Seguindo os princípios irrenunciáveis

Existem “princípios irrenunciáveis” que nascem da doutrina social da Igreja?

Sim, existem, mas devem ser adequadamente compreendidos para serem propostos ao mundo…

Em primeiro lugar, temos que lembrar que os princípios da doutrina social da Igreja, ainda que iluminados pela fé, referem-se à natureza do ser humano e da história (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 72-75, 83-84). Nesse sentido, podem ser compartilhados mesmo por quem não compartilha da fé católica, conforme já vimos anteriormente. Então, num mundo relativista como o nosso, consideramos esses princípios “irrenunciáveis” pois eles se referem àquelas coisas que fazem com que nos percebamos como humanos. Por exemplo, um ser humano tem uma dignidade intrínseca que deve ser respeitada; contudo, nos damos conta do nosso próprio valor como pessoas no seio de uma família, em primeiro lugar por meio do amor e da dedicação que nossos pais nos deram. Uma pessoa que não tenha vivenciado esse amor familiar, ou o tenha vivenciado de forma deformada, terá muito mais dificuldade para se dar conta da própria dignidade. Por isso, tanto a dignidade fundamental da pessoa (com tudo aquilo que implica) quanto a família são princípios irrenunciáveis para qualquer ser humano, não importa qual a sua confissão religiosa.

Por outro lado, temos que reconhecer que nos damos conta de quais princípios são irrenunciáveis principalmente no momento em que são proclamados ou que estão em risco. Por exemplo, no passado, em sociedades onde a maioria da população era iletrada, tanto o direito quanto a liberdade de educação não seriam enunciados pelas pessoas. Nessas mesmas sociedades, a família poderia também não ser apresentada como princípio irrenunciável, pelo simples fato que haveria uma concordância geral sobre esse tema e as pessoas pensariam em outros direitos ligados à constituição da família (por exemplo, direito a uma remuneração justa), ao invés de pensarem na própria família como um direito.

A Congregação para a Doutrina da Fé, em 2002, publicou a Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, na qual propunha a existência de “princípios irrenunciáveis” que deveriam orientar a conduta política dos católicos. O texto não trazia um elenco sistemático de princípios, apenas alguns exemplos que, na época, pareciam mais prementes. O combate à corrupção, por exemplo, é um princípio irrenunciável evidente (cf. CDSI 411), mas que não está listado no documento. A defesa da vida, que estava em pauta na maior parte dos países europeus na época, é amplamente citada, mas outros princípios também são citados, como a liberdade e a paz.

Sem fazer um elenco completo, mas procurando apenas dar exemplos, a Nota Doutrinal já citada lista cinco “princípios irrenunciáveis”: (1) o direito à vida, (2) a proteção e promoção da família, (3) a liberdade – em particular religiosa e de educação, (4) a economia a serviço da pessoa e (5) a construção da paz. Todos são irrenunciáveis, não podemos escolher um e esquecer outros.

Candidatos e partidos frequentemente respeitam alguns desses princípios e desrespeitam outros. Além disso, existem aqueles que declaram seguir esses princípios na teoria, mas os traem na prática. Por isso, o simples enunciado desses princípios não é suficiente para resolver nosso problema de discernimento político. Para aplicarmos esses princípios de forma adequada, precisamos superar uma visão reduzida, orientada por um falso “realismo político”. Muitos acreditam que chegar ao poder é a única forma de conseguir aquilo que almejamos. Para tanto, acreditam ser “realista” abdicar de certos ideais em nome de outros. Uns, em nome da opção pelos pobres, deixam de lutar contra o aborto. Outros, em nome da defesa da vida, fecham os olhos à situação dos mais pobres.

Quando caímos nesses reducionismos, perdemos a unidade e a coerência interna do Magistério católico, permitindo a instrumentalização da doutrina social e dando razão às dúvidas de nossos irmãos. A postura justa é aquela de sempre buscar uma visão integral e unitária de todos esses princípios, orientada ao diálogo e à construção do bem comum (cf. CDSI 162).

