, dos fatos.

Assim, iniciativas devem basear-se nas análises e pareceres científicos mais embasados, ainda que sempre sujeitos à falibilidade humana. O magistério salienta, porém, que diante dos temas polêmicos devem prevalecer a responsabilidade e a prudência (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2004, CDSI 469). Num tema controverso, devemos minimizar os riscos e não agir de forma imprudente.

Como tudo isso se aplica à polêmica com dados sobre desmatamento na Amazônia divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)?

Em primeiro lugar, temos que considerar que esses dados são produzidos segundo metodologias certificadas e acompanhadas pela comunidade científica internacional. Seria irrealista e ideológico negar os dados sem apresentar argumentos técnicos que mostrassem uma adulteração ou falha na obtenção das informações (veja aqui e aqui duas análises das informações que mostram tanto a validade quanto alguns possíveis desvios ideológicos na sua interpretação).

 

Agropecuária e conservação da Amazônia

Tendo os dados bem situados, conhecendo sua representatividade e seu alcance, vem a pergunta: qual o seu significado real para o meio ambiente e a sociedade?

Comparado a outros grandes países do mundo, o Brasil ainda tem uma elevada proporção de áreas preservadas. Isso se deve, contudo, mais à falta de crescimento econômico que ao uso de práticas agrícolas conscientes ao longo da história.

A floresta amazônica, de difícil acesso e ocupação, permanece pouco degradada, mas sua equivalente litorânea, a mata atlântica, em função de uma agricultura predatória, está reduzida a poucas manchas espalhadas pelo País.

Atualmente, contudo, o agronegócio tem adotado práticas sustentáveis e não se pode mais associar diretamente agricultura e degradação. Trata-se de um caminho de toda atividade econômica no mundo: à medida que os problemas ambientais se tornam mais graves, os próprios empresários percebem que ter atitudes conscientes e proativas em relação ao meio ambiente aumentam a produtividade e o valor de seu patrimônio, facilitam a venda de seus produtos e concorrem para a melhoria da qualidade de vida deles próprios e de suas famílias.

Além disso, na região amazônica a produtividade agrícola não aumenta com o desmatamento, pois o importante é a adoção de técnicas de produção adequadas às características do ecossistema, que pode ser muito produtivo, mas também é muito frágil. Tanto é que o valor da produção agrícola na Amazônia só cresceu no período em que o desmatamento mais caiu (2004-2013).

A manutenção de práticas ecológicas sustentáveis é uma condição para que nossos produtos agrícolas e madeiras sejam exportados para os países ricos, que frequentemente impõem barreiras comerciais a produtos e países que degradam os ecossistemas. Vários países exigem certificações ambientais para a compra de nossos produtos. Por isso, para os proprietários rurais, a devastação da floresta não é interessante.

O problema é que a produção agrícola brasileira enfrenta desafios de infraestrutura e produtividade. Para alguns, pode parecer mais tentador aumentar o volume e o lucro com as exportações aumentando a área plantada e relaxando as medidas ambientais que investindo em infraestrutura e ganhos de produtividade. Mais tentador, porém menos eficiente e mais danoso a médio prazo para a economia, a sociedade e o ambiente.

Dizer que toda atividade agropecuária é danosa ao meio ambiente não faria justiça a muitos produtores rurais que buscam desenvolver práticas sustentáveis em suas propriedades. Dizer que todos eles são plenamente confiáveis e que as atividades de monitoramento e fiscalização são desnecessárias ou persecutórias não reconheceria a falibilidade inerente à condição humana. As duas posições seriam desvios ideológicos que não olham a pessoa humana tal qual ela é.

 

Buscar o diálogo

Não se constrói o bem comum demonizando os que pensam diferente, sejam eles pesquisadores, produtores rurais, ambientalistas ou políticos; omitindo ou manipulando dados, seja para minimizar ou maximizar a real dificuldade. Pessoas bem e mal intencionadas existem em todos os lugares, o importante é sempre somar com os que procuram a verdade e o bem comum.

