Com o tema dos valores cristãos colocados no centro do debate político atual, cresce tanto a necessidade quanto a oportunidade de amadurecermos nosso discernimento sobre esses valores. Quais são os grandes valores do cristianismo? Como eles são implementados na sociedade? Quais são as maiores ameaças que enfrentam? No último artigo, comentamos a relação entre os valores cristãos e a laicidade do Estado: os valores da fé não podem ser impingidos aos demais, implicam numa adesão livre de cada um de nós, e o poder estatal, que pode forçar a conduta humana, mas não pode mudar a profundidade de nosso coração, não é um justo guardião desses valores.
Esse tema pode ficar mais claro a partir das reflexões propostas por três livros que imaginam sombrios cenários futuros, escritos por um católico ortodoxo russo (V. S. Soloviev, 1853-1900), um sacerdote anglicano convertido ao catolicismo romano (R. H. Benson, 1871-1914) e um autoproclamado “socialista democrático” (George Orwell, 1903-1950).
Distopias futuristas
Na virada do século XIX para o XX, Soloviev escreveu o Breve conto sobre o Anticristo (São Paulo: Editora Antroposófica, 2003) e Benson escreveu O senhor do mundo (Campinas: Editora Ecclesiae, 2013). As duas obras, escritas em realidades diferentes, mas olhando com olhos proféticos o que seriam os séculos XX e XXI, falam de um futuro onde o Anticristo viria para a batalha final visando destruir a Igreja e dominar o mundo. Muito diferentes no estilo e no tamanho, ambas partem da mesma intuição: o Anticristo não será um senhor mal e terrível, mas sim um líder sedutor, que trará a paz e o bem-estar desejadas pela humanidade, sendo seguido por quase todos. Aliás, para se apossar da Igreja chegará até mesmo a propor sua reconstrução (!?!), mas não como obra divina, e sim como obra dele, o Anticristo. Apenas uns poucos fieis a Cristo perceberão a armadilha, pois este líder sedutor conquistará os corações humanos não para sua definitiva libertação, mas sim para subjugá-los na escravidão de uma desumanidade inicialmente consentida, mas nem por isso menos infeliz.
O Anticristo de Soloviev e Benson se aproxima tanto das ideologias que encantaram a humanidade no século XX quanto daquelas que a encantam neste início de século XXI. Suas propostas parecem boas e desejáveis, parecem trazer justiça, autonomia, paz e bem-estar às pessoas. Mas são enganosas porque não contemplam a natureza mais profunda do ser humano e acabam se revelando estratégias de dominação. O Anticristo está lá onde o poder e a força parecem condições necessárias para se chegar à felicidade, onde a ética parece impossível ou conflitante com a liberdade, onde os outros parecem um empecilho a nossa realização pessoal. Ele nos corrompe fazendo-nos crer que nós também precisamos, para sermos felizes e construir um mundo melhor, do poder humano e de relativizar certos valores para preservar outros – que devemos agir como os maus para vencer o mal.
Lutando contra o inimigo, podemos acabar nos assemelhando a ele. Assim, George Orwell, em A Revolução dos Bichos (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), imagina uma fazenda onde os animais expulsam os humanos opressores e passam a gerir a propriedade. Os porcos assumem a liderança e um dia têm que negociar sua produção com comerciantes humanos. Os outros animais, amedrontados e solidários aos porcos, ficam olhando o encontro pela janela, mas não conseguem distinguir os porcos dos homens. O grande perigo da nossa época é este: os salvadores aparentes se identificam aos opressores, as ideologias humanistas se revelam desumanas quando aplicadas na prática. Porém, mais perigoso ainda para os cristãos: nós mesmos, querendo construir o bem, poderemos nos tornar “soldados do Anticristo”. Para isso, basta que confiemos mais nas ideias e no poder humano que no amor e na graça de Deus. Muitas vezes encontramos cristãos muito decididos em defender os valores da fé e da tradição, mas que no fundo estão defendendo a suas próprias convicções e procurando o poder, sem o desejo de anunciar o amor, a beleza e a alegria do Evangelho.
O maior valor é o próprio Cristo
Amar uma pessoa é muito diferente de amar uma ideia – mas nem sempre essa diferença é tão evidente quanto parece. Muitos filhos se ressentem de que seus pais parecem amar mais um projeto de futuro que traçaram para eles do que eles mesmos (e temem até perder o amor dos pais se não se adaptarem a esse projeto). Muitos militantes acreditam amar o povo, mas na verdade amam a um projeto político que construíram para o povo. Os escribas e os fariseus dos tempos de Jesus seguiam as leis e os preceitos mais por um amor à norma e à ordem do que por um amor sincero a Deus.
Numa sociedade plural, em continua mudança, impregnada pela crítica e pelo anseio de felicidade (frequentemente mal direcionado), amor a uma ideia, a um valor abstrato (por mais justo que seja) ou a um código ético formal tornam-se instrumentos de dominação, fatores de desumanidade, armas do Anticristo imaginado por Soloviev e Benson. Amamos pessoas, antes de ideias. Reconhecemos um valor na medida que percebemos que ele realmente faz bem às pessoas. Nosso código ético é aquele que nasce do amor a Deus e ao próximo.
A ordem dos fatores, nesses casos, altera muito o produto. Primeiro, nos descobrimos amados. Porque nos descobrimos amados, nos propomos a também amar. Porque amamos, reconhecemos que alguns valores – e não outros – são verdadeiros e constroem um mundo melhor. Quando começamos pela defesa dos valores, e não pelo amor recebido, perdemos a capacidade de olhar a pessoa concreta, suas necessidades e as formas pelas quais todos nós podemos viver os valores justos como instrumentos de realização de nossa humanidade.
“A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus”. A famosa frase de Santo Irineu de Lion comporta vários desdobramentos possíveis. Em primeiro lugar, a glória de Deus não é uma norma ou um valor abstrato, mas a vida de cada um de nós. Mas a nossa vida não se realiza plenamente sem “a visão de Deus”. A companhia pessoal de Deus não é um elemento místico intimista, mas um fato que se realiza em nosso cotidiano. Ele está conosco – e sua companhia é o maior valor que vivemos, que podemos testemunhar para o mundo, legar àqueles que amamos, transmitir a nossos filhos e às futuras gerações.
Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia
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