Se nosso candidato ou grupo político trai algum desses princípios, nosso dever é alertá-lo e exortá-lo a uma adesão mais completa e integral a todos eles – mesmo que isso signifique uma perda política. Podemos chegar até ao ponto de deixar de darmos nosso apoio ao político. O que não podemos é fechar os olhos quando algum desses princípios é abandonado, com alegações como “o adversário faz pior” ou “temos que aceitar isso para defender aquilo”.

Dois princípios são particularmente úteis para nos orientar nos debates brasileiros atuais: (1) a defesa da vida e (2) a economia a serviço do bem comum (que podemos identificar com a opção preferencial pelos pobres, nos termos mais comuns na América Latina). São particularmente importantes porque representam polos antagônicos nos discursos partidários hegemônicos, e considera-los juntos nos ajuda a superar as polarizações ideológicas. Quando falamos em defesa da vida, temos que ter em mente que não se trata apenas do combate ao aborto e à eutanásia, também se morre antes da hora por fome e por violência. A economia a serviço do bem comum, por sua vez, deve tomar o combate à pobreza como prioridade, mas integrando-a à defesa do meio ambiente e a verdadeira promoção humana.

Uma abordagem interessante para estudar essa integração entre esses dois princípios (defesa da vida e opção preferencial pelos pobres) é ler os artigos que falam deles tanto no Compêndio da Doutrina Social da Igreja quanto na Fratelli tutti (FT) e depois refletir e dialogar sobre eles em conjunto, sem se ater a um ponto ou outro em especial. Desse modo, percebemos uma visão unitária de defesa tanto da vida quanto dos mais frágeis, orientada pelo amor social e rumo a uma política melhor. A seguir, apresentamos uma sugestão de pontos a serem lidos:

  • A vida como primeiro valor a ser defendido, o aborto e a eutanásia (CDSI 155), as lições da pandemia (FT 54-55) e a defesa do mais frágil (FT 188).
  • O direito de todos à vida e à dignidade (FT 106-111).
  • Os pobres na tradição bíblica (FT 74, CDSI 323-325).
  • A situação da pobreza no mundo de hoje (CDSI 3, 5, 449) e a função da doutrina social (CDSI 81).
  • A primazia da pessoa (CDSI 105-107), o descarte tanto das coisas quanto das pessoas (FT 18-24),
  • O papel social da propriedade (FT 118-120, 137-138) e a destinação universal dos bens (CDSI 182-184).
  • A economia (CDSI 332-335, FT 33-34, 168-169) e a globalização (CDSI 362-367).
  • O trabalho (CDSI257) e a superação dos assistencialismos (FT 162)
  • A criação de laços e o combate ao individualismo (FT 87), o valor da solidariedade (FT 116),
  • A política como ato de amor (FT 187), a empatia (FT 218-220), a paz social (FT 233-235).

O cansaço com a política

Estamos cansados de política, devemos mesmo refletir sobre esse tema?
Como dialogar sobre política sem dividir nossas comunidades e famílias?

Os períodos eleitorais – e este ainda mais do que os outros – são marcados por debates enervantes e militantes que tentam a toda força convencer os demais. Isso desgasta o animo da maioria das pessoas e leva a um perigoso descompromisso com as questões políticas. Papa Francisco tem isso muito claro e observa:

“Atualmente muitos possuem uma noção má da política, e não se pode ignorar que frequentemente, por trás deste fato, estão os erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia. E, contudo, poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?” (Fratelli tutti, FT 176).

Uma outra tendência, frequente entre nós, é a de optar pela “antipolítica”: acreditar que um líder autoritário, que supostamente resolveria todos os problemas políticos em nosso lugar, seria melhor do que esse desgastante trabalho de participação democrática. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI 189-191) adverte:

“A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros (cf. JOÃO XXIII. Pacem in terris, PT 73-74, 145), mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa (JOÃO PAULO II. Centesimus annus, CA 46). Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha”.