Então, qual é o melhor caminho a seguir? Dialogar, em busca de entendimento e soluções integrais para os problemas; buscar um verdadeiro desenvolvimento tanto econômico quanto social, que leve em conta tanto os potenciais quanto as limitações do meio ambiente.

Trilhar esse caminho de equilíbrio e visão integral não significa ser ambíguo ou débil diante dos desafios da realidade ou dos confrontos ideológicos, mas sim agir com a sabedoria e a fortaleza necessárias para encontrar as reais soluções dos problemas.

 

Veja também: Doutrina social da Igreja e políticas públicas em meio ambiente

 

Foto: Fabian M., Flickr.com 

Corrupção, cultura e responsabilidade

Por Rafael Marcoccia, doutor em Ciências Políticas pela PUC-SP e professor do Centro Universitário da FEI

Estamos presenciando uma forte crise política no País. Mas, ainda que estejamos indignados com a situação, estamos também, em geral, passivos. Passivos porque, se é verdade que emitimos as nossas opiniões (de forma inteligente), cobramos as responsabilidades (como temos mesmo de fazer) e exigimos a justiça, ao mesmo tempo, assistimos aos acontecimentos da crise como se fossem uma realidade distante de nós, sem nos reconhecermos como parte dela.

Somos parte da crise não simplesmente porque somos afetados por ela, mas porque ela própria é fruto do nosso posicionamento. Podemos defender ou não o atual governo, gostar ou não do atual presidente, ser de direita ou de esquerda. Ou ainda, querer novas eleições logo ou aguardar o fim de 2018. Mas, em geral, o que mais se lê na imprensa e nas redes sociais, ou se ouve nas conversas nas ruas, nos bares com os amigos, parte da mesma premissa: depositamos a responsabilidade de mudar a sociedade, que é de todos os que a compõem, em um único membro, o presidente, ou, no máximo, em uma classe, a política.

Frustrados em nossas expectativas, encontramo-nos indignados e desanimados, e o discurso gira em torno de frases como “político é tudo igual mesmo”, ou “temos que punir os culpados”, ou ainda “o Brasil não tem jeito”. Esse discurso do momento pode carregar dois problemas: culpar sempre o outro; e partir de um posicionamento que se satisfaça apenas com a punição.

Esses problemas parecem ter sua origem na nossa cultura, que privilegia uma postura individualista. Percebemos a gravidade dos fatos, mas nos interessamos mais pelas nossas obrigações pessoais do dia a dia. E a ideia que acaba prevalecendo é a de que “tenho minha vida para levar”. Assim, colocamos os nossos problemas individuais como sendo prioritários em relação aos sociais. Não entendemos que os problemas sociais são igualmente relevantes também para toda pessoa. E isso é também uma forma de corrupção. Santo Agostinho dizia que corrupção é o coração (cor) rompido (rupto).

Há, então, níveis de corrupção. Uma corrupção em nível político-social, como a que nós temos visto. Uma corrupção cotidiana, o “jeitinho brasileiro”, em que são cometidas infrações aceitas e acobertadas pela sociedade. E, por fim, uma corrupção individual, pela qual a pessoa abandona seus valores e aspirações mais íntimas em função das imposições da própria dinâmica social atual. A crença na solidariedade, ou a ideia de que ela nos levaria a construir um mundo melhor, é substituída pelo medo da violência, pela falta de confiança no outro, fazendo com que pensemos que apostar no ser humano é uma postura demasiada ingênua para os dias de hoje.

Contudo, ainda que constatemos uma marca forte do individualismo em nossa cultura, e que a corrupção esteja presente tanto no nível social quanto no pessoal, encontramos diversos exemplos de atos verdadeiramente solidários, ou melhor, verdadeiramente sociais em nossa cultura.

Sendo assim, o que parece razoável é pensarmos nos problemas políticos que o País vem passando, passou e provavelmente irá passar, não de uma maneira passiva, em que apenas se emite uma opinião ou se exige um direito (como o da punição), mas valorizando espaços de produção de cultura real que nos sustentem, a todos (políticos e homens comuns), em uma posição construtiva, capaz de favorecer a autocrítica e a retomada contínua dos ideais.

Publicação original: Jornal O São Paulo, 13 de setembro de 2017.


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