Francisco mostra que a “antipolítica”, a fuga da participação política ou a opção por uma saída autoritária, não é solução – só agrava o problema. A verdadeira solução é lutar por uma “política melhor”. Na Fratelli tutti, observa “Perante tantas formas de política mesquinhas e fixadas no interesse imediato, lembro que a grandeza política se mostra quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação e, mais ainda, num projeto comum para a humanidade presente e futura […] A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes. E só uma política sã poderia conduzir o processo” (FT 178-179).

É um processo que exige paciência, tenacidade, compromisso com o bem comum e com nossa consciência. “A melhor maneira [do mal] dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores” (FT 15). Não conseguiremos um Brasil ideal da noite para o dia, mas podemos – em comunidade – caminhar para um Brasil que vai melhorando pouco a pouco.

Francisco sabe que esse trabalho político pode ser cansativo e duro, porém lembra-nos que “fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído ‘nas margens da vida’. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade” (FT 68). Quando recusamos nosso compromisso com a política, abdicamos de parte de nossa própria humanidade.

Mas isso não resolve o problema da polarização agressiva e sectária que ameaça dividir nossas famílias e comunidades. Diante desse fato, podemos elencar sete comportamentos que nos ajudam a manter um diálogo aberto e quando chegou o momento de realmente calar-se:

1) Estar sempre pronto a compreender as razões mais profundas das escolhas e posicionamentos do outro. Ninguém quer o mal para si e para aqueles que ama. Toda opção inadequada é o resultado de uma cadeia de conclusões errôneas a partir de um desejo justo de bem. Quando compreendemos as razões pelas quais cada um escolheu a determinada posição, torna-se muito mais fácil desenvolver o diálogo e chegar ao consenso.

2) Procurar não só os erros, mas principalmente os acertos que existem nos argumentos do outro – e aceitar aquilo em que ele está certo, mesmo que parcialmente.

3) Nunca menosprezar o outro ou as pessoas que ele segue. O menosprezo causa ressentimento e dificulta que tanto nós quanto os outros reconheçamos erros e acertos mútuos.

4) Evitar difundir fake news. Normalmente, uma busca rápida usando a ideia central com a palavra “fake” já direciona para um site confiável e especializado em checagem de informações. Os veículos de comunicação também podem errar, mas possuem um nome a zelar e mecanismos de apuração interna que diminuem o risco de informações descabidas.

5) Informar-se, procurando sempre o maior número de informações possíveis sobre a situação. É útil, em especial, consultar bons sites com posições e opiniões diferentes das nossas, para obter dados que normalmente não receberíamos.

6) Não propagar discursos de ódio e raiva. Diante dos descalabros atuais, os comunicadores sociais aprenderam que, quanto mais agressivos forem, mais seguidores conseguem, mas essa prática acaba por ofender os demais e impedir que façamos uma análise serena e racional dos acontecimentos.

7) Não ser insistente: se um grupo nas redes sociais solicita que não se enviem mensagens com temas políticos ou polêmicos, se um amigo ou parente se recusa a continuar um diálogo ou se torna agressivo, é melhor respeitar o contexto. O diálogo deve ser estabelecido entre os que estão dispostos a ele.

Violência eleitoral: o pior cenário

O recente assassinato de um petista por um bolsonarista, em Foz do Iguaçu, trouxe uma carga a mais de tragédia numa campanha eleitoral que todos já temem ser particularmente violenta no Brasil. Na sociedade brasileira, a violência política sempre esteve presente, ainda que poucas vezes nos demos conta disso. Ela parece um fenômeno excepcional, como a facada em Bolsonaro, na campanha para as últimas eleições presidenciais. Mas, infelizmente, a realidade é bem diferente do que imaginamos…

Na última eleição municipal (2020), o Observatório da Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, registrou 485 casos de violência eleitoral praticados contra políticos, incluindo ameaças, agressões, atentados, sequestros e até homicídios (que responderam por 21% das ocorrências).  Nos primeiros seis meses de 2022, o número de casos de violência eleitoral registrados por esse grupo de pesquisa já é 23% maior do que o de 2020 (214 contra 174 ocorrências). E devemos considerar que, em 2020, as eleições eram municipais, com um número muito maior de candidatos do que em 2022, quando são estaduais e nacionais.

A análise estatística realizada pela equipe do Observatório mostrou que a violência não estava associada particularmente a uma posição de direita ou esquerda, apesar de nossa tendência de sempre querer associar o mal àqueles que estão do lado oposto ao nosso no espectro ideológico. A maior parte das vítimas são brancos, com formação universitária, mas isto reflete apenas o fato de a maioria dos políticos brasileiros terem esse perfil pessoal. Segundo essa análise, os políticos que têm mais chance de serem vítimas de violência, sendo menos numerosos na população, mas sofrendo proporcionalmente mais ataques, são os não brancos, de baixa escolaridade e de cidades pequenas. Repete-se assim, na política, o padrão de vulnerabilidade à violência que perpassa nossa sociedade como um todo.

Um cenário a ser evitado a qualquer custo

A violência política é o resultado extremo de um quadro de insuficiência de uma democracia. Mostra que as instituições políticas e de segurança pública não estão à altura do desafio de garantir a participação, a justiça e a construção do bem comum na sociedade.

Países com democracias bem estabelecidas, com sociedades bastante seguras, podem enfrentar casos de violência contra políticos. É o caso recente do Japão, com o assassinato de Shinzo Abe, ex primeiro-ministro, praticado por uma pessoa desequilibrada, num evento totalmente desvinculado dos embates políticos em curso no país. Infelizmente, não é essa a situação na violência política brasileira.

O fato de um ato violento ter um componente político não significa que seja um ato premeditado ou mesmo conscientemente incentivado pelas lideranças políticas. No caso do assassinato ocorrido em Foz do Iguaçu ou da facada dada em Jair Bolsonaro, na última campanha eleitoral, as investigações nunca encontraram evidências de uma ação premeditada de um grupo político. Contudo, os perpetradores faziam uma associação ideológica que os motivava a cometer o crime.

Assassinatos premeditados, como o do prefeito petista Celso Daniel, ocorrido em 2002, famoso pela suspeita de ter acontecido para acobertar um escândalo de corrupção, são casos de polícia. Já os atos de violência não premeditados, que aparentemente não correspondem aos valores e à visão de mundo dos próprios perpetradores, indicam um outro problema, de natureza sociocultural.

O ressentimento e a raiva subtraem nossa humanidade

Instilar no povo a animosidade contra seus adversários sempre foi uma estratégia dos líderes políticos. Os novos meios de comunicação, contudo, criaram a possibilidade de alcançar mais pessoas e potencializar cada vez mais seu ressentimento e sua raiva. Os “influenciadores digitais” logo aprenderam que os discursos de ódio, que canalizam o ressentimento e a raiva represados nas consciências, se difundiam facilmente e davam celebridade a quem os enunciava – e o desencanto com as condições socioeconômicas, comprometidas por uma sucessão de crises econômicas, e a frustração com o desempenho dos políticos, afundados em escândalos de corrupção e incapazes de dar respostas aos problemas da população, são terreno fértil para discursos políticos violentos.

Assim, a polarização política vem se tornando cada vez mais extremada, o diálogo cada vez mais difícil e a raiva contra aquele que pensa diferente cada vez mais frequente. Nesse clima, quaisquer contrariedades ou ofensas – por menores que sejam – podem levar a uma violência desproporcional e descontrolada. A reação instintiva se sobrepõe à decisão racional e até mesmo aos valores professados, o diálogo necessário se transforma em confronto desnecessário, chegando à agressão indesejada e até à violência trágica.

O ressentimento e a raiva, mesmo que sejam compreensíveis, corrompem aquela autoconsciência que nos faz humanos, nos tornando cada vez mais animalescos, ainda que usemos os mais sofisticados discursos intelectuais para justificar nossas posições.

O cristianismo e a pacificação dos corações

É natural e justo que as pessoas fiquem indignadas e protestem diante de situações de corrupção, injustiça e não reconhecimento da sua dignidade. Nos Evangelhos, o próprio Cristo vive momentos de grande indignação, quando, por exemplo, acusa os escribas e fariseus de hipocrisia (Mt 23, 23-38) ou quando expulsa os vendilhões do templo (Jo 2,13-17). Existe, porém, uma grande diferença entre a justa indignação e a raiva ressentida.

Bento XVI, ao explicar a expressão “dar a outra face” (cf. Lc 6, 29), diz que não se trata de não responder ao mal, mas sim de responder ao mal com o bem (cf. Rm 12, 17-21). Essa é a atitude justa, que transforma a indignação em caminho de construção e não em violência ressentida. Mas, para isso, nosso coração tem que estar pacificado – e esse é um grande desafio vivido pelos cristãos nesses tempos difíceis e agressivos.

Aquilo que pacifica nosso coração é viver num âmbito de amor, terno e acolhedor, que se desenvolve não apenas em termos emocionais, mas se torna critério racional para olhar o mundo e discernir sobre o certo e o errado. Inversamente, quando nos abandonamos à raiva e ao ressentimento, nos afastamos desse âmbito de amor. Por isso, aqueles que instilam a indignação raivosa em nosso meio – mesmo que o façam com a melhor das intenções, denunciando, por exemplo, o aborto, a violência contra os mais pobres ou o aumento da fome – acabam colaborando para que nos afastemos de Cristo e percamos um pouco de nosso comportamento genuinamente humano.

Para os cristãos, a justa opção alternativa não é deixar de indignar-se, mas sempre ter em mente o amor de Cristo por nós mesmos e por todos os seres humanos, um amor que chama à santidade, mas também sabe perdoar, encher-se de misericórdia e de ternura, não quebrar a cana rachada, nem apagar o pavio que ainda fumega (cf. Mt 12, 20). Um amor que procura o bem comum, antes de optar pela mera destruição do adversário. Alternativa ingênua? Pode parecer, mas é a partir dela que o cristianismo há vinte séculos ajuda a fazer um mundo melhor. Nessa opção, cada um de nós pode transformar a própria indignação em ocasião de memória do amor de Deus por nós e oportunidade de nos reencontrarmos com Cristo.

Francisco Borba Ribeiro Neto
Publicado originalmente em Aleteia

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À luz da doutrina social da Igreja, o difícil equilíbrio entre equidade e justiça

Alguns princípios que orientam a doutrina social da Igreja são pouco conhecidos mesmos entre os cristãos mais praticantes. Entre eles, o de equidade, frequentemente confundido com igualdade – apesar de ser diferente. A bem conhecida igualdade diz que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. A equidade alerta para a necessidade de que os mais vulneráveis ou com mais dificuldades recebam o necessário para poder compartilhar uma qualidade de vida similar, ao menos, à dos demais.

Existe uma analogia clássica para ilustrar a questão da igualdade e da equidade em termos cristãos. Numa família, os pais gostam de todos os filhos. Contudo, se algum deles tem uma fragilidade ou atravessa um período difícil, eles se dedicam mais a este filho – e esperam que os irmãos também façam o mesmo. Deus também espera que cada um de nós se dedique mais aos nossos irmãos mais vulneráveis – e, portanto, que as normas e políticas sociais também ajudem mais a estes em dificuldade.

A doutrina social da Igreja não traz um capítulo específico sobre esse tema, mas em seus documentos o conceito de equidade aparece frequentemente junto ao de justiça. O Compêndio de Doutrina Social da Igreja, por exemplo, insere os direitos relativos à propriedade num contexto que garanta o “uso inspirado em critérios de justiça, de equidade e de respeito dos direitos do homem” (DCSI 283). lembra também que migrantes e refugiados devem ser tratados “segundo critérios de equidade e de equilíbrio” (CDSI 298). Considera que “o bem-estar econômico de um País não se mede exclusivamente pela quantidade de bens produzidos, mas também levando em conta o modo como são produzidos e o grau de equidade na distribuição das rendas” (CDSI 303) e os bens da terra “devem ser divididos com equidade, segundo a justiça e a caridade” (CDSI 481). Bento XVI, dirigindo-se aos católicos do continente, adverte que “a economia liberal de alguns países latino-americanos deve ter presente a equidade, pois continuam a aumentar os setores sociais que se veem provados cada vez mais por uma pobreza enorme ou mesmo despojados dos seus próprios bens naturais”.

O grande perigo das ações afirmativas que seguem o princípio da equidade é sacrificarem indevidamente aqueles que, também estando numa situação de fragilidade, não são contemplados por elas. Por outro lado, muitas vezes as queixas contra essas políticas públicas vêm de grupos que não querem renunciar a prerrogativas adquiridas ao longo do tempo e invocam critérios de justiça e igualdade para legitimar seus privilégios. Distinguir entre as duas situações exige empatia para com aqueles que sofrem, despojamento dos próprios privilégios e uma boa percepção do alcance e das implicações das medidas propostas. Duas situações, que vieram à tona nas últimas semanas, ilustram a complexidade dessas questões.

A questão das cotas raciais nas universidades públicas

Uma pesquisa do Datafolha estimou que cerca de 50% da população brasileira é a favor de cotas raciais nas universidades, enquanto 34% é contrária. Para os que são favoráveis, essa política significa uma tentativa de reparação a duas grandes injustiças históricas que foram a escravidão negra e o genocídio e expulsão dos povos indígenas de suas terras. Para os contrários, cotas são injustas por violarem o mérito dos que obtiveram melhores notas no vestibular e privilegiarem alguns grupos sociais em detrimento de outros.

Nas universidades que adotaram mecanismos de cotas raciais, foi constatado que os cotistas, mesmo tendo entrado com notas menores no vestibular, terminam a universidade com médias comparáveis aos demais. Esses estudantes percebem que receberam uma oportunidade e se esforçam para corresponder a ela. Nesse sentido, a equidade não levou a uma injustiça, mas tornou a sociedade mais justa, permitindo que jovens de valor – antes prejudicados por uma situação social que não haviam criado – mostrassem seu valor.

Contudo, estudantes brancos pobres encontrarão de fato mais dificuldade para entrar na universidade por causa das cotas raciais. Significativamente, a aprovação às cotas é maior entre as pessoas escolarizadas e com maior renda. Entre os pais com filhos em escolas particulares, o apoio foi de 60%. Muitos pensam que esses grupos seriam aqueles teoricamente preteridos por essa ação afirmativa. Mas isso não é exatamente certo. Os mais ricos e escolarizados são também aqueles que menos dependem da universidade pública, pois têm condições de pagar uma universidade particular de elite, e contam com outros recursos, como heranças, redes de amizade e formação complementar, que lhes garante o futuro. São os jovens pobres que mais precisam da universidade pública e, entre eles, a política de cotas pode significar uma perda de oportunidade por uma questão étnica e não de mérito.

Nesse caso, a solução é criar políticas afirmativas mais adequadas, por exemplo, adotando critérios socioeconômicos além dos raciais. Uma solução adequada implica em buscar mais equidade, não menos.

O rol taxativo

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou, em junho de 2022, que o rol de procedimentos e eventos a serem cobertos pelos planos de saúde, estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é taxativo e não exemplificativo. Isso significa que os planos de saúde só precisam cobrir doenças e tratamentos já previstos nessa lista. Doenças pouco comuns ou novos tratamentos, por mais que afetem a saúde das pessoas atendidas pelos planos, não serão cobertos.

Uma razão para a defesa do caráter taxativo desse rol é que o custo dos planos seria muito mais elevado se tivessem que custear tratamentos dispendiosos, de doenças raras, pouco conhecidas e imprevistas. O aumento de custos faria com que muitos tivessem que optar por planos mais simples ou mesmo que desistir de seu plano de saúde, recorrendo apenas ao sistema público de saúde. Contudo, o rol taxativo deixa pessoas já mais fragilizadas sem os tratamentos necessários. Um dos casos mais divulgados nesse momento é o dos autistas, cujos tratamentos considerados mais adequados na atualidade não estão incluídos no rol taxativo.

O princípio da equidade nos indica que os mais frágeis, com doenças raras, devem ter o direito garantido aos tratamentos que necessitam, mesmo que esses onerem mais ao conjunto da sociedade. Nosso problema, nesse caso, é a insuficiência do sistema público de saúde, que não consegue oferecer para todos um atendimento de qualidade nessas situações. Se o Estado pudesse garantir esse atendimento com qualidade para todos, não haveria necessidade de onerar os planos de saúde. Além disso, sempre teremos o debate sobre qual seria a margem de lucro aceitável para esses planos…

Assim como no exemplo das cotas raciais, também aqui a justiça não passa por uma redução da equidade, mas de uma ampliação da qualidade e da universalidade dos serviços prestados à população, para que ninguém seja excluído do bem comum.

Francisco Borba Ribeiro Neto

Publicado originalmente em Aleteia

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A doutrina social perante os populismos na América Latina: um tema do qual não podemos escapar

O Observatório Socioantropológico Pastoral do CELAM acaba de publicar Democracia y neopopulismos: alternativas para superar la polarización en América Latina. Não se trata de um texto da própria Conferência Episcopal, mas sim de um documento de trabalho para ajudar a reflexão dos bispos e de toda a comunidade católica.

Salta aos olhos a pergunta: por que a Igreja deve se preocupar com um tema tão claramente político, tão problematicamente partidário? A doutrina social católica deixa claro que o amor cristão é muito concreto e nos impele a colaborar na construção do bem comum, que é a razão de ser da política. Nesse caminho, sem envolver-se com opções partidárias, a Igreja reconhece que a democracia é o sistema de governo que mais colabora com o bem comum. Sendo assim, vê com suspeita as tendências populistas que parecem pôr em risco nossas democracias.

Não cabe aqui resumir ou analisar o documento, disponível online, relativamente extenso e passível de críticas como qualquer obra do gênero. Contudo, algumas observações sobre o tema são importantes para o momento político atual que vivemos.

O que é populismo?

O populismo é uma estratégia de chegada ao poder em regimes democráticos. Caracteriza-se pela canalização, por parte de um líder social, da insatisfação e do ressentimento dos pobres e/ou da classe média contra as elites políticas e econômicas. Dos cinco presidentes brasileiros eleitos diretamente depois do regime militar, apenas Fernando Henrique Cardoso não foi criticado por seus adversários como “populista”. Lula e Bolsonaro foram os mais associados ao populismo, mas a crítica também foi aplicada a Collor e Dilma.

A estratégia populista é tão mais eficiente quanto maior o desencanto e a frustração com o desempenho dos políticos, geralmente tidos como interesseiros e corruptos, e a fragilidade da máquina pública em garantir a justiça e o bem-estar da população. Além disso, pode se apresentar como a única viável quando as organizações da sociedade civil e as instâncias democráticas parecem não conseguir construir um sistema político realmente comprometido com o bem comum da população e não com os interesses dos poderosos.

Democracia implica em controle social – e nossa democracia brasileira é fraca. A maioria dos eleitores não acompanha o desempenho dos políticos eleitos e os candidatos mais votados são frequentemente personalidades midiáticas, sem um histórico de engajamento social, ou lideranças comprometidas com esquemas de poder tradicionais. A ineficácia da justiça, quando se trata de condenar e punir corruptos, demonstra a força dos esquemas corporativistas, consolidados no próprio arcabouço legal, que em nome da defesa do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado frequentemente criam condições para acobertar a corrupção. Apesar da insistência das mídias e até da justiça eleitoral, a maioria dos partidos continuam fragmentados, organizados numa perspectiva corporativista e não programática – e estão entre as instâncias consideradas menos confiáveis pela população. Nas eleições atuais, esse desencanto com os políticos e partidos se evidencia na dificuldade da chamada “terceira via”, que é, mais do que um caminho intermediário entre extremismos de esquerda e direita, a defesa das elites políticas institucionalizadas frente às lideranças personalistas de Lula e Bolsonaro.

Uma ameaça à construção democrática

A estratégia populista, com a vinculação direta da massa de eleitores a um líder que promete resolver os problemas gerados pelo fracasso do sistema democrático, pode ser utilizada tanto pela esquerda quanto pela direita. O lado perdedor é sempre a própria democracia, pois o populismo, no fundo, é autoritário. Atrela a mudança a uma determinada liderança pessoal e inibe o fortalecimento político das várias instâncias da sociedade organizada (tidas como ameaças a quem está no poder). Além disso, o governante populista, tendo se viabilizado sem o necessário suporte institucional e com uma base social forte, mas pouco articulada, termina enredado no corporativismo e no clientelismo das elites políticas tradicionais, repetindo esquemas fisiológicos que não consideram o bem comum.

O populismo pressupõe a lógica do “nós contra eles”, de certa forma inevitável em seu discurso, dificultando a construção de consensos necessários à organização da sociedade, ao desenvolvimento social e econômico. Ao culpabilizar o outro por todos os problemas sociais e econômicos, inibe a reflexão crítica e a construção do realmente novo. Implica numa adesão acrítica ao discurso do líder e/ou de seu grupo, associando-se à disseminação de notícias falsas e à deturpação da realidade.

Menos evidente é o perigo que o populismo representa para os próprios valores que pretende defender. Numa sociedade livre e plural, o convencimento é muito mais convincente que a mera imposição. O controle dos meios de comunicação ou da máquina estatal só é realmente eficiente quando articulado com um discurso capaz de convencer a população, em particular os jovens. O populismo, porém, uma vez no poder, imagina que o simples controle social pode garantir os valores que defende. Com isso, no plano cultural, permite a erosão gradual desses valores e inibe a busca construtiva de novos caminhos.

A superação do populismo na doutrina social da Igreja

O termo “populismo” era pouco presente na doutrina social da Igreja até recentemente. Contudo, a valorização das organizações sociais (ou dos “corpos intermédios”, nos termos usados até a publicação do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI 356-357), a insistência na participação (CDSI 189ss) e a ênfase da sociedade organizada como contrapeso ao poder tanto do Estado quanto dos mercados (Caritas in veritate, CV 38) indicam claramente uma posição de “simpatia pela democracia” (Centesimus annus, CA 46) e desconfiança em relação ao populismo.

Com um bom senso tipicamente católico, Francisco, na Fratelli tutti observa que líderes populares que conseguem transformar as estruturas injustas são um bem para a sociedade (FT 169). Contudo, podem se revelar muitas vezes como demagogos que enganam o povo, ao invés de servirem ao bem comum (FT 156-162). Ideólogos de direita tendem a ver demagogia populista em qualquer tentativa de aumentar a participação popular e melhorar a distribuição de renda da população. Ideólogos de esquerda tendem a ver demagogia populista em qualquer defesa da ordem social ou dos valores morais tradicionais.

O fato é que a população quer justiça social, condições de vida dignas, respeito a seus valores morais e segurança. Grande parte de nossos problemas de engajamento vem da tendência dos grupos políticos de lutarem por algumas bandeiras e não levarem outras em consideração. É comum se dizer no Brasil que “o povo não sabe votar”. O problema maior, contudo, é que “as elites não sabem governar”, deixando o povo sem opções e entregue a líderes populistas de esquerda ou direita. Governos populistas são, de certa forma, um ponto de passagem no processo de amadurecimento democrático na América Latina. Isso não quer dizer que sejam obrigatórios, mas sua recorrência e duração depende em grande parte da capacidade de políticos e instituições democráticas conseguirem atender a população em suas reivindicações básicas.

A superação dessa situação só poderá acontecer com o aumento da participação; o fortalecimento, em todos os níveis, das organizações sociais e a formação de lideranças políticas cada vez menos personalistas e mais comprometidas com o bem comum. Por outro lado, implica em lideranças sociais realmente empenhadas em escutar a população, reconhecendo tanto suas necessidades quanto seus valores (FT 15-17).

O desenvolvimento humano integral (Populorum progressio, PP 4-21), que abarca todas as dimensões tanto da sociedade quanto da pessoa, e se propõe a chegar a todos, pode ser considerado como o caminho necessário para a superação dos populismos. Sem essa visão integral, as conquistas parciais obtidas em certos setores ou por certas categorias sociais não são suficientes para consolidar o amadurecimento democrático de uma nação.

Francisco Borba Ribeiro Neto

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